quinta-feira, agosto 31, 2006

ainda o azul

foto de RV (+- 1986)

Etiquetas:

da língua portuguesa I: adamastor


39 «Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

Camões, Luís de, Os Lusíadas, Canto V

azul do tempo que faz


Se chegarem os navios da ONU, prenhe de capacetes azuis,
Israel levantará o bloqueio.

Se o azul-marinho lhe chegar próximo dos olhos,
ela dirá outra vez que é Verão
- e desta vez com coragem de dizer não!

Se o azul-cobalto for lavado dos cachos
a tempo das últimas chuvas,
a cepa estará pronta para a vindima
e o ritual do vinho chegar-lhe-á perto dos lábios.

Se o paraíso for perfeito para Naguib Mahfouz,
os anjos passarão os dias na biblioteca
numa nova cruzada de dogmas e sabedorias
e, no primeiro quarto crescente,
as águas do Nilo transbordarão em azul-turquesa.

Mas quando o azul do céu for riscado
por giz branco de traço de avião,
confirmar-se-á o seu regresso na carta em correio-azul,
(urgente amor mentiroso!) e ele recorrerá às lentes de contacto
para entre um gin-azul-bombay lhe mostrar
o falso azul novo do olhar que não se fixa.

quarta-feira, agosto 30, 2006

desmesuradas hipóteses


há 2 ou 3 histórias que pairaram sobre a minha vida como hipóteses - desmesuradas -, paixões pacientes e adiadas que nunca foram encostadas à parede. tropeço às vezes nos seus vestígios: cartas escritas em aeroportos distantes, relatos que juraria jamais me terem feito, a letra de uma canção rabiscada com acordes de viola, uma fotografia roubada.

mas depois não me lembro de mais nada. não sei para onde foram e como foi que não chegaram a acontecer, perdidas a certa altura na meada dos anos e dos amores que existiram.

estas histórias guardam o fascínio das coisas que nunca aconteceram e por isso nunca foram envolvidas pelo desgaste dos dias. cobre-as um brilho diáfano e sente-se-lhes o travo (agri-doce) da renúncia.

(escreveu-o Alberto Savinio: "o amor não existe propriamente; é apenas uma grande, uma desmesurada, hipótese")

Etiquetas: ,

o tempo contado por mim


Nunca sei dizer das horas quando por elas me perguntam, tão óbvia está por todo o lado a sua exposição mediática. Aliás, não uso relógio, porque o considero há muitos anos apenas um adorno.

No entanto, gosto de contar o tempo nos relógios que ainda me fascinam: nas clepsidras, nos das gares de comboios, nos dos campanários das igrejas e nos relógios de sol.

Tenho uma clepsidra na mesa do escritório cheia de areia do Sahara, trazida de Erfoud em garrafas de água «Sidi Ali», que vou virando e revirando para entreter o tempo. Aqui o tempo tem uma espessura fina e depende apenas de mim. Alma, diria, para ser impreciso ou circense.

Dos mostradores das gares decorei o suficiente para saber que o tempo também tem coração. Neles o ponteiro bate certo com o ritmo cardíaco, muitas vezes desmesurado tal é a sístole porque não chegas, ou diástole quando te vejo com os pés na plataforma.

Os campanários de onde apenas o ouvimos dizem-me que o tempo tem sons e silêncios. Não os vemos. Sentimos. Nas limpas areias rurais onde cresci

(entre os nevoeiros do Inverno ou os campos de milho no Verão, lembro-me tão bem!)

ouve-se o som do dia e o silêncio das noites por eles.

Os relógios de sol sei fazer, a disposição das pedras como as contas de um rosário em círculo quase perfeito e uma cruz a fazer sombra da luz. Aprendi com um grande mestre no Caima da Serra da Freita, que ao pé deles se recolhia ao fim de tarde, rezando ao seu Deus e por eles conto agora em numeração romana as esperas dos dias e os momentos de Fé que não tenho.

