domingo, março 30, 2008

Linha do Tua

Recebi, e porque cabe na nossa Linha, transponho.

A Linha do Tua é uma linha de caminho-de-ferro de via estreita, que liga a estação da Foz do Tua, inserida na Região do Douro Vinhateiro – Património da Humanidade (UNESCO – 2001), onde passa a Linha do Douro, à cidade e capital de distrito, Bragança. É uma obra-prima da engenharia portuguesa com 120 anos de História, cujo arrojo permitiu a passagem dos comboios pelos rochedos intransponíveis do vale do Tua e pelas serras do Nordeste Trasmontano. Movimenta todos os anos dezenas de milhares de turistas que aqui vêm de propósito para visitar o vale e viajar no comboio, em união com o turismo no Douro – com a reabertura da Linha do Douro à Espanha serão ainda mais – e milhares de outros passageiros, sobretudo locais, que não dispõem de outro meio de transporte para além do comboio, para as suas deslocações diárias – escola, centro de saúde, feiras.

Não obstante todo o valor que a Linha e o Vale do Tua representam a nível nacional e internacional, o Governo pretende impor, contra o parecer de vários organismos idóneos e contra o bom senso que a todos os governantes é exigido, com ilegalidades e uma celeridade imprecedentes, a construção de uma barragem na foz do Tua, cujas cotas projectadas irão submergir parte da Linha do Tua, deixando-a sem ligação à Linha do Douro, vital à sua sustentabilidade e manutenção como eixo principal de comunicação da região.

A SUA COLABORAÇÃO É IMPORTANTE.
SE SE REVÊ NOS OBJECTIVOS DESTA PETIÇÃO E DESTE MOVIMENTO,
ASSINE-A.

http://www.petitiononline.com/tuaviva/petition.html

Infância a sul


Fomos para sul ter com M e X. Há vários anos que o fazemos. Temos este sul, para onde M foge com a vida e os livros, e nós acabamos por definir esta geografia de encontro.

São as mesmas as dunas mudadas de vento, é o mesmo o sal do mar, é igual o sabor do pão alentejano tão levedado quanto as conversas que temos.

Mas as crianças crescem e já fogem de manhã pela portada em direcção às dunas, inventam histórias que fazem crescer até ao mar, não dizem nada e já tem o mundo até à praia. Nos primeiros tempos, levamo-los lá para apreenderem, hesitantes, a andar e saberem o cheiro do sal. Cresceram. Já sabem os caminhos todos até ao mar. Ousei procura-los, para além das dunas, e desatou a chover como maldição.

Vejo-os, ao longe, sobre a praia ou no contorno da falésia ocre e penso que estão a fazer o vento na memória da infância. Talvez um dia se lembrem deste tempo, destas brincadeiras infinitas, de terem inventado histórias enquanto molhavam as calças até aos joelhos, da sensação conspirativa de combinarem a hora de se acordarem e de fugirem enquanto os pais se deixam no sono, de mais cedo e de forma mais secreta terem ido saber do azul que fica além das canas que arrastam para fazerem uma cabana.

Vejo-os, ao longe, e penso que esta é a longitude da infância, o lado bonito da memória, aquele que tenderá a ficar como sal.

M levou e tem pousado na sala um livro da Sara Adamopoulos, sobre a infância, partindo do depoimento de diversas figuras públicas, do qual li e gostei muito do prefácio do António Barreto. Fala ele do engano que fazemos da memória da infância e da relevância que ela, memória inventada ou não, atribui à felicidade quando a infância é também dolorosa e triste. Tão verdade.

Mas aquele vento sobre as nossas crianças, tendo o mar para além das dunas, é longitude. A fuga, não comunicada, para fazerem uma história que era só deles é o território das suas vivências. Estes foram uns dias bonitos e eu fico, interiormente feliz, de os verem fazer o que não devem para além de os ver inventarem as horas, a vida e o mundo todo. De se sujarem todos, de terem segredos, de andarem em bando, de não os ouvirmos horas a fio, de se instarem na casa branca ao lado da nossa casa branca onde, não nos esquecemos deles, mas lembramos de nós.

