terça-feira, maio 30, 2006

Para Sempre

Também ela me chegou em tempo quente. Maio a arder. A morte me chegou perto. Hoje.

Procurei o “Para Sempre” de Vergílio Ferreira. Pus-lhe as mãos em cima a tactear uma frase sobre a morte. Uma frase bonita, também ela quente e sobretudo imortal. Não a encontrei de entre os sublinhados de 1984, quando o livro li e ele me arrebatou. Não, nessa data a morte não me rondava tão perto da pele e os sublinhados eram outros que não essa imortalidade. Nessa altura tínhamos a eternidade a fazer o tempo. Agora temos a precariedade a fazer o tempo. Agora sim, preciso de frases de morte... sei-a mais rente, reconheço-lhe o respirar e o vazio. Entre a comoção e o calor fica o silêncio.

Não devia ser Maio, não devia ser assim: tão cedo para não se ter futuro. Para sempre.

segunda-feira, maio 29, 2006

Nêsperas


Nos 80 anos de comemoração do 28 de Maio de 1926, quando Salazar começou a dizer ao que vinha, - estórias de hoje ao almoço com a história do meu pai! - cheguei à casa da Gândara e o calor trouxe-me, pelos frutos, a certeza de um novo verão.
A nespereira da avó Cremilde descarregou pela tarde quente uma dádiva de sabores: nêsperas, em tanta abundância quanto dela guardo recordações.
E, logo de seguida, a lembrança do rifão quotidiano do Mário-Henrique Leiria, dito por mim bem alto sem o rigor da voz que guardo do Mário Viegas, que espectacularmente o gravou, lembram-se?

RIFÃO QUOTIDIANO

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Leiria, Mário-Henrique, Novos Contos do Gin

domingo, maio 28, 2006

os mares do sul


a manhã nascia enquanto percorríamos aqueles lugares lavados e vazios. ilógicos àquela hora e àquele silêncio. vimos, nessa manhã tão cedo, a luz as pessoas as cores e nós a acordar. as fotografias talvez não valessem a pena: aquela luz pedia mais que isso. e, no entanto, fotografávamos. eram ofuscantes as cores de Santorini. era esta nitidez ou era ainda mais nítido que isto.

ligamos o gravador e de outra dimensão (fixada anos-luz distante dali) surgiu magicamente a voz de D: “última mensagem: esquecemos há muito as últimas letras do alfabeto grego”, exactamente ao mesmo tempo em que começávamos a soletrar as primeiras palavras do grego essencial: σ’αγγπώ (sim, eu amava-te).

nas primeiras horas da manhã de Santorini fechava-se os olhos às vezes para se conseguir acreditar. tiravam-se fotografias embora se soubesse que aquelas cores não se conservariam em papel algum. percebendo que estava a viver dentro da história de “Os mares do sul”, repeti com os poetas:

leio, pela noite fora
e no Inverno viajo para o sul
(T S Eliot)

estou entre os afortunados que viram a aurora
nas ilhas mais belas à face da terra
à recordação sorrio e digo que quando o sol se levantava
era já velho o dia para nós
(C Pavese)

mais ninguém me levará para sul (S Quasimodo)

(os últimos e parágrafos são fragmentos (adaptados aqui e ali) de 3 poemas, no conjunto dos quais se centrava o enigma de “Os mares do sul – um folhetim para o Verão”, história policial romântica - na sua linha mais típica - que Manuel Vásquez Montalbán publicou ao longo de vários números do Expresso, em 1986).

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quinta-feira, maio 25, 2006

TIMOR Swifter


Fui dos que se empenhou pela causa timorense. Nenhum povo lutou tanto por tanto sofrer. A independência e a liberdade, - essas certezas plurais que se adquirem e depois apenas se respiram – estavam, estão? conquistadas! Continuam os apoios, há petróleo, há uma Igreja com prática solidária.
Sob o chapéu da portugalidade há 13 nacionalidades que se querem afirmar. Sei pouco disso. Sei, contudo, que o diálogo não é feito com som de armas. E sei que começo a ficar farto.
Percebo que quem com armas nasceu não saiba outra forma de expressão. Não entendo que depois da barbárie no cemitério de Sta. Cruz haja homens que por elas ainda falem.
Cheira a uma nova Angola, aos velhos acordos de Bicesse e protocolos de Lusaca. Cheira a guerra, cheira a fome, cheira a miséria. Como a Polónia, Timor está mal estacionado. Com a GNR, tomaremos conta da ocorrência.

Andámos todos de pano branco nas janelas para quê?

