domingo, outubro 29, 2006

lei das cismarias


Dar-te-ia todos os terrenos junto ao rio, o maior quarto da casa, a sombra da nogueira agora carregada de nozes, a última selha de água para perfumares o teu corpo, a receita da torta de queijo, a fotografia de Paris, o exemplar único do semanário que escrevo – edição nominal – só com as boas notícias de Dezembro.
E a carta que escreveste, intacta, fechada, como se nunca a tivesse lido trezentas vezes.
Dar-te-ia tudo isso se sentisse que ainda cismarias por mim.

vejam o perfil incompleto dele

"(...) Esqueci as constelações um dia aprendidas.
Olho o céu, contudo, sempre deslumbrado. Olho o céu e lembro-me de deus. Lembro-me muitas vezes de deus e sempre concluo que não acredito nessa ideia dos homens. Porquê tão inculcada dúvida?
O tempo ensina mas também rouba. A vida torna-me (em) tudo vago, a memória difusa, uma esponja demasiado lassa.
(...)"


Francisco Carvalho (Nu Singular) "View my incomplete profile"

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sábado, outubro 28, 2006

desaparecer


as pessoas às vezes desaparecem para dentro das suas vidas

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sexta-feira, outubro 27, 2006

da idade


Chegaram-me hoje palavras da Guida G. adivinhando aniversários, cada vez mais adversários, consumos no tempo e no espaço que vivemos:

«Procuramos nos livros e nos escritores as palavras para o que sentimos.
Ontem, na grande entrevista, Judite de Sousa convidava António Lobo Antunes.
Gosto, em particular, das suas crónicas.
No meio do pudor, das mãos quase a tapar a voz, diz algo que sinto há muito tempo:
"Idade? Tenho problemas em definir o que é a idade."
E conclui:
"Nascemos com a idade que temos"».


É isso, M! Nascemos com a idade que temos.
E acrescento:
Morreremos com o tempo de não nos vermos.

cair


os 40 cairam-me em cima (fiquei agarrada a estas palavras de D) como um nevoeiro, como uma manhã escura. cairam-me em cima com a chuva, torrencial, violenta. cairam-me como uma doença (dor, falta de ar e febre) que só se cura dormindo, dormindo muito, dias e noites a fio. a ver se volto a cair dentro de um sonho qualquer.


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limites de adobe nos teus olhos


Poderia ter sido num palheiro
ou num moinho do ribeiro.

Nasci entre paredes de adobe, numa casa gandareza com quintal de muros de adobe, quarto de parir, a pilheira em frente, poço de engenho de adobe com água abundante para os primeiros banhos e as primeiras sedes como nas covas dos adobes. Seria uma prisão antiga, um pátio escuro do Tarrafal, se a Gândara, entre muros, não fosse um cais aberto, janela do Atlântico com caminhos largos de areia, o vento que nos permite voar para outros lugares e toda uma bordadura de sal que lá se solidifica à proa da arte xávega.

Nos limites, a nomenklatura chinesa construiu, ao que vi, 7000 quilómetros de muralha, vê-se do céu – dizem os americanos do espaço! - fechando fronteira com a linha democracia.
Nada que me surpreenda, construído por quem o fez!

Nos limites, o aço político alemão deu ao mundo um muro com «uma palavra redonda». Bola de Berlim.
Nada que me surpreenda, fotografado e escrito por amigos que me ensinaram do ofício.

Nos limites, a democracia americana zurrou, ao que li, uma lei para a construção de 700 quilómetros de muro, fechando a fronteira com o México.
Nada que me surpreenda, vindo de quem vem!

No limite, trabalho nos terrenos do calcário, que não é areia, nem aço, nem muralha. Tem muros? Tem! E deslumbrantes campos de tesselas. São uma espécie de renda de bilros, arestas de pedra difíceis de aparelhar nas capelas imperfeitas do mosteiro da batalha, apenas um bordo de renda na toalha da terra, um contraforte de estuque, uma metáfora.
Nada que me surpreenda, vindo da arte romana.

São estes os meus limites:

A ter de escolher, escolho o berço. Os muros na Gândara são os mais justos. Porque o adobe é mais frágil e, erguido, serve apenas para controlar o vento e, assim, o desejo de diáspora, garantindo o direito gracioso das terras e a raíz nos homens antes do contencioso dos tribunais. Antes da partilha das lágrimas há a soma da partilha dos sorrisos que me levarão sempre no caminho do mar ou da serra, o sal ou o vento, a compensação, o equilíbrio.