Tão simples. Afinal nós ( eu, M e X) encontramo-nos sempre, porque continuamos a fazer a nossa infância. Que mais fazemos senão envelhece-la, a infância, juntas ? Estamos sempre nesse ponto inicial da eternidade. Desta vez, a sul. Com o sal a vir no vento e no vagar da nossa felicidade.

sexta-feira, março 28, 2008

As boas luzes

Tenho boas memórias das serras. As minhas serras, porque me lembram sempre boa gente. E que fazer das gentes desta serra onde hoje pernoitei, que dizem morta nas estatísticas, quando nos recebem e partilham todos os segredos das suas alegrias? Esta noite, ali no Vale do Boi, lembrando o Ti Carlos, havia gente viva, que a propósito de uma inauguração juntou as mãos desatadas, aconchegou o frio com xailes e boa fogueira de oliveira, pôs mesa farta como um altar de Páscoa, brindando-nos como se fossemos deuses maiores a propósito de um subsídio atribuído. Amanhã logo pela manhã há trabalho. Recolhem à cicatriz da vida, desmontada a festa. Este Portugal está vivo, ainda que no Terreiro do Paço já estatisticamente combalido.

terça-feira, março 25, 2008

Do corpo

As mãos que ainda uso têm a pele seca como a crosta do barro antes do arado. Já fizeram coro com quase todos os poemas escritos. Nelas há três ou quatro dedos que já não sei para que servem: cinco ainda coçam os ombros, dois seguram cigarilhas, outros cinco unem-se num copo de vinho como os manifestantes na avenida, dois ou três (não posso precisar) dançam sobre as teclas, dois apenas seguram selos a quem levam humidade para cartas inacabadas. Os olhos são velhos vitrais. Lembras-te quando ainda eram inacabados para a absorção da tua formosura? Agora são pintura! As entranhas estão gastas. O coração cheio de arestas. O fígado um passe-vite para massas espiral fusilli Milaneza. O estômago colecciona murros desprevenidos e cicatrizes do tempo em que celebrava no prato a festa das perdizes. Dar-te-ia um rim, doado com amor, se nele ainda tivesse filtro para filtrar, nem que fosse o último café de que contigo me lembro na esplanada de Copenhaga. A bílis expurga o último vento do caminhante, tão irresponsável como o nosso desejo de partir. A cabeça tem gigas de memória que nenhum computador pode suportar. As pernas que ainda uso têm um quebra-mar no andar, a dança do arrastar. Já foram velozes, quando veloz era a minha vida. Uns lêem droga no cabelo. Sem drogas no corpo, pronto, - tirando os teus olhos às vezes atentos -, como dizia o velho amigo Morgado «eu, que saltei muros de dois metros, tropeço agora num cabelo.»

As mãos que ainda uso têm a pele fina como o vidro dos cântaros de barro. Estão disponíveis para que delas se escrevam novos poemas. Sei dos dedos todas as funções: apertar-te as mãos, colher-te frutos, discar o teu último número do telemóvel e com eles acabar as cartas inacabadas. Os olhos são espelhos. Que tempo aqui te demoras a ver-te? Agora são o teu godé das pinturas! As entranhas estão vivas. O coração redondo como os teus seios. O fígado uma esponja que usas para o banho. O estômago uma ânfora onde guardas os untos mais delicados. Dou-te um rim, doado com amor, com filtro para filtrar o último café na esplanada quando formos a Copenhaga. A bílis retém o desejo de ficar. A cabeça tem gigas livres de memória para que o futuro registe os caminhos que faremos. As pernas que ainda uso têm um quebra-mar no andar, a dança do desejar. Ainda velozes, quanto veloz é a minha vida. Uns lêem droga no cabelo. Com drogas no corpo, pronto, - os teus olhos às vezes atentos -, ignorando o velho amigo Morgado «eu, que saltei muros de dois metros, tropeço agora num cabelo.»

segunda-feira, março 24, 2008

neve


Chegar de férias.Definir uma linha no tempo, dividir o mundo num meridiano. Fazer, num instante, o tudo em quase nada. A distância à vida e a redução de quase tudo a uma pequena longitude. Respirar depois o frio e a distância. Ter o vagar para todas as possibilidades.

Ás vezes nevava. A estrada cobria e o longe era branco. O olhar espreitava pequenas certezas, brancas. O frio, que soube depois, também chegou a este lado do mundo.