Vestidos de branco vi hoje a Sérvia-Montenegro dar um “banho de bola” a Portugal. Partisans de Belgrado, velhas estrelas vermelhas. O referendo ditou dois países. Acabou a Jugoslávia de Tito, mas lutaram como um só, acto público e político de quem se une para ganhar.
O petróleo vai por concurso democrático/financeiro para os italianos, bella ciao.
Os panos brancos que novamente exigem sairão de uma caixa “Swifter” para limpeza étnica com patrocínio da Indonésia?
Bella ciao, oil.

quarta-feira, maio 24, 2006

A boa ansiedade de partir


Falaram hoje no trabalho que posso ter de partir. Para Kinsale, West Cork, Irlanda. Todos temos esta boa ansiedade quando nos dizem que é tempo de partir. Em mim reflecte-se na boa disposição e nas minudências do preparar da viagem. Não sou feito de preocupações com roupas, malas, do tempo que por lá fará. Se não conheço vou sempre antes: livros, mapas, história e estórias do território, o copo que se bebe, a música que toca, o património, a língua com que nos faremos compreender. Depois vou ao Google Earth colocar um pin inseguro. Já fiz, draft. Kinsale tem por perto rio que chega ao mar. Tem gaélico. Tem vento insular. Estou ansioso por partir. Se for levo caderno de viagem, máquina para fotografar. E depois, só depois contar.
Vá lá RB, diz-me que sim!

Pensando



Durante muitos anos mantive-me perplexa perante mim. Fumava cigarros para não se notar, alargava os gestos ou a reserva mas não achava nada de muita coisa.

Fascinavam-me as pessoas afirmativas, de expressão fácil e verbo escorreito. Sobre qualquer assunto achavam qualquer coisa. E eu que achava tão pouco de quase tudo... Intuía o desacordo e em geral detectava a vulgaridade. Pensava para dentro “ obvio!” e passava à fase de achar intrigante as pessoas capazes de expressar o obvio com tal empenho. Sempre achei que o obvio é um pressuposto de base, não explicitado, e que a conversa deve ser o acréscimo. O a mais. A diferença. O contributo.

Foi durante muito tempo uma perplexidade em mim não dorida, mas inexplicável. Fui acomodando depois na ideia de que esse achar quase nada sobre quase tudo era sinal de sabedoria, alguma inteligência, de uma coerência instintiva.

Fui também apreendendo que o obvio não é universalmente obvio e que às vezes ele carece de ser explicitado como começo de conversa. Como quem diz, vamos começar mas começamos os dois daqui. Marcar visível a linha de partida.

Fui, com o sábio tempo, passando a ser mais despudorada e dura a saber de mim. Depressa concluí que não era uma pensadora mas sim uma intuitiva. Demorei mais a acomodar o jeito a este saber de mim, mas a coisa aconteceu. Quanto me era mais fácil sentir, saber e explicar pessoas e comportamentos...bastante mais do que com a abstracção de uma ideia. Com essa, era capaz do entendimento do seu argumento como o era do seu contrário. Decidia por intuição quando ela se me revelava clara.

Assim me assumi como entendedora de matérias voláteis e pensadora de coisa nenhuma. Passei a gostar, então, de quem materialize o pensamento por mim. Mo diga. Mo roube. Mo conte para poder espessar as coisas que sei, ou melhor, que sinto. Que os haja, e muitos, e que nada mais façam que isso mesmo.

Fazedora, fazedora... tenho a capacidade de, mas não o sou. Tenho em mim um natural deleite preguiçoso e uma convicção íntima de que é preciso não fazer nada para que as coisas aconteçam por dentro. Que essa preguiça é fazer o tempo por dentro. Permitir-me ao tempo.

Quando quero muito, muito faço fácil. Mas poucas vezes quero muito, muito.

Continuo a fumar muitos cigarros e a alargar os gestos ou a reserva... mas muito convicta de assim ser.

terça-feira, maio 23, 2006

Políticos


Trabalho diariamente com políticos. Sei-lhes dos desejos, aspirações, contorcionismos, sei-lhes das solidariedades, manobras eleitorais e da fina arte da punhalada nas costas.
E sei daqueles que fizeram uma vida convictos de servir o bem comum.
Distingo-os normalmente pela capacidade de pensar. E de escrever sobre o que pensam, interpretando-o nas práticas do dia a dia.
Muitos são maus, beras, fazem do fato e da gravata a cartilha e, da cabeça, sabe-se que a têm – como dizia DA – porque lhes pousa constantemente caspa nos ombros.
Dos que pensam há três categorias:

Os que só pensam.
Os que pensam e fazem bem esse pensar.
Os que bem pensam e são incompatíveis com o sistema onde se movem.

Os que só pensam são os Pachecos Pereiras deste país, sem ousar nunca cargos públicos ou risco de investimento privado, tirando a cativante cadeirinha do Parlamento Nacional ou Europeu e os espaços das TV’s que criticam, onde, bem pagos neles todos, debitam soundbytes de opinião.

Os que pensam e fazem bem esse pensar são as Lourdes Pintasilgo, disponíveis, solidárias, permanentemente na busca das tarefas sociais, plurais porque urgentes e, por isso, tornadas públicas nos poucos espaços da justiça.

Os que bem pensam e são incompatíveis com o sistema são os Carrilhos, porque o narcisismo é para eles a primeira regra da prática política.