É o único tempo que tenho para contar, porque antigo.

Mas depois sei, olhando-os caso a caso, que em todos estão as horas verdadeiras, porque nos colocam a vida fora da escala das horas, dos minutos e dos segundos. Neles apenas decides do tempo que tens para o poder contar. A vida plena, onde outros com essa velha obsessão de medir o tempo nos dias, pensam que a vida se ganha contra ele a bater recordes e a fazer fortuna, quando o valor essencial é termos simplesmente tempo para a alegria de quando nos apetecer o poder sentir.

terça-feira, agosto 29, 2006

fúria e desespero

Desde o fim das férias que a «máquina» - como dizem os informáticos dos computadores – anda a dar chatisse e agora cada vez mais fúria desmedida.

Já a tive com a de lavar quando um dia pus detergente a mais; já se me encravou um aspirador; já me enfureci com o DVD que não grava; já desesperei com o carro algumas vezes.

A todos tratei por igual. Insultos e alguma violência física, embora sabendo do velho lema que «a máquina tem sempre razão».

Acabo, em fúria, de dar uma boa biqueirada no computador. Acabo, em desespero, de escrever estas palavras para ver se as aceita com este velho método primário. Parece que vai resultando, mas pergunto-me:

- não tendo aqui pessoa viva à mão para ralhar (parece que é um outro velho método recorrente nos lares deste país), poderei ser julgado por violência electrodoméstica?

segunda-feira, agosto 28, 2006

Agulha 2



É domingo.
Tocou o sino na aldeia.
Sei que não me posso atrasar: «Este padre é pontual!»
O Avô Artur morreu há dezanove anos.
Estava junto dele quando respirou pela última vez e sinto-o como se tivesse acabado de acontecer.
O dia, idêntico ao de hoje, permanecia luminoso e transparente. Quase quieto. Os castanheiros encontravam-se carregados de ouriços e as cigarras estranhamente não cantavam.
Hoje vou com os meus irmãos à pequena igreja para ficar mais perto dele. O padre diz o nome do avô e dos dois netos que já estão com ele.

(soou tão mal o nome deles. a ausência deles)

A Igreja está igual. Alguns bancos corridos de um lado e do outro. Os homens continuam à frente. As mulheres sempre atrás.

(intrigava-me este facto quando pequenina seguia atenta aos movimentos e pormenores deste local)

A porta lateral está aberta e à sua entrada continua o cão à espera do seu dono.
Hoje não é o avô e os seus irmãos que se sentam nos primeiros bancos, junto ao altar. Hoje é o meu pai e os seus irmãos.
E com a luz intensa que atravessa as janelas quase já não sei quem vejo, se o pai ou o avô:
- Guito ratito (assim me chamava o meu avô Artur)

MG – Cais Leixões



domingo, agosto 27, 2006

lugares improváveis


imagens improváveis e a história de Petra, uma cidade desaparecida a oriente, no Escrita em Dia, do jornalista Carlos Narciso (a fotografia é trazida do post sobre Petra do Escrita em Dia).

Etiquetas:

sexta-feira, agosto 25, 2006

às vezes, nos livros

às vezes amamos um livro, uma escrita e, por seu intermédio, um autor. identificamo-nos, apaixonamo-nos e imaginamos esse autor uma decorrência da sua escrita. depois, um dia, vemos esse escritor e, às vezes, o mundo cai à sua volta: ele é feio, porco ou mesmo mau (às vezes é só sem graça ou, quando fala, não constroi uma frase que se veja). mas os livros dele provam o absurdo de tudo isso.

outras vezes amamos uma pessoa, as suas mãos, as suas palavras, o ar que ela respira. ou as fotografias que tira, as notícias que nos dá, o seu palmo de cara. fascinamo-nos. depois, essa pessoa tão amada, escreve um livro e, às vezes, a sua escrita é um deserto, não faz sonhar nem nos leva a lado algum, e, também aí, tudo cai à sua volta. quando acontece, é tão triste que não se pode dizer mais nada.