Férias é parar o tempo. Definição de um qualquer meridiano que deixe tudo longe connosco lá. Viver o complementar do mundo.

Fui ao frio e voltei. Persiste o frio num vento que não trouxe.

Inês Pedrosa


É uma «coimbrinha» que acompanho amiúde. Dois livros comidos como ovos de um folar de Páscoa à luz da luz do Pe. António Vieira. Fica o desafio a quem ainda não comeu.

Pedrosa, Inês, A Eternidade e o Desejo, Dom Quixote
Pedrosa, Inês, No Coração do Brasil, Dom Quixote

quinta-feira, março 20, 2008

Quadratura do país

Na «Quadratura do Círculo» de hoje, Pacheco Pereira sintetizou de forma certeira a prática histórica e a actual situação política do país. O PSD convive bem na lógica intrapartidária, entusiasma-se nos almoços e jantares do mundo autárquico, mas não tem um discurso para Portugal. É histórico, tirando o período de Cavaco. O PS, de intrapartidário, tem ciúmes avulso. Da lógica autárquica, moendo na moela, substitui do palanque à última da hora candidatos pré-anunciados, avocando outros a benefício da bandeira. Mas tem em Sócrates uma dimensão nacional. Neste campo, esgrime o CDS, o PC e o BE a sua ínfima dimensão nacional. O PSD vive um erro de casting, confrangedor na reportagem de Menezes na SIC. Os pequenos somam ao PS as linhas da quadratura. O PS rega a rosa e floresce. Os outros são a relva onde a rosa faz sombra.

terça-feira, março 18, 2008

Bradar ao Gregório e a Moisés

Rembrandt
O “Osservatore Romano”, folha dos veludos e folhos do Vaticano, divulgou aos sofredores, que aos tradicionais sete pecados capitais teremos que somar outros mais. Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça, já era. Está provado que são praticados com regularidade desde o velho Gregório. Este Papa, bradando ao Gregório depois de uns cálices sagrados de vinho de missa, acrescentou ao pecado, «vis comica»… pedofilia, poluição do meio ambiente, aborto, tráfico de droga, riqueza desmesurada e manipulação genética. Dos antigos em todos pequei. Dos novos, não tenho registo a acrescentar. Gosto mais de contrariar os dez mandamentos do legislador Moisés, quase todos, excluindo «honrar pai e mãe» e «não levantar falsos testemunhos». No resto sou neste tempo de Páscoa um pecador exemplar, contrariando as tábuas da lei. Estou apto para o condomínio do Inferno. Lá nos veremos nas reuniões trimestrais.

domingo, março 16, 2008

Eliot Spitzer

Parece que o Governador do Estado de Nova Iorque foi apanhado na rede da prostituição que o próprio combatia. Demitiu-se, tendo ao lado a mulher americana do costume. Se fosse questionado, como é típico e épico e vómito dos media americanos, poderia ser acusado de defender uma causa sem conhecer os dossiers. O homem entendeu estar a par do assunto: contratou, ao que sei, prostitutas a 3.500 euros/hora. Ora aqui está a sua incompetência, dinheiros públicos mal gastos e razão da sua demissão. A esse preço, como ouvi há pouco na TV, não eram prostitutas, eram Boeings e, acrescento, no nosso Portugal, seriam facturas de hélis para os incêndios.

