sábado, junho 30, 2007

liberdade de expressão

é difícil, desde o princípio dos tempos, integrar a nossa liberdade com a liberdade dos outros. é um processo que implica (anarquistas à parte) o estabelecimento de limites. pessoalmente, irritam-me alguns estilos de exercício de liberdade especialmente prezados e praticados pelos portugueses: o anonimato, a conversa de café sem qualquer acção individual, a boca lançada para o ar sem destinatário certo, o graffitti inconsequente, as maledicências de mãe à porta da escola que, com desculpas várias, nunca se convertem em queixas concretas junto de quem de direito, os resmungos de utente nos guichets administrativos que nunca transitam para livro de reclamações, os queixumes de funcionários que nunca agiram, nunca se propuseram a participar na construção de soluções.

não acho adequado que nas salas de espera dos Centros de Saúde se colem cartazes com bocas: nem ao ministro da saúde, nem a nenhum funcionário ou utente. e se um utente do CS quisesse afixar um cartaz com umas bocas ao seu médico? e se nos corredores da escola dos meus filhos eu andasse a contar anedotas sobre a professora deles? será que todos os lugares servem para se ser livre? todas as formas? todas as distâncias? até onde podemos ir com toda a liberdade que temos? até onde queremos que os outros tragam a sua liberdade?

não penso que nada disto se resolva com processos disciplinares e demissões que apenas ridicularizam o actual governo e alimentam uma histeria que respirava adormecida desde a revolução. não sei como isto se resolve, mas tenho a certeza que não será por decreto e pressinto que ainda será longa a noite da verdadeira liberdade.

PS ao mesmo tempo que saía este post, Eduardo Pitta publicava também um sugerindo outros "e se" para mostrar que se devia pensar um pouco mais antes de bradar aos céus por estas coisas acontecerem

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"buraco de ozono"

"(...) e, embora mais desdentado, acoita-se-me
uma mão-cheia de felicidade, daquela ambulante
que é costume encontrar-se nos pregões
das castanhas, porque apesar do buraco
ainda respiro e a cada passo diminuem as dores. (...)"

mais um texto estonteante de Renato C. no Paixão Sobre Tela

sexta-feira, junho 29, 2007

Directório socrático

O directório socrático cheira a arrogância.
Precisa de ir ao SAP de S. Bento com urgência.

Drenagens e exonerações são (sem taxa moderadora) a prática médica do regime. A correria de Campos é um melanoma que pontua a preto a pele lusitana.
Por veste preta, só falta uma OPA do Berardo à Lusitânia
e todo o Portugal transformado num hotel do grupo Pestana!

Pergunta, invejoso, o Alberto João Jardim:
- queres ver que já chegámos à Madeira?

PS (perdido socialista): aceito desde já a acção que V. Exa. me possa meter em tribunal. Humildemente, como português com impostos em dia e meia dúzia de tostões na bolsa para sonhadoramente acelerar e especular a economia, aceito a notificação. Mas mal por mal, que seja uma mulher bonita a meter-me uma acção em tribunal.

ciclo do tempo - I

O tempo, a luz do tempo, sempre teve grande influência em mim. O cinzento impregnado de inverno sempre me sombreou a alma até doer. Durante anos e anos temi Fevereiro, porque aliada à escassez de luz havia os exames, a pressão, a inquietude e a drástica diminuição de disponibilidade. Tudo isto em cinzento e frio, era violento.

Abril e Maio sempre trouxeram, com a primeira luz quente, a hipótese da felicidade, porque trouxeram um acréscimo de alma e de pele. Maio sempre teve a luz exacta para se acreditar.

Julho e Agosto sempre foram áridos de excesso de luz e incómodos de calor, mas suportáveis porque imensos. Neles cabiam todos os programas para fazer, as voltas à serra a pé, as idas para a casa dos amigos no primeiro apeadeiro da linha, os desvios de carro pelas estradas do mar até chegar a sul e o Chiado arder.

Quanto à chuva, sempre teve uma beleza mutável. Podia ser bonita, quando filtrava o ar e deixava nele uma limpidez invisível, que clareava a alma como promessa de luz coada. A chuva sempre trouxe o cheiro a terra forte e o calor dos fundos. A chuva sempre se permitiu à ficção, contrariamente à ausência da claridade. A chuva tráz uma luz adaptável ao tempo do mundo. Sempre gostei quando chove em Agosto. Ainda tenho a memória da chuva nas praias do norte e, de crianças, nos escondermos nas barracas às riscas a jogar ao prego ou a inventar futuros que rebentavam no mar.

Sempre fui feita destes ciclos de tempo e aprendi a sabe-los como dicionário de mim. Sempre soube das minhas chuvas e dos meus ardores, sabendo apenas o calendário.