Depois, na radial destas figuras, há os que fizeram uma vida convictos de servir o bem comum. São muitos. Silenciosos. Não têm nomes. Não têm placas nas ruas. Não têm fotografia destacada nas sedes partidárias. Mas são aqueles que adquiriram uma pose de andar:
- corpo alto, olhar firme, cabeça levantada!
Não souberam nunca do fio da lâmina de um punhal.
Com estes bebo um copo e ouço ainda do seu pensar!

segunda-feira, maio 22, 2006

Manuel Maria Carilho em directo

chatíssimo, descontrolado, paranóico, irreconhecível...

desculpem, mas não me aguentei!

post-scriptum: Pedro Mexia faz aqui (e JPH aqui) um excelente resumo do quadro;

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H

H

Quanta estacaria mais a madeira te dará para continuares o caminho?
Quantas vezes mais virei aqui, ou àqueles lugares mais à frente que felizmente ainda desconhecemos, apenas para te dizer que o fim de cada Maio é sentir certeiro que o meu coração pulsa por ti um carinho?

domingo, maio 21, 2006

H: por muitos!

há muitos anos (por tua causa e da R) que este é o meu dia internacional da amizade devota e eterna. parabéns e bom dia para as duas.

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sábado, maio 20, 2006

Sombra

(Jorge Molder)

Faz hoje anos o nosso amigo Z. Lembro a data e a pessoa.

É aqui o começo de falar de pessoas de sombra. Amigos que foram luz e num elipse , se tornam sombra projectada sobre a memória. Deixaram-se como vestígio, arqueologia de um afecto. Fugiram obstinadamente do nosso existir, e deixaram o deserto para lhes recordar a sombra.

Z foi um homem assim. Fez-se connosco, deixou-se doer connosco muito para além do riso fácil e do humor contagiante, fotografou-nos e desenhou-nos e um dia deixou o mundo ao nosso lado. Deixou-nos simplesmente. Deixou-nos apesar do tudo.

Haverá entendimento para as partidas de quem parte porque decidiu, só, partir?

Talvez não. Talvez nunca. Fracturas. Riscos que rasgam papel. Partir assim é passar da luz para a sombra, passar de fotografia a negativo. É retirar-se da pele dos amigos. É acenar e engolir para fora de nós.

Se foi por uma mulher, pouco importa. Deixou-nos. Fez-se sombra na memória quando ela respira.

sexta-feira, maio 19, 2006

ontem foi quinta de leitura

no Teatro do Campo Alegre e o escritor convidado foi José Luís Peixoto. nestas quintas-feiras mensais, actores lêem textos (poemas, ou, como ontem, fragmentos de um livro) de um escritor que também está presente, também lê, e fala aos presentes um pouco sobre os livros e sobre a escrita.

Cair através do céu dentro de um sonho será, depreendi ontem, o próximo livro de JLP. é um livro sobre a infância. JLP não o disse, disse outras coisas: explicou o fio condutor do livro, explicou como "este livro" (disse que não conseguia dizer o nome do livro enquanto ele não saísse e então dizia sempre "este livro") se atravessava no caminho de morreste-me e como tinha sido que demorara quatro anos a escrevê-lo.

mas os textos, lidos magistral e profundamente pelos actores do Teatro e, dolorosamente, por si próprio, foram claros: tresandavam a joelhos esmurrados e a bibes com nódoas, reluziam no brilho único que só o país de cristal da infância emana, inundavam-nos do espanto que é, aos cinco ou seis anos, começar a conhecer os outros, devolviam-nos o fascínio perdido pelo mundo dos mais crescidos. se eu fosse escritora, acho que só conseguiria escrever este livro.

definitivamente, as palavras escritas quando ditas (se bem ditas, benditas!) entram dentro de mim por caminhos quase mágicos e trazem prazeres diversos do da leitura simples. só sabem a pouco, por aqui, leituras como a de ontem.

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Da quase sempre razão


Tens quase sempre razão quando há razão.
Discutes o meu corpo que bebe, cedo enruga,
come desmesuradamente.
Não cabe na camisa, caem as calças da barriga,
defuma de novo a chaminé antiga as cigarrilhas.

Quando chego tardio é um sufoco. Homem glaciar. Essa finta
previsível de apenas ficar.

Tenho quase sempre razão quando há razão.
Gostas de me ver silencioso no sofá do canto,
leitura cuidada de um livro, esse corpo escondido, copo bebido
e a mão disponível para te dizer o caminho «vem para aqui»,
ouvindo a música que toca por ti.

Quando chegas tardia é vontade de ficar. Esse vosso bom
fingimento de mulher, um copo e o corpo a adiar o enrugar.

quarta-feira, maio 17, 2006

Campo Pequeno: Sol e Sombra



SOL Quis a porta dos sustos que a vida me levasse a trabalhar no território onde existe a mais antiga Praça de Toiros do país – Abiúl! Assumi a organização de uma corrida de toiros, fenómeno mediático na promoção das gentes, mais tarde lição de vida. Prefiro toiros a touros. Fica o registo para o «paso doble» seguinte. Ouvir no altifalante «a próxima pega é dedicada a D» ver aproximar-se o pegador, dedicar-me a pega, eu de pé com o respeito das cortesias, dizer «sorte» e depois um turbilhão de homens e animal pelo ar. O pegador partiu uma perna. Deus põe, o toiro descompõe. No fim bebemos uma mão-cheia de Sagres fresca juntos, eu a pedir desculpa de pecado feito, o pegador a dizer, a quente, ainda sem gesso, «ossos do ofício».