quinta-feira, março 13, 2008

Vidas no Sicó

O nosso trabalho é um prazer. Gente séria que trabalha comigo, abriga uma onda onde trabalho ainda é alegria. Insultamo-nos com classe. Um privilégio de quem quer ser parte. Admiramo-nos com classe. Um privilégio de quem reconhece no outro as suas capacidades. Entretemo-nos com classe. Gostamos uns dos outros e isso é o privilégio dos simples. Quantos nos gostariam de somar a nossa vida às suas vidas! Hoje, a combater o «You Tube» que ia ouvindo, por vezes desalinhado nas secretárias do serviço, liguei o iPOD às colunas do computador e toda a tarde bateu música nas orelhas dos amigos da nossa casa grande do trabalho dos dias. Sei que é um desacerto das tarefas dos costumes, mas, agradecido à vida, não temos balcão de atendimento público concorrido nem anfiteatro para dizer do que fazemos. Cumprimos! Trabalhar e cantar (ouviam-se dos gabinetes vozes cantando em sussurro que nunca imaginei que soubessem cantar!). Depois distribui em copos pequenos de plástico um digestivo sumário (irish wiskey em dose medicinal!) por todos os solidários amigos do meu trabalho, festa avulsa sem santo, ordem de serviço para beber na próxima meia-hora, como um salmo a cumprir neste dia do calendário. Assim nos aturamos. Assim nos consumimos como velas alegres. Vivemos tantas horas juntas, tantas horas juntos, que perturbamos a ordem religiosa das famílias. No aleatório da música foi passando tudo. O meu arquivo, o meu coração cantado do peito. O trabalhinho do dia correu bem. Sabes isso quando te sentes no teu serviço realizado. Enquanto me derem esta liberdade de animar os amigos com quem trabalho, a festa continua. No fim, o RB, viciado no «You Tube», disse para quem estava: agora tenho de ir para casa ler Fernando Pessoa! Deixo a dica e uma música que passou:

LIBERDADE
Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada, estudar é nada.
O sol doira sem literatura. O rio corre bem ou mal, sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...




terça-feira, março 11, 2008

Quem quer ser milionário?



Por vezes apanho o jogo e gosto de ver. Hoje, um candidato quase, quase médico, média de entrada de 18 vírgula muitos, solicitou a ajuda do público para saber onde joga actualmente o DECO. Nisto do futebol, o público não falha. Muitos porcento responderam «FC. Barcelona». Quando o Jorge Gabriel lhe confirmou a resposta, ele teve uma daquelas expressões de alívio só comparada se a pergunta fosse «quem é o presidente da Birmânia?» e o público tivesse respondido com os mesmos 18 vírgula muitos, «Hu Jintao!». Depois sabia «A origem das espécies» do Darwin, (saberá do blogue do FJV?) - era o que faltava num quase, quase médico! Amanhã vou-me sentar no sofá para ver onde chega. Estou curioso. Neste jogo, como na vida, penso que devemos saborear, saber um pouco de tudo, atitude «beija-flor», nem o oito nem o oitenta. Na primeira versão portuguesa ganhou uma tipa que adivinhou quem escreveu «O Que Diz Molero». Lembro-me de saltar da cadeira e dizer alto (penso que a Mónica ouviu no Porto!!!) DINIS MACHADO! Mas daqui admiro a coragem do quase, quase médico de ir a jogo, coisa que não tenho, sou um jogador, «beija-flor» de sofá.

JPP by Ana de Amsterdam

"(...) Gosto sobretudo do uso que faz da liberdade. Há poucos homens livres. Gosto também de certa arrogância, do modo como encolhe os ombros e sorri quando o Jorge Coelho, sibilando as palavras, justifica cada gesto, cada política, cada opção, cada traque que o primeiro-ministro dá. Gosto do Pacheco Pereira mesmo quando discordo dele. E gosto da barba, do cabelo revolto, da gargalhada certeira, da pancinha, do olhar irrequieto. (...)"

entre os mais belos pedaços de post que há na blogosfera, a Ana às vezes escreve coisas que me são assim exactas.

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Linha

© João Moreno

Podes mudar os carris
senhora do teu nariz.
Fazer-me herdar uma data
que não quis.

segunda-feira, março 10, 2008

helena no comboio - I


" a máquina subtil"

" (...) O destino é uma máquina subtil, embora muitas vezes a sua evidência nos escape. Convém sobretudo estar atento. "

José Eduardo Agualusa, na crónica de domingo na Pública

PROF MANIF

Percebo o JPN, respirando o país em contramão, sobre a manif do fim-de-semana. Mas aconselho também que leiam MST no artigo «A rua e o beco» no Expresso de sábado. Há coisas que cheiram assim a contramão desde o Sottomayor Cardia.