A ter que decidir sem desejo de partir, escolho os teus olhos e os amigos crescidos na Gândara, (profunda textura a que não pertences, limite de adobe), saltando o muro onde na sua sombra brilharão de cumplicidades por inteiro. Outra partilha graciosa.
Surpreender-me-ia, isso sim, se um dia o texto estivesse disponível na net em Adobe Acrobat.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Xavier Rudd


Tem chovido tanto quanto o trabalho e a azáfama. Tem chovido por trás da vida. É bom quanto acontecem as abertas, curtas e breves, a pingarem na janela. Às vezes paramos, só um bocadinho, para ouvir a chuva. Outras vezes, somos levados, como ontem. Levaram-me directa das folhas da secretária para a cerveja nas escadas da Aula Magna. Xavier Rudd.

É um homem descontraído, leve e diferente. Foi um bom concerto, muito bom mesmo.

Às vezes levam-me a novos sons e às vezes isso faz chover a vida em primeiro plano.

quarta-feira, outubro 25, 2006

três em linha


Luigi chamou ao que reteve do diafragma «três em linha». Não discuto. Que posso eu dizer das bocas caladas, tapadas, quase amputadas e uma outra a querer-se tapar?
Enquanto tapo e não tapo, digo não digo, digo:
«Andamos atarefados. Coisas da vida e da chuva. A linha, por vezes, é um carinhoso silêncio absoluto.»

terça-feira, outubro 24, 2006

papoila mínima


Esta noite não conta!
Dormes tudo o que te resta em energia.
Como as papoilas,
(que és, sensível, no meu talhão egoísta)
à noite, entre muitas, apenas respiras.

Só depois,
distinta das outras,
o dia mostrar-me-á em que te inspiras
e porque, provocadoramente, suspiras!

segunda-feira, outubro 23, 2006

bolígrafo aznar



A Mátria, Marta Nebot da «cuatro» questionou José Maria Aznar sobre a velha guerra do país basco. O político, retirado, farto da questão país basco, deixou-lhe uma assinatura suave nos seios. “El polígrafo por el escote”.
Nos países mediterrânicos, onde a mulher historicamente manda e comanda o essencial – a velha Mátria que hoje ouvi na rádio - criou nos homens latinos formas subtis de afirmação. Que se firmam de machos, marialvas… de contra-poder. Aznar esteve nesse sentido. No sentido de nós homens – os do meu sexo – poderem dizer por actos que a Mátria por vezes contrariamos.

sexta-feira, outubro 20, 2006

noites que acontecem


Peço perdão pela hora, mas «está consumado» como a música e só agora a chuva me deixou estacionar com segurança. Primeiro o tinto primeiro. Depois o branco com deuses de branco, casta Fernão Pires, a estalar na garganta nozes, depois vozes (coisas da nossa sabedoria!) querendo empar no copos toda a vindima das vidas.
Bebemos copos na capital do Chícharo que baste. RB partiu depois da boleia que me colocou à chuva com um carro nas mãos. Ficou para trás a adega «casa do povo» e os telefonemas seguintes sem resposta coordenaram viagem.
Sentei-me ao volante e fiz todo o percurso que imagino de RB, vulto avulso, a caminho de casa, acreditando que era junto à casa que o encontrava, porque não atendia os meus sucessivos telefonemas dispersos na noite e porque, por isso, me começou a crescer a dúvida se chegaria limpo sem riscos no cromado.
A viagem que acabei de fazer – esse percurso de amigo - daria a Scorsese do “táxi driver” um trajecto de espanto.
Pegas no carro e decides: vais por ele fazer-lhe o mesmo provável percurso. Fiz, cúmplice, conivente. Cheguei e estava em casa, evidência de carro à porta. Não bati, porque batido o corpo dele chegou.
A chuva era companheira cúmplice. Cheguei-lhe no carro as escovas do vidro para a frente, (esse dizer que estive, por lá passei!) amanhã dirá que o protegi. Por ele fiz muitos kilómetros que não queria. A mulher não saberá que há anjos sem asas à chuva como eu, corrigindo a alegria dos amigos.
Cheguei agora a Coimbra B. «Está consumado». Pagará um copo quando lhe falar da estória, estou certo E então dir-lhe-ei que assim devem proceder os amigos que se armam em anjinhos.

terça-feira, outubro 17, 2006

delicadamente

Assim começamos a decantação do tempo. Já não saltamos janelas nas noites para nos vermos, essa ânsia em salto, sobressalto de apenas estar sem futuro absoluto, que não o desejar perto os olhos um do outro - azuis contra uns que dizem verdes.