E é para o território um espectáculo ainda único. Quem entra no café de Abiúl, é mas decisivo ver na TV uma corrida do canal Espanha que a final da Liga dos Campeões do futebol. Há afficíon. Há desejo de ferros compridos, curtos e de palmo. Há fintas na lide de nome Verónica. Há comentários que lembram vozes das antigas rádios do tempo Salazar. Há um Director de Corrida nomeado pelo Terreiro do Paço para averiguar dos rigores, há veterinário para o bem-estar animal, há corneteiro de luva-branca com os toques da disciplina. E há nomes de cavalos e toiros como cromos-jogadores de futebol: amendoim, hortelã, príncipe, castanho, adornados e pesados a rigor. E o toiro cego, o sétimo, para se dos seis toiros, seis, às cinco da tarde, um deles falhar a actuação por quebra da córnea ou pata ou mão falida.

SOMBRA é este estado de alma. Ser parte com dúvidas recorrentes. Fazer ou não parte da quadrilha. Não matamos o toiro na arena, diz a Ministra da Cultura no inaugurado Campo Pequeno, privilégio português. Quem esteve como eu «entre-barreiras» sabe a dimensão da lide, a arte da lide, o desequilíbrio entre ser ou não parte. Neste espaço de arte aprendi entre muitas dúvidas que sobre o fenómeno ainda me assalta uma condição humana - saber ter respeito por quem da arte vive!

terça-feira, maio 16, 2006

smalltown boy


é um facto: os dias quentes acendem a minha memória musical. depois a música vem e invade toda a memória restante. o dia fica tórrido com este Bronski Beat distante que me lembra uma estação de comboios, um rapaz de uma terra pequena, as estradas da serra da Arrábida, uma janela aberta ao vento e o difícil que é para algumas pessoas ser feliz.


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Este lento


Este lento vento.
Este, ponto cardeal assinalado
quando espremes o velho riso sumarento.

Esquece a Este que te perdi o Norte.
Nada na vida é mais subtil que perder por esquecimento.

segunda-feira, maio 15, 2006

Convocatória


Não fui convocada. Não houve selecção onde coubesse nem mundial onde me atirar.

O homem até é meu vizinho, isso mesmo, vive no mesmo núcleo habitacional que eu. Um pouco mais alto, com vista para o mar. É vizinho que cumprimenta vizinho. Discreto. Dá corridinha junto ao mar em hora matinal. Mas nem essa cumplicidade de casa o fez ceder...

Vejam a expressão de manifesta torcidela face à hipótese da minha convocatória. Vacilou entre a minha simpatia de vizinha e a hipótese de convocar menina. Mas torceu o nariz e não cedeu. Resignei-me.

Mister é simpático e disse: “menina... não desista! Alguém a convocará ainda... “. Sorri agradecida. Ainda não foi desta que vou sair em colecção de cromos. Mas aguardo a convocatória que o mister Scolari insinuou.

domingo, maio 14, 2006

GENERAL 100 MEDO


Faria hoje 100 anos Humberto Delgado. O meu pai lembrou-me ao almoço, lido o artigo do “Público”, a votação de 1958.
Contou que chegou quase ao fim da tarde à Câmara para votar, vindo de noivar a sua futura mulher, minha mãe, hierarquias de prazer felizmente hereditárias. Não disse em quem votou, mas li-lhe nos olhos em quem, quando se riu para mim ainda com aquele receio antigo.
Contou que andava um tipo pago pelo regime a entreter os votantes, distribuindo cigarros sem filtro «fumem, fumem», dizia por todo o Salão Nobre. Ao encerrar da votação, um fatinho do regime de chapéu alto descarregou nas urnas chapeladas de votos do almirante, ganhando ali, como em muitos lados, fraudulentamente a velha nomenklatura.

Mais tarde, o amigo “Kremlin” contou-me nas viagens nocturnas de Inverno pelas matas da Gândara no velho MG todo o filme: o nome do chapéu alto, o método da chapelada e o escrutínio feito pelo distribuidor de cigarros com a conivência do sobrepeliz do Pe. Miguel.
Feita a contagem ganhou o almirante Américo Tomaz – o “nequito” corta fitas!
Fica a satisfação que o General fez a sua campanha ao longo da Linha do Norte. Recepções apoteóticas em Campanhã, Coimbra B e Sta. Apolónia.
Assassinado em Villanueva del Fresno, quis a história que, à ignorância do regime, morresse ainda em Portugal por Portugal – Olivença!