Com o passar dos anos o referencial sobre o tempo é mais contínuo, mais homogéneo. O tempo deixa já pouca aleatoriadade. Os ciclos do tempo passam assim, sobre o tempo, de forma mais indelével. Mas continuam a fazer-me, de forma menos abrupta.
Acontece que começo a reparar que já não me dói Fevereiro tanto quanto doía e que a primeira luz de primavera me entusiasma e anima sem tanta convicção. Reparo que me chega a doer Julho sem haver razão para além dum cansaço semestral. Suspeito de uma inversão nos ciclos do tempo e o dicionário de mim está por decifrar. A confirmar tal suspeita, assolou-se de mim uma gripe medonha ( depois de um inverno intocável ) que me faz sentir Fevereiro por dentro. Sem luz.

quinta-feira, junho 28, 2007

Amos Oz

"(...) não acredito no amor universal. O amor de todos por todos é para Jesus. Porque o amor é uma coisa totalmente diferente. Não tem nada a ver com generosidade e compaixão. Pelo contrário. O amor é a mistura estranha de uma coisa e do seu contrário, a mistura do egoísmo mais egoísta com a entrega mais total. Um paradoxo! Para além disso, o amor, e toda a agente passa a vida a falar de amor, sim, o amor não se escolhe, pega-se-nos, aprisiona-nos, como uma doença, uma catástrofe."

Amos Oz, in Uma História de Amor e Trevas (o livro autobiográfico onde me perco estes dias), a propósito de ter sabido n'A Origem das Espécies* que Amos Oz foi premiado em Espanha

*obrigada ao Nuno pela correcção

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demasiada inveja

já não bastavam os constantes programas fantásticos das noites na Casa Fernando Pessoa, onde se misturam à conversa livros, escritores, leitores, bom vinho, cervejas exóticas, música, enfim, não bastava sabermos disso aqui do norte, agora ainda temos mais isto para invejar: ateliers para crianças, com tudo o que há nos outros ateliers mas também com poesia.

para quando uma delegação, uma digressão, um anexo da Casa, qualquer coisa, aqui no Porto?

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quarta-feira, junho 27, 2007

Tempo feliz

Acredito que a minha frágil felicidade se constrói nos horários de sobra. Tudo o que faço dá-me sempre um minuto a mais para o poder apreciar sem correrias contra o tempo. A correr, quando quero, ando eu, sei disso. Mas ter tempo para o tempo do que faço e poder admirá-lo, é privilégio único. O mesmo faz a abelha da sombra da folha, saciada depois do almoço dentro da flor. O mesmo faz o peixe que, não sendo pescado, sobe livre até ao cimo do rio. E o que dirá a águia-de-asa-redonda que nesse minuto do tempo vejo voar alta, fugida ao tiro furtivo, retomando o caminho das orquídeas atingidas pela bala que falhou. O mesmo fazem os ponteiros do relógio, depois de usados nas horas pelos apressados, deixando-lhes o ritmo para o outro privilégio único de poderem parar outra vez. A todos nos sobra tempo. Esse precioso tempo que não está cotado no horário dos homens da bolsa.

A abelha, o peixe, a águia-de-asa-redonda e os ponteiros do relógio,
admirando o mundo nesta frágil felicidade comigo, falando juntos sobre isso
num minuto a mais sem compromisso.


terça-feira, junho 26, 2007

Amor em caixinhas

H diz que na conjugação do amor há sempre no fim um nome bonito.
Acredito.

M acrescenta entropia no durante, espécie de desassossego.
Confirmo.

Tudo começa numa manhã dentro de uma caixa de música. A arte de dar corda, ver dançar se ela dança e saber ouvir. Pela tarde, entre um chá e uma torrada - que é o apetite a crescer! -, abre-se a caixa de costura, costureiro que edifica casa para o botão. Acertado o rosto do nome bonito, terminado o desassossego, como um menino falta colorir o momento. Abre-se a caixa viarco e começa-se pelos lábios, depois os olhos e um ou outro traço nos cabelos. O resto é poisar os lápis e pernoitar no que lhe resta de sombras. Puzzle onde tudo encaixa. Um som a mais, um ponto-de-linha que não foi cortado a tempo nos dentes, um risco azul onde o verde pedia carinho, abre como código muitas vezes a caixa de Pandora, que leva de novo à procura do nome bonito, à entropia e à caixa de música. Não há que esperar. Dá corda. Depois tudo segue como dantes.
Assino.



segunda-feira, junho 25, 2007

esperar, foi nele, a certeza dela


Para M e T

Não tenho outro amor, senão este para replicar. Dele, amor, têm sido feitas muitas evocações em textos bonitos aqui pela linha e pela blogosfera enquanto o verão teima em ter vento frio. Homenageá-lo na celebração daqueles que agora o encontraram e o vivem. Alheios ao vento frio que vem do mar a rasar Julho.

O meu amigo apaixonou-se por uma mulher de nome bonito. Bom começo este de ter um nome bonito para sussurrar por dentro ou muito, muito rentinho à pele. São sempre bonitas as mulheres que se chamam Teresa. A mim, lembram-me alguns poemas de Ruy Belo. Mas nesta fase de paixão o nome é coisa pequena e redonda que se esconde para uso do silêncio. De resto, é o sal. A maré que cresce por dentro, assustadora e fascinante. A maresia que se abeira dos lábios, depois das palavras, antes do olhar que já se afundou. O mar que engole o mundo.

As pessoas apaixonadas pervertem a lei da gravidade porque com mais facilidade caem na pele que no chão, assim como pervertem qualquer das conhecidas leis do universo. Mais facilmente se amarrotam do que se endireitam. Mais depressa se perdem do que se norteiam. A paixão é uma construção ao contrário do mundo.