Delicadamente caminhamos os caminhos da preguiça e os anos, agora somados entre descanso e cansaço, permitem-nos poder escolher a viagem que falta, riscar o círculo curto dos amigos e cheirar amores para quem os não tem, perenes, como as folhas das palmeiras.

O tempo das cartas «confecções norsel» é agora uma linha. A despedida das gares uma meticulosa recordação. O nosso espaço, grandes corações apenas, pulsando cúmplices.

M, parabéns!


M(ulher) em janela azul


Esta é a minha amiga M contra uma janela azul. De M convém ainda dizer que tem uns olhos azuis como poucos, mas teimou Modgliani em pôr esse azul no retrato da janela. Este é um retrato baralhado da minha amiga M, ficam a saber.

A minha amiga, antiga como o tempo de começar a crescer, faz hoje anos. Celebra assim a passagem das marés. Viemos acenar-lhe, rente na praia, e dizer-lhe que esperamos estar por muito, muito tempo. Tanto tempo quanto o mar.

A minha amiga, e é preciso um bocadinho de evocação..., cresceu comigo nas palavras escritas das cartas. Lembro dela vestida de roxo no apeadeiro quando ainda nos custava falar as palavras que muitas pousamos em cartas. Esta minha amiga foi um vagar imenso e talvez por isso eterno e sanguíneo. Suspeito que sabíamos que jamais nos perderíamos, pelo que nunca tivemos pressa e deixamos a timidez perder a pele e perder-se de nós. Depois das cartas invadi-lhe o quarto amarelo e a carinhosa família. Foi o meu chão do norte. Não sei que alguma vez lhe disse... mas foi muito, muito bom tê-la rente à minha vida. Uma dádiva azulada.

Parabéns, M.

digitar


Acabo de conferir uma inevitabilidade. Preciso de escrever, ponto, parágrafo.
Fui disso sabendo com o tempo em vários formatos, muito para mim, tendencialmente para distintos destinatários. Percebi também que uma das mais-valias que me reserva o emprego é, mais do que as ideias ou a sua resolução, saber escrevê-las. Se no primeiro caso me empenho com alguma exigência (trabalhos da palavra), no emprego não há critério literário - e que sei eu disso! -, há uma oferta que sei rara para quem me lê: objectividade e bom senso.

No primeiro acto ainda pego no lápis ou na caneta, (a oponência do polegar que nos distingue dos macacos) acendo os olhos para a minha letra – ou brilha a minha letra nos meus olhos – e cada frase que desta forma escrevo, inscreve-se na memória da escola, das cartas, dos bilhetinhos certeiros que desafiavam vidas lá longe, muitas agora pequenas e insignificantes como polegares.

No segundo acto os dedos identificam ritmadamente as letras no teclado QWERT como os cegos a imaginária paleta das cores. Aqui tenho dedos cegos, cada vez maiores para as teclas disponíveis, apurado tacto da escrita.

Por vezes, porque os dois se necessitam como os barcos dependem das rotas no alto mar, confundo-me apenas.
Ponto e vírgula.

domingo, outubro 15, 2006

se mentes de portugueses


O Vasco Pulido Valente no “Público” de hoje alertou-me para o concurso da RTP, Grandes Portugueses. Concordo com ele no essencial e tenho vários nomes disponíveis consoante as categorias. Quem acho que ganharia de caras com a máquina da Igreja a ajudar era a Nossa Senhora de Fátima. Porque é «nossa» e nos visita pelo menos três vezes por ano. Mas minto.

Se mentes, sementes é o artigo fabuloso da revista “Pública” – Guardador de Sementes – como um guardador de rebanhos.
Disso sei. Vem lá o Chícharo e a sua capital em plena Serra de Sicó. Sei-lhe da cor e do sabor e é receita regular cá por casa.

Para a minha satisfação pessoal é-me tão importante poder ler todos os currículos dos Grandes Portugueses como saber das fichas técnicas do grão, feijão, maçã e chícharo. E saber da maçã predilecta do Eça, a “pardo-lindo”.
Fica para sugestão: um grande português, uma excelente sobremesa.

sábado, outubro 14, 2006

desesperada


do ruído

subitamente exasperada pelo ruído: vozes na televisão, uma espécie de buzina que entra em casa intermitente (é uma rebarbadeira ao longe, não sei o que é uma rebarbadeira mas só pode ser uma isto que me atormenta), o apito dos semáforos, os estudantes fanfarrões pela noite que já foi minha, aviões, sirenes, gaivotas marginais disputando o lixo nas traseiras.

do silêncio

desesperada por silêncio, um silêncio profundo como o das noites na serra (em que se chegam a ouvir as estrêlas), como o do deserto (onde nunca estive a não ser nos livros), o silêncio do acordar sem horas dos dias de férias. silêncios primordiais atravessados pelo som da água que corre, da brisa nas folhas, pelos ralos à noite. o silêncio das florestas húmidas e dos amanheceres na Costa Rica e a rompê-lo o macaco rouco e o zunir de uma vida animal intensa. o silêncio sub-aquático, o silêncio do cume das montanhas, alguém cantando ao longe.