Por mim, esta linha estará disponível sempre que um General dessa estirpe precise deste espaço público, passe o meu arrepio por fardas.
Quando vejo tantas vezes maltratada a democracia e, nas novas gerações, tantas vezes ignorada por bem facilmente adquirido, sinto a necessidade de chegar ao micro das nossas estações e falar bem alto no altifalante:
- Vai entrar em Coimbra B um General democrata procedente de Campanhã com destino a Sta. Apolónia.
Em Coimbra B, obviamente, recebo-o!

sábado, maio 13, 2006

Três por três


H. Sinto na boca as boas gotas do gin.
Agasalho-me. Está o frio
da gare vazia quando partias sem mim.

M. Trago o livro e o destino.
Agasalho-te. Está o frio
da beira-rio nas margens do caminho.

D. Chega para aqui.
Agasalha-te. Está o frio
de que gostavas quando um dia te conheci.

sexta-feira, maio 12, 2006

as igrejas - e o tempo

estive há dias em Valadares. na terra que foi cenário da minha infância já não encontro quase nada desse tempo: no lugar do velho cinema estão a construir um prédio qualquer, há agências de bancos de cores garridas ao dobrar de cada esquina, uma loja de chineses, claro, e até a velha e sinistra estação da CP (e áreas circundantes) está irreconhecível respirando um ar limpo e são.

só a igreja permaneceu como sempre a conheci, imóvel e bela

(e não consegui arranjar uma fotografia sua, senão postá-la-ia aqui em tamanho gigante, tão fascinada fiquei neste reencontro),

na sua quietude de árvores, no sussurro dos amigos, também antigos, que se encontram para lá dos seus portões, na paz contagiante do cemitério em seu redor

(em pequena, enquanto a minha mãe ia ao cabeleireiro, costumava percorrê-lo a ler os nomes e as datas inscritas nas campas, tentando entender o mistério da morte, o ser e o deixar de ser, a passagem visível de uma espécie de destino por sobre os laços entre as pessoas, a passagem dos anos sobre a saudade, sobre o amor).

uma das funções das igrejas é, de certeza, segurar-nos ao tempo que passa. lembrar-nos quem somos no que se foi antes de nós. mostrar-nos, persistindo, que quase nada persiste com elas.

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Longa Marcha


Logo pela manhã, na linha do meu caminho, pela esquerda, tem seguido a antiga marcha movida a água benta. Silêncios peregrinos a caminho de Fátima. No andar e andar uns chegam, outros passam, todos partem. Têm vestes de confraria: chapéus, cajados, chinelos e um mesmo colete reflector laranja e verde.
No regresso pela noite, encontro-os mais à frente, pela direita, mais perto do destino, deixando nos olhos do meu carro um rasto de pirilampos mágicos.
Há um destino que os guia nesses passos torpemente decisivos. A ânsia de chegar ao longe dos longes, à plataforma de pedra, ao altar dos tempos, procurando a recompensa por promessa de beijos nos lábios ou na cruz – Maria Madalena ou Virgem Maria.
Aflige-me agora uma preocupação sobre os meus olhos, «princípio de miopia», por não ter visto no rebanho, a pé, um único padre pastor, muito menos da raça dos imperadores - bispos e cardeais. Vi velhos arrastados, homens firmes de cabeça alta, mulheres fragilmente simples, jovens carregadinhos de sagrado e de profano e vi um miudito sorridente, empurrado num carrinho-de-bébé. Sou eu que já não vejo ou a luz celeste dos padres, bispos e cardeais ao andar é tanta que me ofusca o olhar.
Quando Mao decidiu avançar, foi à frente dos seus guerreiros, guardas da ilha de Taipé, fronteiras de Chang Kai-Chek.
Eu, que não tenho mobilidade prometida, vou-me sentar ao plasma a ver a “Marcha dos Pinguins”, outros imperadores. Essa marcha é que me encanta.

quinta-feira, maio 11, 2006

Primeiro as Senhoras


O Mário Zambujal voltou. Excelente. O livro “Primeiro as Senhoras” devolve-me sobretudo aos títulos da “Crónica dos Bons Malandros” e, para mim, o melhor, “À Noite Logo se Vê”.
São personagens ao nível do Molero, do Dinis Machado, nomes fantásticos, vidas quotidianas no mundo da fantasia e de um humor fino e incisivo, crónicas de crónicas, marca Zambujal, lido ontem de seguida sem qualquer resistência.
Deixo um pouco para aguçar o apetite, surripiado à página 14:

“(…) A Marilinha Misse é tentação antiga e silenciosa. O perfeito enlace do físico e do espiritual. Mas o superior encanto dela reside num simples gesto, acompanhado de uma palavra. Mais ninguém, neste universo de cativantes mulheres, tem o mesmo jeitinho de subir a mão pela nossa face e perguntar com a rouquidão no ponto de rebuçado: «Então?» Como outras interrogam «estás bem?», «como vais?», ela deixa deslizar os dedos até se envolverem nos cabelos e sai-lhe: «Então?»
Andei alucinado e faminto. Mas distraí-me. Quando me dispus a participar-lhe a inclinação e algumas ideias acerca do que devíamos fazer com urgência, já o Ripas se desabotoava com ela. Custou-me, mas perdi com ferplei. Nunca saberá que comprei a cama de três metros por dois e meio para a estrearmos em colaboração. Da dorzita de corno só me lamentei ao velho Grafula, campeão de valsas e doutor em provérbios. Que esperava eu ouvir? Lógico: guardado está o bocado para quem o há-de comer. Foi o que ele disse.”