As pessoas bonitas tem direito a paixões bonitas. Os homens que esperam tem direito a tudo. O tudo pode acontecer numa mulher de nome bonito. Esperar é ter uma certeza, que um dia acontece, ou não, numa mulher.
Esperar, foi nele, a certeza dela.

domingo, junho 24, 2007

gostei de ouvir

às duas da manhã da passada noite, de regresso a casa após um arraial são-joanino familiar, gostei de ouvir - no preciso momento em que contornava a rotunda da Boavista - uma canção iluminando, sonante, o escuro da noite do Porto:

"quem me leva os meus fantasmas?
quem me salva desta espada?"

era o concerto de Pedro Abrunhosa que àquela hora ainda durava frente à Casa da Música. gostei da música a entrar inesperada pelas janelas abertas do carro. gostei da luz, das pessoas na rua, da cidade a fingir-se viva, escorraçando os fantasmas que em todas as outras noites do ano vagueiam por ali.

(confesso que embirro com PA enquanto personagem público mas rendo-me facilmente às suas melodias faladas e aos seus poemas)

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S. João


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sábado, junho 23, 2007

chama-lhe big bang

Alberoni chamou-lhe estado nascente, transcendência: a vida retirada da contigência, do quotidiano. outros chamam-lhe o coma (induzido) da razão. ou a invasão armada da nossa memória poética (Kundera). como um sangue diferente a jorrar-nos por dentro, que depois se aloja adormecido no nosso corpo vulnerável, pronto a acordar (poderoso, alienante).

às vezes ainda sonho que me acontece (e no sonho está lá tudo, intacto). outras vezes sonho que ainda fumo: que tenho um maço de SG ventil quase cheio na mão e que posso fumá-lo inteiro.

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a nossa noite

depois de uma espécie de quarentena que os excessos deste tipo de manifestações a certa altura me provocaram, começa a renascer-me, aos poucos, um novo carinho por esta euforia de manjericos, alhos porros, cascatas e sardinhas assadas. um carinho que me apetece ensinar aos meus filhos, esperando que um dia retomem o ciclo e se sirvam destes festejos como um ritual de iniciação à liberdade.

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sexta-feira, junho 22, 2007

aterro de tempo

Tenho andado a ler, em frinchas de tempo pouco, “Algumas Distracções“ de FJV. Este livro é uma colectânea de textos dos blogs Aviz e A Origem das Espécies e teve distribuição gratuita na revista Sábado. É um gostoso fácil e leve.

Atravessam nele, amiúde, as insónias. E eu, que não sofro delas, invejei. Achei que seria uma solução brutal para quem, como eu nesta fase, não tem tempo. A ideia das insónias apresentou-se-me como um aterro de tempo. O tempo para pensar, para o vagar de ir ao fundo e ouvir, o tempo do tempo. Acrescentando a isto o prazer de descobrir uma luz desconhecida que FVJ evoca, alguns silêncios únicos, os primeiros sons da manhã e do mundo. O frio. Tudo me pareceu bonito: ter tempo para sentir.

A ideia é brutal mas é solução. É mais fácil mentir-mo-nos com solução. A minha, roubei-a dum livro. As insónias, um aterro provisório de tempo.

Engenho

A luz que ilumina o novo verão traz os teus olhos mais para perto dos meus muros de pedra e cal. Como dois poços que são, corro à volta dos teus olhos o engenho para lhes dar água límpida de beber. É uma engenharia de alcatruzes. Cada alcatruz um desejo, cada mão-de-água um copo contigo à sombra da parreira da taberna.

Se tivesse engenho de outra imprevisível sabedoria, bastariam as minhas mãos juntas a reter água para nelas poisares uma boca de sede, e depois, saciada, os olhos nos meus olhos pedindo outro engenho e todo esse calor do corpo cantado nas pautas das cigarras.

quarta-feira, junho 20, 2007

Aqui há rato

Um rato morto, cheirando melhor cheiro que certos juízes e processos em decomposição, foi encontrado no gabinete da presidente da quarta vara do Tribunal da Boa Hora. O bicho adormeceu até morrer aconchegado num cachecol. A sua pele seca «blue velvet» foi analisada com luvas jurídicas CSI. Cinco juízes, cinco, cruzes, credo, tapemos o nariz, chamem a ASAE, apresentaram queixa, tomaram principescamente conta da ocorrência e exigem agora que sejam tomadas medidas com a máxima urgência.

Muitos deles nasceram felizes entre ratos e gatos e foram alimentados à sua semelhança. A outros tantos, a passagem pelas faculdades do direito destorceu-lhes o ego e a recusa das origens e, chegados, poucos, aos calabouços do Centro de Estudos Judiciários, passaram a ratos de jurisprudência ou sacristia.

Mas eis que aparece um rato que não tem classificação de Lineu na sua nova família. Vetustos, lançaram do alto da toga com luva branca o bicho ao ar e aos media, desculpando com ele a inércia do sistema judicial.

O rato voou pelo Tribunal da Boa Hora. Aterrou hirto no teclado de um computador. Era, estou convicto, um rato de trabalhar, acelerar processos, ligado ao hardware. Ninguém lhe pegou. Terá processo sumário e dois ou três gatos a testemunhar a seu favor. O rato não rói processos. O rato-rói-a-rolha-da-garrafa-do-rei-da-rússia, todos sabemos, é o único que lhes é familiar, no bar, nas mesmas sortes de Boris Yeltsin ou Putin, para sistema andando-e-andando, a fresco wodka de fim-de-tarde.