(a propósito de um post no Porque sobre "a obra e o autor," decidi recuperar este texto que, em Setembro de 2005, postei na Hora Absurda - o meu blog experimental, entretanto desactivado)

Etiquetas:

um amigo visionário

JC, que não o dos milagres, a decantação de conversa adoçada a jeropiga de copo lento, contou-me uma história que registei devagar. Foi fino a falar de todo o Brasil que conhece, todos os contornos de África e a cosmopolita Londres, onde uma filha se dedica a investigação em universidade credível e apetecida e, mais entusiasta na conversa, ainda teve tempo para me contar a Lisboa de 1960 quando a vida o levou, volátil, para as proximidades do Campo Pequeno.

A visão que alimenta. A vida pegada pelos cornos, ferro «deixem-me o futuro em paz». Uma rapariguinha desceu do autocarro e ele, absorvido numa visão única pensou «vem ali a descer a minha futura mulher».

Com ela casou, disse, confirmando o rosto com quem hoje partilha a vida, o mesmo que do autocarro desceu.

Fez-lhe a filha de Londres. É feliz, presumo, no rigor com que intervala cada palavra e na forma como dela fala, porque disse que se parece com a mãe que naquele dia desceu do autocarro.

Mais tarde, no nosso outro adoçado copo de jeropiga contou: teve um sonho único. Que havia um homem sobre uma ponte com calças brancas, sabre pendido na perna direita, a desafiar um homem desdentado do outro lado do rio. Viu, amigo visionário, mais tarde, a cena numa reportagem do canal Odisseia, assunto algures ocorrido em Itália.

Acreditou que há uma energia que cumpre o destino. Convidou mulher, cunhados e cunhadas, mandou vir a filha de Londres e a Itália foram. Escolheu Florença, porque sentiu que a ponte e o desdentado estariam por ali.

A Europa de Bruxelas trouxe outras vias. Havia uma ponte nova junto ao monte sobre o rio. Perguntou pela ponte.

- Que ponte? – disse o transeunte questionado.

- A de pedra, disse JC.

- Há, essa? Está por debaixo da de Bruxelas à espera que o desdentado a atravesse contra um gajo de sabre que o desafiou num sonho. Vendemos isso turisticamente como lenda. Dirijam-se ao quiosque do turismo. São portugueses? Temos catálogo em português.

JC, disse: Foda-se! (já com o catálogo na mão). Estou maluco? Ó Fernando, não te dizia que este mundo é aqui? E tu, filha, do you believe in my dreams?

quinta-feira, agosto 24, 2006

memória boa


ao X (eternamente)

memória de quando adormecias cansado a meio de uma música dos Woodentops e no fim de uma maratona que começava sempre assim:

tu aflito "temos frequência amanhã", se eu já tinha estudado, se te dava umas dicas, e eu que, céus, estava quase tão aflita como tu, descoberta a minha aflição apenas um dia mais cedo, eu a dizer que sim, que viesses treinar os declives e as acelerações, as forças de atrito e outras, as alavancas - sim, da primeira vez foi a física, depois a química e a estequeometria, a biologia das populações mais tarde, uma a uma todas as cadeiras sinistras desse curso distante e impraticável que tiramos -.