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quinta-feira, outubro 12, 2006

estranhos sítios


Ficam-me estranhos os sítios quando não têm o que imaginava que tinham. Uns por falta de água, quando chego; outros com abundantes acácias, quando neles deveriam ter nascido pinheiros apenas.

«Sai, se quiseres. Esta casa não é Coimbra-B. Aqui não há conversas noite dentro e dela não partem comboios», disse.

Saí!

Nestes outros, onde o erro previsível seria a falta de lareira ou gelo para o início da conversa, ecoam também vozes que não contas. Têm gente. Ficam-me mais estranhos ainda.

quarta-feira, outubro 11, 2006

vocês disseram erros ortográficos?



estas são imagens de um envelope que ofereci ao meu pai num 19 de Março de há muitos anos (interrogo-me o que teria ido lá dentro).

há muitos muitos anos a minha mãe era professora primária e, nessa época, não existiam coisas como férias pagas ou licenças de parto. foi assim que um mês depois de eu nascer a minha mãe retomou o seu serviço na escola masculina dos Lagos, em Vilar do Paraíso. eu, naturalmente, fui com ela. não consigo imaginar como me seriam mudadas as fraldas (apenas na hora do recreio?), como mamaria (fui amamentada ao peito até aos 6 meses), seria na hora do ditado? sequer como a minha mãe se arranjaria se eu resolvesse chorar por algum motivo.

certo é que cresci numa sala de aula cheia de rapazes a quem, mais tarde, de voador (que então era um utensílio politicamente correcto), roubava o pão com manteiga que tinham nas pastas para o seu lanche (lembro-me bem do prazer de com este método conseguir duas metades de pão barradas, deixando-lhes ficar as outras duas metades sem nada).

a minha mãe conta que um dia, íamos a passar de carro na rotunda dos produtos Estrela e ouve-me a ler "Bra-ga". eu tinha três anos e sem ninguém dar conta tinha aprendido a ler com os alunos da primeira de classe que nesse ano ela ensinava.

claro que a escrever como deve ser ainda me levou algum tempo: durante a 1ª classe fui coleccionando "maus" e "medícores" nas cópias que, como se não bastasse uma péssima caligrafia, enchia de erros inaceitáveis. foi na 2ª classe que tirei o meu primeiro suficiente numa cópia o que levou a minha professora a pôr-me em cima da sua secretária (enquanto eu desejava poder esconder-me debaixo da mesma) e a pedir às restantes meninas que me dessem uma salva de palmas.

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porque andamos aí


Tem nome e uma empresa que quero para o Sicó. Capitão Dureza. Tentei cativar esta noite, à principezinho, o seu mentor sem as artes do Saint-Exupéry, arriscando apenas vinho, queijo, mel e palavra cuidada. Depois o sobressalto, porque todos sabemos um pouco de tudo. Ele sabe de rafting, paintball, mountain bike, trekking, canyoning, offroad tours, quad tours, river descents… eu, quase decente, disse que sabia um pouco do nada de tudo aquilo.
E o sobressalto.
Disse o companheiro:
«E somos especialistas em campos de férias!».
Aí tremi.
«Disso sei eu, perdoe-me!», afirmei com aquela arrogância que produz a certeza da sabedoria.
«Fiz campos no Mocamfe, a melhor escola onde se aprende…», disse o companheiro de mesa e pôs sobre ela sítios e calor de fogueiras e letras de músicas e amores vividos e nomes.
Peguei no copo e quando comecei a cantarolar o “são dias que passam”, o companheiro fixou-me uns olhos de espanto. Depois não resisti (não há resistência possível!) e contei-lhe da nossa geração.
Saímos quebrados. Ele de espanto, eu de passados, passados no coração.

terça-feira, outubro 10, 2006

Escreve sem erros na areia da praia, aquilo que erra ortograficamente na folha branca.

Gosta de deixar salgar as palavras que pressente, mais do que sabe. Os erros, são bocados de inquietação, atropelos de sentidos mais fortes que sabedorias ou gramáticas. Pareceu-me bonito dizer que não erra a escrever na areia o que erra na página. Seria a forma de enfatizar o que já sabe da beleza das palavras, não as sabendo.