Haverá juízes justos com trabalho somado. Tenho-os na família e na família de amigos. Nada de ego familiar. É o ego deles que não se alterou. Gatos contra outra espécie de ratos. Mas no caso presente, a ASAE que tome conta da ocorrência. Mais processos serão arquivados, culpa do rato.

No «Aqui há Rato» - um bom bar de Coimbra B onde se ouvia Triumvirat do rock alemão progressivo, rato sempre na capa – alguns juízes lá vi na onda da assimilada jurisprudência germânica, álcool em abundância. Processos a andar? A ver vamos. O rato do computador queria trabalho, afago de mão jurídica, morreu porque ninguém lhe mexeu.

E as pulgas? Post-its sobre o teclado com urgências de decisão, merecerão também processo sumário?

E se o bicho fosse uma rata? Delenda est Cartago!


amigas de desafio

1. O desejo dos campos que me ia dando corda aos pés. Assim vos revejo num arco de volta inteira, duas amigas, duas vidas, sobrepostas num desenho do caminho linear de pedra, quase gasta, sem rasto nem rosto, parecendo uma.

2. O cenário a compor-se na fugidia luz do candeeiro para o céu de Órion, teia tecida e a nossa juventude exposta no musgo dos muros, essa vertigem de ir a que a alma já não damos.

3. A vossa silhueta de mãos nos bolsos onde guardam uma e outra os meus e os vossos segredos, perto da cruz, ali à sombra do cedro e dos dias. Num desses, recomeçaremos todo este caminho logo em baixo, perto do rio, quando soubermos regressar por três quartos de tempo das vidas decididas por cada um.


segunda-feira, junho 18, 2007

A invenção do amor

Na estante, encontro um livro que me entrou na vida em 85, anos apaixonados.

“Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar
da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana…”

Filipe, Daniel, A Invenção do Amor e Outros Poemas

Amores oxítonos

Falamos da sua elipse nos nossos olhos, do que nos ocupa a cabeça sem nos deixar pensar em mais nada.
Desaforo, sempre em segredo, até ao fim, até que o seu brilho se esgote e se reordene toda a música e toda a escrita.
Desprendimento, como o seu acento tónico na última sílaba.

domingo, junho 17, 2007

dance me


(foto e tema roubados no respirar o mesmo ar)

dance me to the end of love

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fingimento de amor

e ainda o fingimento de amor: é o amor que decidimos fingir. amor destituído de amantes. sem linha de pele. unívoco exercício.

este é gostoso na estrada, com luz dourada de verão e sombras quentes, certas músicas aos berros e as janelas fechadas. quantos fingimentos de amor a A5 me deixa… estrada fácil.

sábado, junho 16, 2007

"amar não acaba"*

e ainda o amor feroz, primitivo, animal (de leoa). amor protector: alado, todo-poderoso.

e o amor-viagem: nómada, inquieto, estrangeiro. amor fuga. amor separado. amor algemado. até ao fim do mundo.

e o amor escrito: distante, codificado. corpos de palavras que tentam tocar-se. amor exacto. amor postal. amor condenado.

* livro de Fredrico Lourenço

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falamos... com chuva morna

Pouso devagar e no vagar. Cai uma chuva morna e quente. Cai uma confusão de verão, do céu. Cheguei ontem noite de fora do mundo e vim espreitar à blogosfera, se chovia ou já havia sinal de verão. Apanho sempre aqui o comboio e, por escassez de tempo, tenho-me confinado a territórios curtos e seleccionados. Não tenho espaço para acomodar a curiosidade e meti-a conjuntamente com a vivência do resto da vida, no território das coisas em espera e para as quais desliguei. Fui para fora do mundo, onde chover não molha.

Pousei ontem no vagar. Breve. Abeirei-me para saber do tempo por aqui. Parei no apeadeiro do “ respirar o mesmo ar” e achei que era o amor, ou no lugar do amor, que chovia. Deixei-me quieta por suficiente ser a beleza. Para quem anda em abstinência de alma, a dosagem deve ser controlada. Aquela foi perfeita. Do amor para começar um vagar.

Hoje, com a chuva ainda colada ao pijama e ao primeiro cigarro com café, vim para a estação e eis que por todo o lado (os meus lados curtos e afectivos) o amor faz a palavra e entretêm a chuva.

De imediato pensei responder ao repto de M. “ de que é que falamos quando escrevemos amor?”. Sem vontade do esforço de perfurar a pele e procurar, ocorreu-me de imediato ir buscar um livro. Há livros que tem respostas. Afinal há livros que sabem tudo e do amor, ou da perca dele, “ Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 “ de Maria Gabriela Llansol escrito após a morte do seu companheiro, seria o livro perfeito. Também alguns contos de Clarice Lispector, estes, a cheirar mais a quente e a volúpia.