e eu lá fazia das minhas tripas coração e do meu coração um neurónio apurado e encontrava todos os fragmentos desconexos de conhecimento que começara a reunir apenas na véspera e, aflita com a tua aflição, conseguia para ti perceber o que era ainda vago para mim de modo a, num instante, te poder ensinar o que eu mal aprendera, no final eu mais aflita do que tu porque só eu sabia que na verdade nada sabia ainda do que te ensinava. ficávamos nisto pela noite fora, cigarros e café, tostas, leite e era

uma coisa tão boa, estarmos assim, ombro a ombro, avançarmos assim até de madrugada até chegarmos à faculdade, despacharmos a frequência quase sem nos determos nela - tudo se converteria num 11 ou 12 suficientes para que seguíssemos em direcção ao que interessava. depois daquilo não conseguíamos separar-nos facilmente: fumávamos ainda e chegava-nos uma lassidão antiga. comíamos ovos escalfados e fruta, mais cigarros pela tarde fora, na praia, e música. dormitávamos às vezes nessa lassidão, good thing,

em direcção à noite, invariavelmente comemorada até à manhã seguinte, mais música, cigarros e cervejas e a certa altura fórmulas matemáticas extraviadas metiam-se entre nós enquanto dançávamos, cruzavam-se sobre as nossas cabeças e sabíamos que era enfim hora de irmos para casa.


Etiquetas: , ,

quarta-feira, agosto 23, 2006

cores e cheiros de agosto

À noite de Coimbra estacionaram os bronzeados e há um cheiro intenso a protector solar. Desconfio que há quem ainda o ponha pelo rosto antes de sair para cheirar e dar de cheirar.

Não sei se é exibicionismo, ou apenas uma forma de dizer «férias perto do mar.»

Mas as conversas,
- cruzes canhoto que sou! -
chegaram mais vazias que as marés
onde molharam os pés.

terça-feira, agosto 22, 2006

os pontos nos fins



Para AM

Aceita apenas o que te digo.
Não eras tu a figura que vi nos dados antes de partirmos.
Olha-te uma última vez no espelho do carro antes de saíres.
Estás cansada, apenas.
É bem visível na sombra dos teus olhos.
Ao menos leva o livro para o leres quando puderes.
Telefona.

Aceita apenas o que vês.
As tuas mãos não coincidiam com os espaços abertos dos meus dedos.
Olha-te uma última vez no espelho do corredor antes de ficares.
Estás susceptível, apenas.
É bem sensível na pouca força dos teus braços.
Ao menos fica com a foto para nos veres quando quiseres.
Escreve.

Adeus.
A Deus.
...

de que é feito um homem? II

So much of what we live goes on inside -
The diaries of grief, the tongue-tied aches
Of unacknowledged love are no less real
For having passed unsaid. What we conceal
Is always more than what we dare confide.
Think of the letters that we write our dead.
(Dana Gioia)

no Abrupto de hoje

Etiquetas:

segunda-feira, agosto 21, 2006

sítio para ti


Prometi-te que iria à procura de um novo sítio para te levar quando quiseres, quando disseres «gosto outra vez de ti» e o sentires.
E porque to prometi, prometi-me, sabes isso.

Pararemos à primeira sombra tal é o longe e o cansaço para lá chegar, não fosse logo ali a frescura do jardim que nos protege deste bom sol de Verão e nos incita a continuar até ao banco de areia.
É um sítio onde alguém num dia feliz deixou por lá um amor a correr um rio e onde agora nunca se sabe se o desejo da estrada é esse seu leito ou apenas a frágil segurança das pedras da ponte. Circula nele ainda dinheiro antigo e a igreja, no centro da praça, tem o campanário fora do corpo.

Por lá o tempo mede-se num grande relógio de sol, feito das pedras do rosário de um sacerdote que por ali de amor perdeu o tempo e gastou as mãos na água, que agora de tão fresca não tem preço, porque é apenas acessível nas mãos de dois sangues – por exemplo uma concha feita da tua mão com a minha – (sede passei à ausência da tua!) servida em grandes cântaros de folha de flandres a movimento de alcatruz por homens e mulheres solitários, ou solidários à Camus, como dádiva de ver prazer no molhar dos lábios de quem apenas ama e fala por prazer.

Dir-te-ei - porque o disse à companheira de caminho! - que no banco de areia é o sítio certo para que me digas uma outra vez «gosto outra vez de ti».