É feio dar erros ortográficos. É como não saber amar por inteiro, neste caso, a língua. Uma das minhas filhas deixa erros ortográficos no rasto de gostar muito de escrever. É uma aprendizagem lenta, trabalhosa e violenta. Terá que a fazer, amar pelo todo.

Suspeito de um avo de hereditariedade. Como eu escrevia no capim sem erros os erros que dava (e dou!) nas páginas.

A outra, filha, inicia agora a aprendizagem da leitura e da escrita. Será previsivelmente mais assertiva, talvez não seja é capaz de escrever tão rente ao mar, na areia. Suposições com margem de erro.

domingo, outubro 08, 2006

coisas da ibéria

(Gândara, Outubro de 2006)

Li, claro, do inquérito tornado público que nos punha todos ao serviço de Espanha. Passei os olhos por ele vivo, português, fervendo-me fraco sangue lusitano com fronteira definida.

Portugal é este chorão de chorar passados, podado, cabelo curto de várias hastes (ramos de seiva que darão liso e carapinha no próximo verão, tantos os sangues somados) com o velho gato aos pés de Salazar e o púcaro de barro das salgadas carnes das caravelas. Dele, um ramo pequeno, tornar-se-á uma vez mais forte não se sabendo o ângulo, apenas lusotropia. E a fronteira está ali na sombra que projecta e a bandeira.

A Espanha é o verde frondoso dos Picos da Europa e da Cantábria, a raiz funda da Catalunha, a sombra do País Basco e o tronco forte da Andaluzia. Dialoga connosco pela Galiza, faz-nos frente por Castilha y Léon. É denso, fortes os ramos como o são as suas distintas pátrias.

Se se dão bem assim um ao pé do outro, partilhando o mesmo sol, a relva europeia e a água disponível, cada um com a sua frescura, para quê perguntar ao chorão descabelado se quer ir a exame à “corporation dermostética” ou à “vitaldent” para ser pinheiro manso - país manso! - integrando uma Ibéria onde, atlanticamente, a lusitana américa, áfrica e ásia não cabem?

prova do contacto


É uma mala velha de couro vinda da história de um avô. Nunca viajei com ela e no entanto, hoje, em arrumações encontrei-a. Dentro dela, para além de muitos livros antigos e amarelados, estavam pousadas e escondidas muitas fotografias e provas de contacto. Minhas, a fingirem-se na história daquela mala de couro.

Escusado será dizer que nelas me perdi. Uma a uma. Revisitar e deixa-las respirar. Confronta-las, através de mim, com o tempo. Pu-las no chão, em cima da cama desfeita... organizei vagamente pelo tempo, desfiz a ordem e organizei por amores, desfiz os amores e juntei-as todas. Deixo agora anotações breves da prova do contacto:


1 - Tive um amor grande que, julgava eu, só tinha ficado registado em poucos e belíssimas fotografias. Mentira, tenho muitas. Há amores que se revelam tardiamente.

2 - Com o passar do tempo a fotografia ganha por si eternidade. As pequenas precariedades como a desfocagem, os erros de luz e enquadramento passam a inexistir na fotografia. Observa-se para além de tudo isso e a beleza revela-se. Seguramente estariam ali muitas fotografias a quem recusei álbum e exposição e que agora, precárias, se fazem bonitas.Porque o tempo as fez bonitas em registo.

3 - A beleza fresca. A nossa. Juvenil. Física. Percebe-lo sem inveja. Tão bonitos somos enquanto jovens, mas tão pouco subtis na beleza. Tão bonita é a frescura mas tão lisa. Sem subtileza, sem sabedoria que a requinte. Dói ás vezes perde-la, essa beleza fresca, mas seguramente outra se faz nessa degradação. Mais requintada, mais custosa, mais subtil. Mais ou menos física. Pelo menos assim o acredito eu que me deixei de ver ao espelho.

4 – Bastantes delas escreviam o olhar de uma longa viagem de comboio. Berlim, Hamburgo, Viena, Budapeste, Praga, Istambul, Veneza... que saudades do tempo que demorava viajar e viver, fazíamos kms sobre carris e desenhávamos a geografia entre estações de comboio.

