quarta-feira, maio 24, 2006

Pensando



Durante muitos anos mantive-me perplexa perante mim. Fumava cigarros para não se notar, alargava os gestos ou a reserva mas não achava nada de muita coisa.

Fascinavam-me as pessoas afirmativas, de expressão fácil e verbo escorreito. Sobre qualquer assunto achavam qualquer coisa. E eu que achava tão pouco de quase tudo... Intuía o desacordo e em geral detectava a vulgaridade. Pensava para dentro “ obvio!” e passava à fase de achar intrigante as pessoas capazes de expressar o obvio com tal empenho. Sempre achei que o obvio é um pressuposto de base, não explicitado, e que a conversa deve ser o acréscimo. O a mais. A diferença. O contributo.

Foi durante muito tempo uma perplexidade em mim não dorida, mas inexplicável. Fui acomodando depois na ideia de que esse achar quase nada sobre quase tudo era sinal de sabedoria, alguma inteligência, de uma coerência instintiva.

Fui também apreendendo que o obvio não é universalmente obvio e que às vezes ele carece de ser explicitado como começo de conversa. Como quem diz, vamos começar mas começamos os dois daqui. Marcar visível a linha de partida.

Fui, com o sábio tempo, passando a ser mais despudorada e dura a saber de mim. Depressa concluí que não era uma pensadora mas sim uma intuitiva. Demorei mais a acomodar o jeito a este saber de mim, mas a coisa aconteceu. Quanto me era mais fácil sentir, saber e explicar pessoas e comportamentos...bastante mais do que com a abstracção de uma ideia. Com essa, era capaz do entendimento do seu argumento como o era do seu contrário. Decidia por intuição quando ela se me revelava clara.

Assim me assumi como entendedora de matérias voláteis e pensadora de coisa nenhuma. Passei a gostar, então, de quem materialize o pensamento por mim. Mo diga. Mo roube. Mo conte para poder espessar as coisas que sei, ou melhor, que sinto. Que os haja, e muitos, e que nada mais façam que isso mesmo.

Fazedora, fazedora... tenho a capacidade de, mas não o sou. Tenho em mim um natural deleite preguiçoso e uma convicção íntima de que é preciso não fazer nada para que as coisas aconteçam por dentro. Que essa preguiça é fazer o tempo por dentro. Permitir-me ao tempo.

Quando quero muito, muito faço fácil. Mas poucas vezes quero muito, muito.

Continuo a fumar muitos cigarros e a alargar os gestos ou a reserva... mas muito convicta de assim ser.

2 Comments:

At 12:46 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

reconheço-te, amiga. conheces-te bem.

 
At 11:31 da tarde, Blogger David (em Coimbra B) said...

E pensas tão bem!

 

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