Tenho como principio que o vagar não comporta o peso do esforço e não ter resposta pode ser apenas o meu consentimento para sentir a chuva a bater em mim. A molhar a pele ou só a página do livro que hoje posso ler, mesmo que se desfaçam as palavras impressas em tinta negra. Para acabar o jornal da escola das crianças e ter as noticias do mundo a partir dos desenhos de cera, coloridos e imprecisos como a memória do verão. Para ajustar o quadro torto que pousou na parede depois da cor nova. Para medir o que falta de tecido para fazer cortinado que caiba na janela. Para me por no colo que cabe entre os braços das minhas filas ou sentir o respirar quente e feliz, nesse espaço pequeno com certeza de crescimento. Isto também é amor, não é?

do que é que falamos?

do que é que falamos quando escrevemos amor?

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sexta-feira, junho 15, 2007

e outra ideia do amor

o amor desolado, desigual, doente. amor triste, amor pesado: que acabou antes de acabar.

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e mais uma ideia do amor

o amor-renúncia, o amor-espera. amor-desistência. amor-hipótese. amor-paciência. pedaço de futuro que nunca chegará.

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e mais outra

o amor do primeiro beijo: incrédulo. amor debaixo de chuva, sujo de lama, à saída da infância, sombrio, a sinalizar a luz.


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e outra

o amor-desejo, amor-charme, sedução: ritual, chamamento, vertigem e queda.

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e mais outra

o amor côncavo e justo de se ser amado: líquido, fetal; podado, regado, fértil.

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e outra

o amor ombro a ombro, metade fraterno, metade incesto, metade profano, metade sagrado. amor-saudade: good thing.

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ainda outra ideia do amor

o amor afecto: querer bem, precisar, gostar, guardar, encostar, embalar.

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e mais outra ideia do amor

o amor paralelo, secreto, à margem: inominável. dissociado da posse, da permanência. despojado. amor-limite.

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uma outra ideia do amor

o amor-força, contagioso, nuclear, que nos transforma, nos agiganta, nos empurra: mais longe, mais alto. nos liberta e disponibiliza. para sempre.

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Pianofortissimo

A exposição «Pianofortíssimo» foi produzida pelo Museu Vostell Malpartida e pela Fondazione Mudima de Milão, instituições detentoras das obras.

A Mostra é composta por 16 pianos, tratados por distintos artistas pertencentes ao Movimento FLUXUS e documentados por uma série de fotografias históricas da autoria de Fabrizio Garghetti.

É no quadro do Movimento FLUXUS que nasceu a ideia de uma Mostra em que os artistas, tendo como base um piano de cauda, recriam um novo universo conceptual.

Em Outubro de 2006, a propósito da comemoração do 30.º aniversário do Museu Vostell Malpartida, é apresentada a exposição.

«Pianofortíssimo» é uma mostra que me chegou ontem ao território. Anda por cá até Setembro. Deixem-se andar aí distraídos e não visitem o SICÓ em Alvaiázere. Só digo isto uma vez.


quinta-feira, junho 14, 2007

Pai 80

O meu pai fez hoje 80 anos. Fumou 3vintes, um maço que lembro amarelo da sua juventude do fumo e disse-me ao telefone «mudei o maço para 4vintes!»

Já não fuma. Fumaria ainda se a família e os amigos fossem um vício de fumar. Tem o copo vazio, a sombra do chorão do pátio e a bandeira. Lê aqui à sombra bons livros e na mesa escreve memórias em papel pardo que um dia me serão incontornáveis. Conta-me que já dorme pouco e ouve agora a «tralha da rádio noites inteiras entre o barulho dos camiões que lhe limpam velozes a janela do quarto». É dos que não trata Deus por tu e, sem entusiasmos de missa, vive a vida a contar histórias à pilheira dos Domingos. Domingo lá estaremos na sua homilia, desafinados, a encher-lhe o copo, cantando os parabéns e a ouvir-lhe as palavras, prontos a transportar o seu sorriso para os nossos dias.

terça-feira, junho 12, 2007

10 de Junho


O meu avô materno, António de Pádua, (conta a minha mãe de ouvir menina, à mesa dos almoços caseiros) que o pai, sem nadinha a ver com o 13 que aí vem, exclamava no século salazarento a cada aparição, na TV, do dia da raça:

«PORRA! Outra vez o Camões!».

Depois, educado, pensava «foda-se!» e resguardava-se no Guerra Junqueiro, no Eça e no Camilo, anti-clerical, acutilante e romântico, temendo apenas as ordens da mulher, avó Beatriz.

Quis a vida e o mundo que o herdeiro varão e família fossem homenageados, plural magestático, às mãos do Cavaco de 10 de Junho, pelo trabalho de anos à frente da Associação para Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã – ARCIL.

Tem um filho nesta casa, lutando pela sua cidadania. O meu primo João António «Jone», nascido por eles na Angola vivida na diáspora (nome que para mim sempre soará a origem Bantu, etnolinguístico Kimbundo, Ganguela ou Nhaneca-Humbe, porque me apetece) é, nos seus condicionalismos, dos mais felizes da família.

Cavaco, metódico, foi ver antes. O Jone fez-lhe, moldando o barro, uma espécie de «quizaca com moamba de ginguba» acompanhada a «pirão», rindo muito. Depois chamou o varão Zé Manuel ao 10 de Junho, sentou Sócrates a bater palmas e entregou-lhe uma condecoração da Pátria reduzida sem a África onde foram felizes.

António de Pádua, ainda indeciso no purgatório, pronunciou finalmente um «foda-se!» em alto estilo – como hoje dizem os seus netos com educada frequência, lendo-lhe os mesmos livros! – e disse outra vez «foda-se!» e «quem me dera poder estar ali com o meu filho, o Sócrates e o Cavaco sem o Camões!».