5 – Mas a maior revelação são mesmo as provas de contacto a preto e branco. Muitas, contém fotografias nunca ampliadas.Contém registos que não me lembrava. Tem bocadinhos quadrados de memórias insignificantes feitos em lindíssimas fotografias. Bocados quadrados de momentos que se tornaram sublimes por terem sido registados. Ah... a esses tenho de os acomodar devidamente, recortar e colar num moleskine que irei comprar. Os duplicados ( tenho muitas provas de contacto em duplicado !) enviarei por correio a alguns dos visados. Um dia certo dia que ainda não sei. Por uma razão que desconheço. Mas na certeza de que devemos ter a prova do contacto.

sábado, outubro 07, 2006

versão masculina


Disse-me que o que a chateia mesmo são os homens novos apenas a olharem como peça de fancaria, esbeltos, contornados por deuses que lhes moldam corpos perfeitos; e a sua ignorância nas artes, nas músicas e nas letras.

A idade caiu-lhe no corpo como um ácido.
O olhar, que agora apenas se foca no longe,
deixa-lhe uma visão difusa na imagem que vê: a existência exacta.

Disse-lhe que o que me chateia mesmo são as mulheres novas apenas a olharem-me como peça de olaria, esbeltas, contornadas por deuses que lhes moldam as curvas e a ciência que compram a colocar-lhes os seios nos antigos lugares do desejo; e a sua ignorância nas artes, nas músicas e nas letras.

A idade caiu-me no corpo como um meteorito.
Todos os músculos do meu corpo são agora descanso, não fosse o vinho e o espanto a agitar a maresia.

Sabemos ambos, por conversa de copos e noites de desassossego, que fomos estreitos rios que inquietamente se alargam para o mar em delta perfeito e temos, na disputa da vida entre as margens, rolando os seixos, uma coisa em comum: sabedoria; que com os novos, esbeltos, esbeltas, por falta de assunto, que não o corpo, dificilmente partilhamos.

E, sabendo tudo isto, porque morreremos jovens na ousadia de começaremos sempre pelo corpo, ainda não encontrámos espaço e tempo para nos entendermos!

manifesto


Manifesto para os meus amigos professores e solidário com os que tambêm têm filhos no ensino, a propósito da manifestação de ontem em Lisboa. Espero que motivados por isto:

Um miúdo foi para a escola, entrou para a sala e ficou feliz, porque a escola afinal não era assim tão grande.
Numa manhã a professora disse:
«Hoje vamos fazer um desenho.»
«Boa!», pensou o miúdo. Ele gostava de desenhar e podia fazer todas as coisas… leões e tigres, galinhas e vacas, comboios e barcos… pegou na caixa de lápis e começou a desenhar.
Então a professora disse:
«Esperem, ainda não podem começar.» E esperou até que todos estivessem prontos.
«Agora!», disse a professora, «vamos desenhar flores.»
Ele gostava de desenhar flores e começou a fazer bonitas flores com lápis rosa, laranja e azul.
Mas a professora disse:
«Esperem, vou mostrar como se faz.»
E era vermelha com a haste verde.
«OK!», disse a professora, «agora já podem começar.»
O miúdo olhou a flor da professora, mas definitivamente gostava mais da sua. Não revelou isso. Dobrou-a no bolso e fez uma flor como a da professora, vermelha com haste verde.
Outro dia a professora disse:
«Hoje vamos trabalhar com argila.»
«Boa!», pensou o miúdo. Ele fazia tudo da argila… cobras e bonecos de neve, elefantes e rabos, carros e camiões… e começou a amassar a bola de argila.
«Esperem, ainda não podem começar.» E esperou até que todos estivessem prontos.
«Agora!», disse a professora, «vamos fazer uma travessa.»
Ele gostava de fazer travessas e começou a fazer algumas de diferentes tamanhos e formas.
Mas a professora disse:
«Esperem, vou mostrar como se faz.»
E era uma travessa funda.
«OK!», disse a professora, «agora já podem começar.»
O miúdo olhou a travessa da professora e comparou-a com as suas. Gostava mais das suas. Não revelou isso. Amassou as suas numa grande bola redonda e, carregando com o dedo, fez uma travessa funda como a da professora.

O miúdo aprendeu a esperar e a observar e a fazer coisas como a professora. Já nada fazia por si mesmo. A família mudou de cidade e ele de escola. A nova escola era maior que a primeira.

No primeiro dia de aulas a nova professora disse:
«Hoje vamos fazer um desenho.»
«Boa!», pensou o miúdo. E esperou que a professora lhe dissesse o que desenhar. Ela nada disse, andando e sorrindo ao longo da sala. Aproximou-se do miúdo e disse:
«Não queres desenhar?»
«Sim», disse o miúdo, «mas vou desenhar o quê?»
«O que te apetecer!», disse a professora.
«Mas como é que o faço?», disse o miúdo.
«Como melhor sabes fazer!», disse a professora e adiantou:
«Como poderei saber quem fez e o quê se todos fizessem o mesmo desenho e usassem as mesmas cores?»
«Não sei!», disse o miúdo e começou a fazer uma flor vermelha com haste verde.