Nada mais digo. Leiam. Primeiro as senhoras.

terça-feira, maio 09, 2006

Duplicata


Era o eixo da via.
Era a via postal.
Era a via-sacra.
Era a via láctea.
Era a via terrestre.
Era a via marítima.
Era a nossa via-férrea.
Era a via da providência.
Era a via de facto.
Era uma segunda via:
um tempo do verbo ver.
- Vi-a… estava tão bonita!

segunda-feira, maio 08, 2006

Bordado


Aproveita um linho branco dos teus sonhos,
a memória dos seus calorosos braços
e borda nele a azul o nome da tua mãe.

domingo, maio 07, 2006

o instinto maternal


chegou-me ontem, com oito anos de atraso e o filho doutra mulher. ao fazer uma curva de 360º à saída duma via rápida, o carro que seguia à minha frente (um utilitário recente) virou-se de lado com a leveza de uma caixa de fósforos, quedando-se, assim, pousado na estrada sobre o lado do condutor.

correndo a socorrer quem quer que fosse que lá estivesse, quem sabe ferido, ouvi um bebé a chorar. sob as instruções apressadas de alguns homens presentes o vidro da porta traseira do carro, que entalava uma fralda de pano, abriu-se, dele emergindo um bebé rechonchudo e chorão (sem beliscadura aparente) que arrebatei para o meu colo. uma mãe emergiu em seguida daquela janela virada para o céu, desabando a chorar ela própria enquanto tentava sem sucesso sair pelo mesmo caminho.

foi insólito o que o choro daquele bebé assustado despertou em mim: necessidade imperiosa de o aquietar, certeza absoluta de que saberia como o fazer, como se o conhecesse desde sempre. e assim foi: como se no meu colo ele tivesse encontrado a concavidade perfeita onde já houvesse morado vezes sem conta; e de mim saíram as palavras certas e o embalo exacto que o sossegaram, muito agarrado à sua chupeta, e o deixaram a observar atento a mãe que saía a custo pela porta da mala.

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sábado, maio 06, 2006

Low-food


Quem vive como eu sem as obrigações da hora familiar de jantar, recorre com frequência ao fast-food. Perto de casa tenho o Mr. Meal com ementa telefónica para o mês. Há fome, ementa definida, canseira… telefono. Há disponibilidade, vou e bebo um gin, enquanto me entalam o prato.
Os clientes do Mr. Meal são feitos do mesmo tipo: solteiros, divorciados, executivos esmerados – workalcoolic -, gente anónima com uma banda larga no tempo. Têm sempre clube para discutir com o Mr. Meal, têm por vezes espaço a mais para partilhar.
Esquece! Isso é fantasia e posso provar!
Pede-me o corpo as receitas antigas, os sabores de mãe, as virtuosidades de saber-fazer espectáculos na cozinha.
Então, muitas vezes, cozinho por gosto. Sim, cozinho. E logo dirão:
- aqui está um homem esmerado, o mito das mulheres de família!
Cozinho apenas porque gosto desse prazer. Exijo apenas que não me ocupem o espaço e que esteja limpo. Divirtam-se na sala enquanto esperam. Ponham a mesa, bonita, se quiserem ajudar. Bebam um branco fresco, ponham música, leiam o caderno à socapa onde registo momentos da vida… se for Inverno e frio, acrescentem madeira na fogueira… se o Verão suar, liguem a ventoinha. Acendam o cigarro e o lume no corpo. Tenham a arte de esperar como quem o faz com prazer.
Low-food. Marca a noite e a mesa.
Sabes?
- Faço tachos apenas para futuros ministros-de-estado e mulheres velozes – gente solta!
Apresenta-te como quiseres!
Telefona antes. Diz o que queres.
Se fores futuro ministro-de-estado, vem apenas. Há futebol que baste.
Se fores mulher veloz, vem com vontade de pôr a mesa. Se não servir, se não te servir, há um bom livro de reclamações.

sexta-feira, maio 05, 2006




“ – ( ... ) Porque na verdade, escrevo para ler. Gosto muito mais de ler do que escrever. Então, quando leio e sinto que está como eu queria, posso seguir adiante.

- Será que, no fundo, todo o escritor não prefere isso ? Poder finalmente ler o seu trabalho ?

- Esse é o grande prazer. A última leitura antes de dormir... uma vez, ao conversar com o Zé Rubem ( o escritor Rubem Fonseca ) sobre vinhos, ele disse-me: não é bom beber quando se escreve, mas é muito bom quando termina tudo. Você imprime, abre uma garrafa de vinho e vai ler. Para retoques é bom, uma ou duas taças de vinho. “

Chico Buarque em entrevista revista Sábado

quinta-feira, maio 04, 2006

a quem interessa Portugal?

este era o título do dia no jornal (que imagino gratuito) que pela manhã todos lêem no metro. sem distribuição na minha estação, habituei-me a lê-lo assim, só de raspão, por cima do ombro dos passageiros adjacentes. o destak de hoje era este, absolutamente fantástico.

fez-me lembrar a história que, li no Bloguítica, terá sido publicada no Expresso: o menino que nos cartazes do 25 de Abril de há 30 anos enfiava um cravo numa espingarda foi viver para Inglaterra e nunca sequer chegou a votar em Portugal.

entretanto pode ler-se na Origem das Espécies algo sério sobre este título que me inaugurou o dia.