domingo, março 09, 2008

crash

ontem vi-te e o mundo parou. não é imaginação minha, foi sempre assim. conheci-te em frente a um doente, dos nossos primeiros, e a noite (a música, a multidão, as luzes, a festa) desapareceu. os teus olhos de desamparo a instalarem um estado de emergência do desejo, saber quem eras e sofrer o trauma do impossível. desde então, se te vejo, sucedem-se as catástrofes. às vezes é nos telejornais, a tua beleza trágica e exasperante a disparar sirenes e alarmes e a deixar-me na boca o gosto do sangue quente. outras vezes, entro em coma e quando acordo estou em casa e não sei se voltarei a ver-te. noutras ainda, como ontem (não foi imaginação minha), duas ambulâncias a moverem-se lentíssimas e toda a rua à espera. tu a conversares e a rires ao telefone e eu a ver-te. os teus olhos que os anos todos que passaram tornaram ainda mais fundos e perigosos (capazes de me encarcerar em vácuo), o teu riso (senhor de me cegar). quando te perdi de vista, numa vertigem (de terror e vontade), acelerei o carro em direcção à parede mais próxima, certa de que me socorrerias e de que, no momento em que te tornasse a olhar, como sempre, tudo o resto acabaria.


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sábado, março 08, 2008

Sábado a Oriente

Habita a casa ao lado um funcionário da embaixada Líbia em Lisboa. ( Só por acaso, um simpatiquíssimo casal jordano à alguns anos radicados em Portugal, no andar de cima). Restringimo-nos ao trato cordato dos cruzamentos matinais da semana. Acontece que ao sábado, depois de almoço, ao primeiro cheiro de sol, para além dos tapetes todos pendurados na varanda, a música exala da casa, sobre a qual ainda se ouve o cantarolar do dono, a entrar-me pela portada da varanda. De repente, ouço o mundo como se ele viesse todo do Oriente. A facilidade de sentir o cheiro a especiarias, o buliço das ruas e do trânsito, a estranheza indecifrável do linguarejar dos vendedores, o som das mesquitas , quando apenas tenho este canto da casa, a chávena do café forte e me preparo para folhear os semanários. De repente o mundo lá fora pode ser rente ao Mediterrâneo, eu possso acreditar que tenho chá na mesa e me preparo para folhaer o Alcorão, que sopra o siroco quente e seco e a poeira me faz fechar as portadas. De repente estou em Tripoli. Tudo isto sem me mexer da cadeira. Tudo isto com a certeza do Atlântico.

a morte trouxe-lhe o rosto

A morte trouxe-lhe o rosto. Nunca dela vira um retrato senão agora, depois de impossível. Sabe-lo, não me era preciso.

Soube tardiamente da sua morte. Às vezes acontece não saber nada do mundo e depois sou supreendida assim. Maria Gabriela Llansol. Ainda perguntei “ morreu ?” como se isso nunca fosse possível ou isso não fosse nada.

Conheci-lhe então o rosto. Mas eu acho que não precisava dele, de o saber. Ela era uma mulher que, em mim, se materializada na escrita. Se dela, cedo, comecei a admirar as palavras mesmo sem as entender, para quê saber do rosto ? Não foi assim um acréscimo, sabe-lo. Como não foi um decréscimo, saber–lhe da morte.

Confirmo agora tudo isto, porque a brisa da tarde continua a mesma, os ruídos do mundo chegam-me longínquos e os barcos, ao fundo, seguramente se fazem ao mar. A mesma ordem sussurrante da vida. E sem ela, tudo continua igual.

Talvez ela tenha dito as palavras todas e morreu.

Eu tenho-as ali, no mesmo lugar da estante, a apanharem a mesma brisa da tarde.

Memórias



Há pouco no bar, onde passo rápido por um café, destacava-se na TV ao fundo o programa do Malato e Fernando Tordo. Acordes de tourada. Memória. Tinha 9 anos quando aquela música saiu ao público. É das primeiras que me recordo do Festival RTP da Canção. Na altura não percebi a carga política. Ouvi-la hoje, perceber Ary dos Santos e os seus cavalos à solta, fez-me cantá-la baixinho até ao fim. Continua actual. Alguma emoção, pois!

sexta-feira, março 07, 2008

Um bom livro

de Patrick Wilcken - Império à Deriva - a corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821 - para acompanhar a ida de Cavaco ao Brasil e este rasgo português de mobilidade, próprio de um povo com raízes por tudo o que é terra do mundo. Aqui está um excelente argumento para um filme se existisse uma política cultural no Ministério da Cultura. Que tal, Sr. Ministro agora empossado, lançar esse desafio aos realizadores portugueses? Custaria mais que um estádio do 2004?