(adaptado de um texto de Helen E. Buckley)


quinta-feira, outubro 05, 2006

todo o alfabeto desta alegria

O mundo a crescer dentro das palavras, a formar-se precário na conjugação entre as vogais e as poucas consoantes apreendidas. A alma a rebentar pelas costuras e eles a dominarem o mundo na lenta e insegura junção das letras. Possuem ainda meia dúzias de palavras, casam as vogais e os ditongos sempre com as mesmas consoantes mas ... a história é sempre feliz e a alegria infinita. Jamais se separarão estas vogais casadas e a tendência será a de juntarem a estas outras letras casadas e assim ficarem com as palavras todas capazes de todas as histórias.

Bonito ver a aprendizagem da leitura e da escrita e de como a alegria pode ser tão imensa em tão poucas combinações de letras.

05 de Outubro


O Porto republicano revolta-se. Tiros certeiros (como outra noite policial por falta de treino?) assassinam D. Carlos e o herdeiro. Marca-se a revolução para dia 04 de Outubro à 1 da manhã. Miguel Bombarda é também assassinado. Revolta-se a Infantaria. Cai morto Cândido dos Reis. D. Manuel II faz as arcas, recolhe os anéis e vai para Mafra. José Relvas proclama a República e a família real põe as arcas no “Gibraltar” e faz-se ao mar na Ericeira. Reconheceu logo o Brasil, ele o país, o país a República Portuguesa. Assim se fez, mais rigor menos rigor.

Nestes penosos dias do calendário, enquanto as bibliotecas e os museus permanecerem fechados, os “dias do conto” para os miúdos adiado por feriado de funcionários, os professores na rua, a subida brusca da taxa Euribor, as brigadas policiais apenas atentas à mobilidade do álcool de alguma gente feliz e a exposição política de gravatas berrantes, desfilando a sons de discursos de Outubros de circunstância… (muitos deles sem saberem patavina do primeiro parágrafo!) resta aos portugueses fazer o que hoje fiz: apreciar o pouco sol, inalar as frescuras do mar, amar à bolina, ler e escrever para viver, comer e beber, respirar, recolher-me em casa a trabalhar para o país.

uncertain smile

saudades do lampião de rua que durante quatro anos inundou a minha primeira casa com a sua luz quente.

éramos amigos e sempre que ouço The The lembro-me dele.

"a street lamp pours orange colloured shapes
through your window
a broken soul stares from a pair of watering eyes
uncertain emotions forced an uncertain smile"


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conjugação feliz

"conjugação

(...) do alto do meu choro sanguíneo
digo-te, amigo, que a saudade é o lápis
cujo plural se escreve por dentro,
âmago e absurdo, de cada letra.
não se conjuga, mas afia-se, e as aparas
velam o seu quinhão de mina, e só com ele
é possível, ”às vezes”, esse traço indelével"


in Paixão sobre tela, blog de Renato C., apeadeiro que a linha tardava em mapear

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A. Aleixo 75


Hoje encontrei António Aleixo nos papéis e lá vem memória. Nos meus 11 anos de 1975, verão quente, pleno PREC, fui apanhado indefeso nas actividades culturais que então proliferavam em todo o país.
Representando a Liga Regional Riovidense integrei o elenco de um grupo de teatro de intervenção (com o beneplácito de uma tia), tendo a meio da peça que entrar de rompante e recitar A. Aleixo.
Os mais velhos tratavam das quadras ditas “inteligentes”. O miúdo, irrequieto que era, cativaria com a sua inocência o público, dizendo as quadras mais vernáculas. Assim foi. Assim me iniciei no teatro amador.
Num palco de tablado velho, pano de boca sujo e roto, cenário de parede caiada com feridas salazarentas, música de fundo que penso do Luís Cília e um medo imenso do público (sala a abarrotar), lá recitei nervoso, de enfiada, decorados numa noite sem sono uns versos para sair a correr:

Uma mosca sem valor
Poisa, c’a mesma alegria,
Na careca de um doutor
Como em qualquer porcaria.

Certas viúvas discretas,
De luto pesado em cima,
Lembram cachos de uvas pretas,
A pedir outra vindima.

Foste beijar o menino
Quando afinal eu vi bem
Que beijaste o pequenino
Porque gostavas da mãe.

Casado que arrasta a asa
À mulher deste e daquele,
Merece que tenha em casa
Outro homem em lugar dele
.