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quarta-feira, maio 03, 2006

A matilha dos 40 anos


Anda a matilha a marcar a ferro quente na pele os 40 anos, como se uma bula entronizasse esse dever.
Por mim já cá cantam, sem dor ou nostalgia. Passei por eles ao passar, não encontrando na data qualquer motivo para os agrafar no meu diário do tempo.
Vou-me perguntando apenas:
- quantas vindimas mais poderei fazer?
- irei ainda a tempo de ver a sombra da nogueira, ontem plantada, crescer?
Há quem seja apanhado de surpresa em festas onde estive; outros simplesmente juntam os amigos e com eles produzem fogos-fátuos que o céu se encarregará de entregar, porque há novo caminho a percorrer.
A uns fui; a outros, por falta da capacidade omnipresente, mandei flores.
A todos, um gesto, uma palavra, um regresso, dedico. A alguns, os essenciais, estarei sempre mais perto… são os que sabem disso, porque neles tento perenemente dizer!
A idade aumenta-nos a memória, deixa a chuva molhar menos porque mais nos recolhemos, junta os caminhos imaginados num único sulco denso de terra por onde quase sempre obrigado seguirás, pensando seguro o que o destino te reserva.
Não sei quantos mais virão a terreiro. Se de surpresa ou festa anunciada.
Mas somos todos bandoleiros desta mesma existência, (dois séculos, um milénio!), lobos da lua com magia e destino próprios.
Por isso, entendo eu nos meus 40 e 2, que a nossa sabedoria é ainda manobrar bem em matilha quando nos juntamos, nem que seja, como o faz o lobo em todas as manhãs e tardes da vida,
- ir simplesmente a pulso, incógnito, beber com os outros!

terça-feira, maio 02, 2006

Uma passa no assunto...


Não podia eu, fumadora assumida, deixar de dar uma passa no assunto. Um dia destes, penso nisso. Porque prometido. Mas gosto de um bom cigarro misturado com noite ou conversa. Gosto de quando com ele falo por dentro... tantas palavras de fumo me ficam na boca. Até gosto de sair à noite, à bomba de gasolina mais próxima, comprar os cigarros e nesse percurso ouvir a música que ficou quando o carro parou. Gosto de deixar o post e sabe-lo a cheirar a fumo...

Reservado a fumadores

Uma antiga crónica do Mário Zambujal no semanário “Tal & Qual”.


Quando, um dia, o secretário de Estado Macário Correia abarbatou o título de NÃO-FUMADOR DO ANO, os fumadores distraídos a deitar nuvenzinhas pelas narinas não se assustaram; e quando a então ministra Leonor Beleza sucedeu a Macário no “pódio”, distinguida como a NÃO-FUMADORA DO ANO, a numerosa classe dos chupadores de tabaco pensou que também isso seria fumo sem fogo.
Enganaram-se. Enganámo-nos. Até o Diário da República deu a notícia: a partir daquele I de Dezembro, dia da Restauração da Pátria, acabaram-se as fumaças na maioria dos locais públicos. Com cigarrinho, charuto ou cachimbada, vá cada um poluir para a rua dele, da qual, provavelmente, será expulso.
Tratando-se de uma classe numerosa e altamente contribuinte, se bem que pervertida, merece algumas atenções. Daí que o espaço desta crónica seja hoje rigorosamente reservado a fumadores – pedindo-se às leitoras e leitores que não padeçam deste execrando hábito, a generosidade de reconhecer que precisamos de um cantinho para nos reunirmos, analisar a situação, reconhecer as nossas culpas e fazer planos para o futuro. Quem não fuma, tenha paciência, vá não fumar lá para fora.
Companheiras e companheiros!
Não adianta adiar a questão até ao filtro: uma ameaça não menor que o cancro no pulmão paira sobre nós; para além das multas, que são fogo, todos os que fumarem arriscam-se à fogueira. O cerco aperta-se. A dura realidade é que o ambiente se está a tornar irrespirável para os fumadores. O Governo decidiu reduzir a nossa actividade a um monte de cinzas. Nem é preciso recorrer às sondagens para saber que a Opinião Pública está contra nós: um cada vez maior número de pessoas está a viciar-se no ar puro que, segundo fontes fidedignas, não sabe a nada. E se é justo que se recusem a fumar, por tabela, do nosso tabaco – é injusto obrigarem-nos, de uma forma coerciva, antidemocrática e anticonstitucional, a respirar do ar delas. Por outro lado, a economia nacional periga: vamos chegar ao novo ano com a indústria dos cinzeiros de rastos. Enquanto estamos a ser corridos de tudo quanto é sítio, muitos regressam já ao viciozinho cobardola de fumar às escondidas, com que se iniciaram nas escolas, nos colégios e nos liceus. Mesmo assim vão apanhar para o tabaco. É evidente que o Governo, nesta louvável cruzada pela saúde pública, vai já à pressa atacar problemas maiores, como sejam o chumbo na gasolina, o amianto nas canalizações… quando não, era só fumaça.
Mas, certos de que tudo isso será feito, cumpre-nos contribuir, aceitando fumar apenas em reservas semelhantes às dos outros índios, das quais comunicaremos uns com outros através de sinais de fumo.
Em qualquer outro espaço será perigoso, já se houve o grito de guerra: MORTE AOS FUMADORES E A QUEM LHES DER LUME!
Publicada também em:
Zambujal, Mário, Fora de Mão

nos blogs: sobre deixar de fumar


li aqui e aqui posts sobre deixar de fumar e não resisti a comentar:

a minha receita: deixar de repente, no Verão, fazer muita praia, sair muito à noite e estar apaixonada.

e quanto a crispações anti-fumo arrivistas? não contem comigo. continuo a sonhar com maços de SG ventil cheios e considero seriamente a hipótese de voltar a fumar quando for velhota e não me restarem anos que cheguem para sofrer danos relevantes.