quarta-feira, março 05, 2008

Viver

Apetece-me pensar que pouco mais há a fazer nesta terra do que inspirar. No substantivo e no verbo. Nem olhos demasiado abertos, nem boca húmida, nem ouvidos atentos, nem cabeça a latejar passados, apenas um nariz disponível untado a Vicks Vaporub, descongestionando ventos. Acomodar as felizes palavras que recebemos e estender dedos armadilhados para os sítios onde tocarás o prazer. Aí respiramos outra vez. Não é ocupar o teu tempo, cheio que está da azáfama dos dias. É ocupar a tua memória, essa arca que transportas como uma árvore, temendo que eu caia, nós ou nozes, nogueiras antigas, temendo que lhe partam os frutos.

terça-feira, março 04, 2008

Cumprindo – 6 insignificâncias

Gosto de arrepios, de fazer a estrada, mal iluminada, do Guincho pela noite dentro e pensar constantemente “ e se ficasse aqui atolada na areia das dunas que o vento traz à estrada... “.

Gosto da perversão enganosa de que faço eu o tempo. Gosto muito de perverter horários laborais e de me decidir a deixar chegar tarde só porque fui tomar um pequeno-almoço vagaroso junto ao mar ou só ficar sozinha em casa e enche-la de luz e vê-la como em poucas horas a vejo. Ou desaparecer uma tarde porque me apetece confundir os hábitos todos, ir buscar as crianças à escola e fazer qualquer coisa com elas que não se deveria fazer em dia de aulas.

Gosto de andar apaixonada por uma música, ou álbum, e sou daquelas que, nestas alturas, gosto da A5 cheia de trânsito porque demora a chegar, ou seja, prolonga o prazer por razão alheia.

Invento muitas histórias por dentro e quando morro de tédio da vida, vivo-as sem que ninguém as saiba. Chego a ser feliz, assim.

Gosto de prender os pés ao fundo da cama, entre os lençóis e o colchão, e embalar-me devagar até adormecer.

Gosto do escuro e do silêncio de sair de casa ás três da manhã para ir comprar tabaco à bomba de gasolina mais próxima. Acontece quando estou absolutamente absorta a fazer qualquer coisa apaixonante e os cigarros, que talvez não fume, acabam. Nada pode interferir na intensidade desse estado e ir comprar cigarros é continuar... gosto dessa espessura do escuro e do silêncio.

Gosto de ouvir as pessoas a conversarem em sussurro, nas salas de cinema, antes dos filmes começarem.

Cumprindo - 12 palavras

Aleatório – sempre gostei desta palavra que me aparecia, associada a passeio, nas sebentas de matemática como um modelo facilmente transposto para as correntes eléctricas. Passeio Aleatório. Lembro algumas tardes de conversa, sobre o tema, em berengues de madeira frente ao atlântico. Veio ainda a ser, mais tarde, o nome do programa da Mónica e do JP na rádio Caos, ás sextas à noite, dos quais ainda guardo umas gravações em cassetes antigas e roufenhas. Continuo a achar que a trama da vida de cada um cabe, inteira, nestas duas palavras associadas: passeio aleatório.

Buenos Aires – nunca lá estive. Não é cidade, não é tango, não é Borges. É espécie de geografia para um lugar do mundo que existe em mim.

Photo – sempre assim escrevi a palavra quando me referia ás minhas fotografias a preto e branco. Durante alguns anos, na doçura triste dos aniversários, entretinha-me a gastar um rolo a preto e branco e a fotografar-me sobre um espelho, quase sempre com o rosto escondido na objectiva. Numerava-as, photo 1, photo 2,etc e em cada uma delas escrevia “ parabéns Miss Helen “. Algumas, ainda hoje as tenho.Acho-as mais bonitas agora, com a doçura do tempo.

Cartas – o amargo da cola na língua, e o doce e o desespero das palavras fechadas dentro delas. A espera da resposta ou do crescer do mundo inteiro.

Traição – sempre a usei, a palavra, no sentido unívoco e feliz de ser a vida a trair-me. Quando ela, inesperadamente, nos trai e nos permite a felicidade num homem, num acaso, num texto, num instante, numa brevidade. Quando a vida se sintetiza num arrepio, numa comoção extrema.