O povo que estava com o MFA riu. E eu ganhei uma bifana e uma laranjada. À noite, ainda inocente e leve, subi à escada de madeira, assente no tractor e ajudei o meu primo a colar nas paredes até casa cartazes de propaganda da FEC-ML, que hoje sei de tendência maoista contra o imperialismo americano e o social imperialismo soviético. Coisas que nem o meu primo sabia. Outra forma de inocência.

quarta-feira, outubro 04, 2006

energia mínima


Falavam pelas quatro mãos.
Que eu ouvisse nada hoje aconteceu
(não sou de ouvir os segredos)

que trarão tempos
que animarão ventos
que esculpirão as faces dos últimos medos.

Então as mãos jamais serão as mesmas
crescendo alianças de pedra no mais anelar dos dedos.

terça-feira, outubro 03, 2006

expectativas

"- E tu, que fizeste hoje?
- Nada. Excedi todas as minhas expectativas."

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dias assim


Quando vivo dias como o de hoje em que nada fiz de útil
(aos olhos dos que disso vivem)
gasto os trocos do bolso no jornal e no almoço.
Faço sesta.
Banho de imersão.
Merendo.
Janto tarde.
Escrevo e leio o que me apetece.

Estes dias são, tempo a tempo,
cada vez mais um bem precioso!

segunda-feira, outubro 02, 2006

memórias: impressão digital


A esta hora
(revelados os segredos, feito a pé os caminhos, atravessados todos os rios, decifradas as subtis palavras, soletradas todas as músicas, dormidas todas as sombras, marcados à minúcia todos os pontos do teu corpo)
a tarefa é dar de comer a este velho respirar.

Impressão digital num novo apêndice que me criou o coração:
- o teu, a ele agora saudosamente ligado
batendo forte nas memórias com razão.

domingo, outubro 01, 2006

grande pedaço de mundo


A carta de Pêro Vaz de Caminha trouxe ao rei e ao reino o achamento. Terra de Vera Cruz abordada na boca do rio por batéis e esquifes.
No Brasil de hoje, 125 milhões vão a votos (um dos maiores colégios eleitorais do mundo) não para escolher entre a corrupção das minorias ou a corrupção das maiorias, mas para lutar ainda pelo primário: pedaço de terra e pão para a boca.
E para o sistema novos mandadores. 1627 cargos em disputa, incluindo o cargo presidencial.
Não sei se é um bem ou um mal:
- sei que o Brasil é um espelho grande do retrovisor Portugal!

sonho recorrente II

ainda acontece
continua a acontecer
a espaços
reencontrar-te de noite
por acaso
descobrir-me ao teu lado
e
ao fim de tantos anos
tanta vida decorrida
tanto caminho escolhido
numa direcção diferente
da tua e daquilo
que foi o nosso tempo
ao fim de tudo
a sensação surge exacta
perfeita
no mesmo preciso local
da alma
do coração
do peito
do pescoço
a sensação de um conhecimento absoluto
da confiança sem guardas de
nos encostarmos um ao outro e tudo
em nós
- os dois -
tudo, os braços, os ombros,
as mãos, as costas,
o ar que respiramos
tudo em nós
- menos a boca -
diz: que bom ainda estares aí
e não ser preciso dizer
nada

revisita-me este sonho
há tantos anos
este conforto inominável que
é ter-te tido e isso ser
ainda ter-te em algum lugar
teres-me assim
sem jamais me tocares

revisita-me este sonho e
contamina-me o dia
envolve-me a alma
uma camada de ar quente
cobre-me a pele - impura -
todo o dia, beliscando-me
amiúde pela manhã
e começando a esfumar-se a
diluir-se pela tarde
para chegar à noite
outra vez quase sozinha
outra vez sem saber como
éramos como fomos

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sonho recorrente I

tenho este sonho recorrente: começo a correr mas sou contrariada por uma força invisível e muito intensa: como se um vento poderoso soprando de frente me suspendesse nos meus próprios passos, me lentificasse os movimentos quase até à paralisia, me desse às pernas um peso viscoso. e então, pensando no sonho "que maçada, lá estou eu outra vez sem conseguir correr", decido usar uma estratégia: viro-me de costas e continuo a correr, mas para trás. a oposição antes sentida não apenas cessa mas é como que aproveitada na nova posição para impulsionar a corrida e lá vou eu, sentindo-me um nadinha ridícula mas tão veloz quanto uma corrida de costas poderá ser.

de tanto se repetir, já não é bem um pesadelo. é mais um aborrecimento, parece quase um castigo.

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