Talvez por isso e pela primeira vez a RTP não transmitiu a cerimónia na íntegra e quase, quase escondeu a porra do zarolho.

- Vês, avô, o que vale um bom «foda-se!» dito do alto do peito?

segunda-feira, junho 11, 2007

Dueto

© foto DA

DA manda foto e diz:
«Olhamos no chão o que sobe».
D publica e diz:
«Olhamos também no chão o que desce. Sobe e desce à tua velocidade. Tens na linha uma estação afectiva».


domingo, junho 10, 2007

Do amor

Como as flores
que moídas dão perfumes
o teu amor consumido à exaustão
é um espelho partido
um cântaro de água quebrado
de que nos arrogamos depois ao direito dos pedaços
adormecidos nos números do calendário.

Vasco Graça Moura visto do Porto

confesso que hoje só fui porque o Eduardo Pitta ia estar no stand da Quidnovi (agora dei nisto de ter livros autografados: não sei se é pelo autógrafo no objecto já de si sagrado, se é pela possibilidade de espreitar nos olhos de quem escreve) e decidi experimentar ler em papel um dos bloggers que tenho como referência.

tinha posto de lado a homenagem a Vasco Graça Moura (talvez por por supôr uma coisa maçadora e distante da escrita). mas enquanto esperava pela hora dos autógrafos fiquei por ali e dei comigo presa às palavras de Luís Miguel Queirós enquanto falava do escritor e dos seus poemas (incluindo dos poucos que conheço e que tenho como meus: "Picasso visto do Porto" e "Ofício de viver") e, sobretudo, das coisas que nos acontecem dentro ao ler. e fui ficando (mesmo não gostando muito da forma como lhe disseram os poemas), até ao fim. descobri que nunca tinha visto o escritor, espreitado nos seus olhos, aqui do Porto.

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sábado, junho 09, 2007

reencontro

reencontrar uma escrita, um mundo perfeito, que me construiu por dentro, me alicerçou a alma. foi há milhões de anos atrás mas houve palavras dela que nunca me abandonaram.



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em rede

não pensamos o que é escrever num blog até que se fecha uma ponte. hesitamos em nomear estes laços que fomos tecendo, até uma entorse no cabo nos deixar desligados (a cultivar outros laços, outras redes). julgamos que estamos desligados, até percerbermos que filões continuam a ser seguidos e posts continuam a falar do que pensamos. não sabemos porque escrevemos até termos que falar.

p.s. não sabemos nada até começarmos a escrever

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poemas pedidos: "o amor é que nos desfaz"



"Quando a rotina morde e a ambição se esfuma
o ressentimento domina e a emoção se muda
e mudamos os nossos modos em diferentes caminhos
o amor
o amor é que nos desfaz

A cama está fria pois escolheste o outro lado
o meu tempo desfeito e o respeito deslaçado
mas há sempre este mote que nos guiou toda a vida
o amor
o amor é que nos desfaz

Choras enquanto dormes e expões o meu fracasso
deixas-me um gosto na boca de desespero e cansaço
uma coisa tão feliz que agora se desfez
o amor
o amor é que nos desfaz
"

[versão PM 2007]

(o meu obrigada ao PM por esta versão, pedida há umas semanas para o mail do Estado Civil - quando ninguém respondeu ao meu apelo aqui na linha - e finalmente publicada, por um acaso feliz, em simultâneo com a versão do AMC; bem haja por também seguir este filão)

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poemas pedidos: "o amor afastar-nos-á"

"Quando a penosa rotina magoa,
e frágeis são as ambições,
e o ressentimento alto voa,
mas não crescerão as emoções.
E estamos a mudar os nossos caminhos, seguindo por estradas diferentes.

Então o amor, o amor afastar-nos-á de novo.

Por que está o quarto tão frio?
Voltaste-te para teu lado do leito.
Não intervim em tempo digno?
Expirou o nosso mútuo respeito.
Porém ainda resiste esta atracção que sobreviveu às nossas vidas.

Mas o amor, o amor afastar-nos-á de novo.

Choras durante o teu sono,
expõem-se todos os meus fracassos.
Na minha boca forma-se um gosto,
sempre que o desespero aperta o laço.
E como algo tão bom deixou de poder continuar.

Enquanto o amor, o amor afastar-nos-á de novo."

Ian Curtis, Love will tear us apart, 1980 [versão: O amor afastar-nos-á, de AMC, 2007]

(o meu bem haja ao André por responder ao desafio que fiz (também a ele) e, assim, ter alimentado este filão de canções, coincidências, traduções, poemas e posts)

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Santana Bar, politikiss

Imagina que um dia um miúdo de 25 anos acorda, confere os números do totoloto ao balcão do “Paulo Chepa” e tem disponíveis para a vida mais de 500 000 euros. Gasta a volúvel juventude em fichas de mulheres velozes, carros, álcool em abundância, passeia o feltro das mãos em mesas de jogo, distribui uma maquia filantropa pelos irmãos, casa, constrói casa e deposita o resto na compra de um bar. Nada que eu não fizesse, tirando as mesas de jogo.

Mas não estava preparado para a sorte. Homem mal aconselhado, deixou no feltro de mãos terceiras o numeral da única santa que venero: Santa Casa da Misericórdia.