Sussurro – são as palavras que se dizem como verão, com o ar quente da proximidade.

Suculenta – gosto desta palavra per si.

Haverá seguramente muitas outras. Deixo a falta das quatro no pressuposto de haverem palavras que ainda não sei.

Deixou-nos Maria Gabriela Llansol

LIII. teremos

«Quando a lua de terra humana, que passa por cima de todos os outros, tingiu de prateado o fundo do abrigo, a mulher principiou a ouvir um cântico de água monótono que acabou por abrir um espelho luminoso na parede seca. Uma cascata, uma porta fechada, um impalpável de nada.
Olhei fixamente e perguntei, numa nova carta, se o espelho de humidade seria o rosto que reflectiria a nova forma. Que se destacasse.»

Llansol, Maria Gabriela, Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004

segunda-feira, março 03, 2008

Zapatero Y Rajoy

Há uma semana assisti em Madrid, entre “tapas”, ao primeiro debate político televisivo depois de 15 anos no país vizinho. Vi com os espanhóis e vi o seu empenhamento na discussão política, mais de 13 milhões de audiência estimada como se fosse um Real Madrid/Barcelona. Hoje vi do lado de cá, na Televisión de Galícia, o segundo round. Tirando as autonomias e o terrorismo, os problemas são comuns na Ibéria. As mesmas críticas, as mesmas soluções. É um pequeno espelho da Europa que construímos. Insegurança, classe média de cócoras, desemprego, preços a subir nas primeiras necessidades, tudo isto sem solução nos anexos do Tratado de Lisboa. Para onde caminhamos?

domingo, março 02, 2008

ao desafio

matar dois desafios num só post, era do que eu estava à espera para dar seguimento à corrente (ou devo dizer laço?) lançada pelo Joaquim já lá vão umas semanas. e a oportunidade chegou, com uma proposta do Francisco. vamos então a isso: 6 insignificâncias sobre a minha pessoa, incluindo 12 das palavras que mais gosto.

1. com os meus 10 ou 11 anos participei no "Peço a Palavra", um programa no qual crianças faziam de deputados de uma espécie de parlamento onde se discutiam assuntos vários.

2. eu via aquilo a preto e branco na TV e pensava "caramba, também gostava de dar a minha opinião!" daí até me pôr a escrever uma cartinha para a RTP foi um instante e, como eles responderam que sim, um dia lá apareci nos estúdios do Monte da Virgem, em Gaia.

3. numa só manhã gravamos 4 programas. ver a velocidade com que tudo sucedia e a maneira como os espectadores eram enganados mudando as crianças de posição e vestindo uma T-shirt diferente ao presidente da mesa, aniquilou boa parte do meu fascínio pelo programa e pela TV em geral.

4. nunca cheguei a ver alguns dos programas em que participei pois a TV lá de casa entretanto avariou o que nessa época era um obstáculo quase intransponível.

5. algum tempo depois e sem qualquer aviso prévio, recebi pelo correio 4 vales de 500$00 cada (uma fortuna nos anos 70) com os quais a minha mãe decidiu unilateralmente comprar-me uma arca de madeira de castanho para guardar o meu enxoval.

6. essa arca pontificou durante 20 anos sobre a escadaria da casa dos meus pais, nela se acumulando serviços de chã e de jantar incompletos, panos de louça, tupperwares e tacinhas várias. agora repousa no corredor dos quartos da minha casa, cheia das mantas e da roupa de cama para quando a Helena e a sua gente vêm cá a casa.

faltam-me (só? ainda?) 6 palavras mas, como tenho dificuldade em separar as palavras das ideias e, sobretudo, em separar as palavras umas das outras, aí vão não sei mais quantas: saudade, rio, serra, constelação, segredo, despojamento, devagar, rapaz, vertigem, viagem, renúncia, aposta, vontade, vento, maré, ficar, encostar, luz, sombra, limite, proibido. quase todas, portanto, palavras da minha ideia do amor.

(desta não passo a corrente a ninguém porque da última vez que o fiz ninguém me ligou nenhuma)

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Aqui está o que faltava. À votre santé!

sábado, março 01, 2008

coisas boas

"Março, Marçagão
de manhã Inverno
e à tarde Verão"

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