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Confraria do Queijo Rabaçal


Somos um bom rebanho de gente que valoriza o queijo Rabaçal. Queijo cego, porque na pasta semidura apresenta-se com poucos ou nenhuns olhos – ventos.
Sabemos da sua forma, a elegante leveza do peso, a crosta amarelo-palha e todas as componentes organolépticas que o individualizam no educar do paladar.
Eça, na “Cidade e as Serras”, comparou-o ao Camembert.
Neste rebanho onde orgulhosamente me incluo com passada Carta de Confrade, usanças visíveis e traje a rigor, poucos saberão de Eça e muito menos de Camembert e do Jacinto queijeiro.
São os fieis depositários do saber e do sabor de homens e mulheres que viveram anos a fio o prazer desta comenda dinástica - queijo Rabaçal!
E eu, nascido longe do mundo das cabras e das ovelhas, tenho hoje o privilégio e o orgulho de ser parte deste território e deste colectivo escondido nas serras. Porque eles me conferiram esse desígnio, porque eles me aferiram o paladar.
- Pica e prova – diz o Mestre Chanceler.

Gostava de ter em menino
feito o caminho
com o cajado ao vento.

Vinha e, com um sopro, ia!

Os pastores que conheço
têm esse caminho traçado no tempo.
Seguem os pés cegos nas manhãs
pelo caminho da erva:
- arranjos calcários, flores de Santa-Maria
com sabores doces a nozes e avelãs!

Maio guia-os pelo comer das cabras nos campos de lapiás.
Dezembro deixa-lhes pistas, decisivas,
no lento estilhaçar branco dos pés na geada.

Nos outros meses é um sopro frio,
alergia na pele marcada pelo vazio
do rosto que procurado nunca estava.

segunda-feira, maio 01, 2006

Praia da Adraga, 30 Abril

Para a Rida e todos que couberam na noite do seu aniversário


Podia deixar já a fogueira a arder, levar as palavras como fagulhas, deixar o cheiro a fumo nas mãos e só vos deixar ouvir o mar ao fundo, nocturno.

Mas piso devagar o texto como a areia. Começo no contorno do vale que guarda o mar e a gruta. Praia da Adraga. A praia que guardou o mar que guardou uma noite para nela se celebrar o aniversário duma amiga.

Archotes na praia e crisântemos brancos. A noite tépida, a fogueira e as estrelas no chão e no céu, a puxada eléctrica do restaurante a deixar música e máquina de cerveja... em cima da areia. Colchões de praia, mantas no chão, toalhas de banho, camisolões à cintura.

Os amigos, a conversa e a sangria, o gin e o mar, dançar, dançar muito sobre a areia. A música, ah a música... a nossa, a que cresceu, doeu e sarou connosco... as estrelas e o mar. Sempre o mar. Nocturno.

Que imensidão, que prazer indescritível este de não parar de dançar, de não parar de falar, de não parar de ouvir, de não parar de ... tanto ar, tanto espaço, tanto sal. Tanta areia.

Além de muito bonito, achei que a nossa amiga nos pregou uma tremenda partida... convidou-nos para a celebração do seu aniversário e levou-nos para o lugar onde o tempo não se faz. Existe eterno. Como a areia, eterna erosão da rocha.

Levou-nos devagar à ausência do tempo, deixou-nos de areia a todos por mais que o mar nos tenha batido, deixado mais um sulco na pele, feito uma costa mais arredondada no corpo.

A nossa amiga levou-nos a celebrar, afinal o quê? A eternidade, claro. A dançar, a dançar. A rir como sempre. A falar como há pouco, dez ou vinte anos depois da última palavra. A beber o mesmo gin, a ser mais sábio e sempre o mesmo. A repetir o abraço, a deixar o mesmo jeito. A ouvir o crepitar da madeira que arde como a alma. A ouvir o mar sem o ver. A ouvir o tempo e ele ser o mesmo.

Juro que não foi o tempo a passar ou o tempo passado o que se celebrou na noite de 30 de Abril. Juro que só lá esteve o que sempre o tempo tem.

Como a nossa amiga sabe tão bem destas coisas de sal e vento e tempo e eternidade, e sempre o pressenti mais do que o soube, fez-nos esta partida imensa... porque mais, muito mais do que uma noite bonita e muito, muito divertida ela permitiu-nos esta verdade que se ouvia na fogueira ou onde quisesses e que se sentiu pela noite toda. Uma reafirmação. A certeza da certeza.

Obrigado Rida e todos que couberam na noite.

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