Caiu na vida. Contorceu-se nessas dores de desengano. Recuou tanto no tempo que voltou à infância dos dez dinheiros com que nasceu.

O amigo, Zé para os amigos, ganhou forças e reabriu hoje o Santana Bar com uma nova energia. Afinal, aquela que tinha quando nasceu. Dez dinheiros sem totoloto. Estavam a mulher e a filha e os amigos cúmplices, muitos deles apertados em novo espaço urbano habituados à imensidão do espaço poeirento dos bailes rurais de paróquia. Lá estive ao balcão, contando um rosário de finos que caiam como lágrimas de alegria, a desejar um totoloto, fichas de mulheres velozes, carros, álcool e maquia filantropa para os meus.

Se a sorte da vida me trouxer essa dádiva, correrei quase todos os seus caminhos, menos uma estante para o álcool, mais uma estante para os livros e o meu bar – esse que um dia irei abrir para os cúmplices! - chamar-se-á, desejo antigo, «politikiss».


quinta-feira, junho 07, 2007

Aeroporto Mário Lino

Porque é que não se constrói o novo aeroporto na cabeça do Mário Lino? O seu espaço disponível não é um deserto, antes um condomínio com área de inteligente testa larga para todos os serviços necessários. Tem pista central, desimpedida, onde o único impacte ambiental ao tráfego é uma meia-dúzia de moscas e mosquitos sem risco de sismos visíveis à falta de cabelo, dualidade política de centrão para aplicação do restaurador Olex, ou preto de cabeleira loura, ou branco de carapinha.

Asseguraria os sindicatos, controlados pela sua formação PCP. A cabeça, ao que lemos, reuniria todas as informações da navegação aérea, PAN-OPS - Procedures for Air Navigation Services and Operations - e espaço suficiente para a torre de controlo e serviços de catering associados.

Os low-coast usariam o espaço das orelhas, (ágeis, entram por uma, saiem por outra como pequenas conversas!), voos ortorrino e ornitológicos de pássara em DN à Graça Moura e a ANA – nossa futura H privatizada – ocuparia os salões do seu farto nariz.

Na boca reservar-se-ia um hangar para os dos passaportes diplomáticos, bar-aberto na língua, PALOP´S como saliva, dependendo o serviço mais ou menos personalizado consoante os espaços já disponíveis na dentadura.

Móbil como és enquanto ministro, teríamos oferta de navegação aérea em todos os lugares a benefício do país, a exemplo, o ministro vai a Miranda do Douro, há aeroporto em Miranda do Douro, mesmo que não fale mirandês. Menos oneroso seria para os portugueses se o ministro passasse a viver, a descanso político, num bairro Bragaparques fechado, ali à Portela. Simbiose, pois, que diz que só nos teus olhos não poderão poisar aviões. Esse nevoeiro OTA que te cerra a vista não o permite.


terça-feira, junho 05, 2007

À noite logo se vê

Já ando com o livro debaixo do braço desde 1986. Um Mário Zambujal da colecção fantástico das edições Rolim. Andou esgotado todo este tempo como esgotada anda a minha permanente leitura, como faço com Molero. Saiu agora nova edição pela Oficina do Livro. É um livro fantástico. Em especial, não desprezando todos os outros, o capítulo «Nevoeiro», a págs. 65. Corram ao escaparate.

Zambujal, Mário, À noite logo se vê, Oficina do Livro, edição 2007, Lx.

Coimbra (B)

© Foto Sérgio Azenha

por Daniel Abrunheiro

Toda a gente já muito naturalmente se esqueceu daquilo de o Natal ser quando um homem quiser. Também, quem raio se lembraria disso em pleno fogo de Junho? O céu destes dias é uma fogueira alta. As tardes são alentejos longos. A praia, o campo e o rio são a santíssima trindade da estação corrente. Natal? Espírito solidário? Paz no mundo? O melhor é ir chatear as almas de outra freguesia. Está bem, eu vou.

A minha terra é Coimbra. Coimbra é a cidade sem futebol de primeira. Há por lá muitos estudantes. São mais ou menos um por cada dez garrafas de cerveja. A universidade lá está em cima, alta, altaneira, atrasada, doutoral, salsicheira, caduca. A velha Torre produz mais e mais desempregados com habilitações. Diz-se, porém, que nela andou Camões.

Sou de Coimbra, disse, mas Coimbra não é minha. Coimbra pertence aos barbados que tratam das vereações, das infinitas rotundas, do abate de árvores lindas e antigas. Coimbra pertence aos especuladores da habitação. Comprar casa em Coimbra é quase o mesmo que dar entrada para as águas-furtadas do Taj Mahal. Coimbra também é dos tristes homens-sexuais que bordam a marginal do rio à cata de rapazitos de aluguer. Soberana, catedrática, a cidade vende e compra hot dogs e hamburgers até às seis da manhã. Quando passa, o carro do lixo leva consigo a memória dos adormecidos.

Apesar de tudo, Coimbra é uma aguarela combinada a partir do verde-escuro do Choupal, do azul-faca do Mondego e do ouro-citrino das laranjas da Lapa dos Esteios. Do miradouro do Vale do Inferno, a cidade aparece em clarão postal: linda, humana, intemporal.

Faltam seis meses para o Natal, eu sei. Mas por causa do calor ou da melancolia física que o calor traz, lembrei-me de dar o presente deste beijo ácido à minha terra.

Sou de Coimbra, essa estranha terra adormecida à sombra da Torre da Universidade. Chamavam-lha a Lusa Atenas. Para muitos, é lusa, apenas. Lá, a cultura é quase sempre uma coisa de doutores. Lá, raros são os doutores com alguma cultura. A coisa dá mais para rotundas, abate de árvores, parques de estacionamento, capas e batinas, tapas e latrinas. Tenho pena, mas é verdade.

Apesar de tudo, gosto da minha cidade. Tem ruas bonitas e tristes. Há lá uma qualidade do entardecer só legível por quem lá respirou o ar de raparigas fluviais, o ar de laranjas boiando nas antigas cheias do Bolão, o ar das ciganas com um rancho de filhos a caminho da mata. Coimbra ainda é a cidade onde o meu pai e a minha mãe encetaram uma linhagem de pesquisadores de um ouro que talvez não haja.

Datado

Os arqueólogos datam o tempo nos mosaicos debaixo de uma vinha, a exemplo de hoje, terreno alto, introspecção certeira, a área mais rural, dizem, na bordadura do terreno. Caminhei com eles pela tarde, caminho de outras gentes, certos os meus passos ignorantes, incertos os seus passos decisivos.

Os astrónomos datam as bissectrizes dos ventos, somam anos-luz nas luzes das estrelas que chegam mortas como nados canto-do-cisne. Consigo ainda ver essas estrelas que me ensinaram quando na noite tinha tempo e os teus olhos para essas coisas.

Os políticos datam-se em agenda, efémera mas decisiva, como penteados de ancinhos formando paveias de agulhas de palavras. Agora, dizem, iniciativa e empreendedorismo.

Os emigrantes datam-se nas casas que edificaram, soberbas para eles, misericórdia e espanto para quem ficou e edificou os antigos mundos, os nossos que permaneceram.

Os escritores datam o tempo nas suas personagens. Voam o mundo. Matizam desejos. Por eles são o que querem ser que deles já sabemos.

Datado ficou o beijo que te deixei à sombra, debaixo da acácia. Caminhei contigo sem que o sentisses. Vem a terreiro. Procura-o. Disso sei eu da arte de procurar. Datar urgências. Saberias tu se trouxesses a velha mochila às costas, olhos abertos, cúmplices, pelo acreditar dos dias. O mundo e a vida datarão o peso dessa energia.

Sentem-se… no sofá!


Hoje mandei sentar os livros todos no sofá. Sem parcimónia. Sentaram-se todos, depois de desfeita a ordem da estante. Ficou a parede a nu, sendo esse o objectivo. Começaria hoje a pintar todo o outro lado da casa, aquele que se esgueira ao mar. Acabei a mandar sentar os livros no sofá de riscas e no outro, também ele despojado de capa. Aconteceu que o pintor, depois de posta a fita-cola dos contornos, resolver ir buscar mais fita e nunca mais apareceu. Saiu ainda não era meio-dia e até agora ninguém sabe dele. Conclusão precária: fiquei sem a casa por pintar e tenho os livros sentados no sofá. De repente tenho o Edgar Allan Poe junto ao Alves Redol e junto aos Maias de edição antiga um livro da Dória Graças Dias, “ As Casas”, que já nem sabia ter. Vou leva-lo para Londres… sim, porque no meio desta confusão ainda tenho as malas abertas para a proximidade de partir. Hoje o jantar cá em casa teve que ser na varanda da noite quente e o serão foi feito de não saber que fazer. Porque… os livros esses, continuavam sem parcimónia instalados nos sofás da casa. Em atitude de donos de casa. Olho-os agora numa perspectiva mais terrena, mais igualitária. São tantos… e tantos por ler… mas fantástico, fantástico seria que as histórias se perdessem umas nas outras, se misturassem as folhas, se trocassem as personagens… suspeito que será isso que poderá acontecer no meu sofá. Porque o mistério esse, começou com o pintor que desapareceu.

segunda-feira, junho 04, 2007

Não sei se diga

Sabes, antes apenas acontecia.
De cada vez que agora o dizes

arrastas passado como quando nos anoitecia

levanta-se o mesmo vento descosem-se cicatrizes

da memória que respira sobre o dia.

sábado, junho 02, 2007

Doze Naus

O lançamento esta noite, em Coimbra, do livro «Doze Naus» de Manuel Alegre, aqui à livraria Almedina.

"Na poesia de Manuel Alegre -- e não apenas naquela que obviamente imprimiu aos seus poemas a sua aura inicial -- existe uma consciência profunda do tempo trágico que a título pessoal ou colectivo lhe foi dado viver (...) Porventura o mais dilacerado canto a um país impossível, a um destino colectivamente frustrado e idealmente exemplar, num momento em que o sentido da sua aventura vacila e se perfila diante de muitos portugueses como nebuloso ou mesmo inviável. "

SAGRES

Nau de Sagres nau de pedra nau abstracta
Só ela diz ainda a rota exacta.

De vaga em vaga a alma não sossega
Só em Sagres ainda se navega.

Alegre, Manuel, Doze Naus, Dom Quixote, Lx. 2007

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