Sinto que pode ser o teu sítio, porque a concha das mãos com a companheira que foi não segurou água suficiente para molhar os lábios antes dos beijos, que por ela crescem quando regados e não gostou mesmo nada quando lhe pedi ainda que ensaiasse a voz por ti, caindo a água entre os dedos como lágrimas ou gotas de chuva num Verão que se queria intenso.

Ficou o sítio e esta ânsia de experimentar as tuas mãos e ouvir da tua voz. Mas é apenas imaginação minha, suponho… regressámos pelas pedras da ponte sem sentir os pés no rio e a companheira, chegada a casa, pôs-me os pontos nos fins.


domingo, agosto 20, 2006

de que é feito um homem?


tenho andado, por razões várias e coincidentes, a vasculhar no baú: o imenso baú de um passado preservado pela palavra escrita e pelas imagens. são centenas de cartas e fotografias e uns quantos cadernos escritos dos quais se desprendem por vezes papéis soltos nem sempre fáceis de datar. foi deste baú que recuperei os silly posts precendentes bem como a semente de outros tantos, nada silly, que trago na cabeça para postar um dia: sobre as cartas, sobre um sonho, sobre o destino.

também deste baú surgiu a interrogação de hoje: palavras, pessoas, momentos, paixões, sentimentos, gritos, vergonhas, asneiras, vitórias, renúncias, poemas, coisas de que se fizeram os dias da minha vida, um todo que me constitui afinal, me alicerça, me estrutura e preenche todo o insterstício do que sou. um todo que eu própria desconheço (por traição da memória, esse orgão cujo controlo nos escapa) e certamente ainda mais estranho à generalidade das pessoas que me rodeiam mas aqui evidente porque, desde pequena viciada na palavra escrita e na fotografia, criei este baú que contém parcialmente a perda inexorável desse conhecimento.

claro que isto já vem na bíblia: "«Molero fala da outra parte da verdade que se escapa», disse Austin, ajeitando o relatório nos joelhos, «fala da vida que se esconde em cada ser, do fluido em que essa vida continuamente se perde e se reencontra, esse universo privado de sensações subtis que perseguimos e nos perseguem». (...) falta uma parte vital dessa vida, a sua substância mais alada, a vida de um homem é sempre mais pesada, e também mais leve, sempre mais ampla, do que a avaliação dela feita por outro (...)." (Dinis Machado, O Que Diz Molero)

(também Marguerite Yourcenar fala disto, pela pena de Adriano, mas ainda tenho de procurar a citação)

Etiquetas: ,

sexta-feira, agosto 18, 2006

silly posts VII


estou a chamar-te,
não ouves?
a minha boca fechada,
não vês?
fecha os olhos
e vem

como antes



Etiquetas:

quinta-feira, agosto 17, 2006

linha do norte




A chuva, a meio de Agosto, lavou a paisagem e deixou húmida a linha. Hoje parto. De sul a norte, a linha toda. Vou a Viana e venho, não tarda. Hoje faço de verdade a linha do norte. Escrevo depois, comboios.

terça-feira, agosto 15, 2006

exercício


o blog Porque está a divulgar o top 100 (da American Book Review) das frases de abertura de romances traduzidos para português. o Porque aceita sugestões para uma versão (beta) portuguesa da lista. pretexto para uma deambulação pelas prateleiras e exercício irresistível.

Etiquetas: ,

imperdoável



"no eternal reward will forgive us for wasting the dawn"
Jim Morrison, An American Prayer (acho)

Etiquetas:

"Velha Fábula em Bossa Nova



Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora
não querer.

(- Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)"

Alexandre O'Neill, Poesias Completas
(musicado por Alain Oulman e aqui cantado por Adriana Calcanhoto - em 1969 cantado por Amália Rodrigues no album "Amália e Vinicius")


Etiquetas: , ,

segunda-feira, agosto 14, 2006

silly post VI




o mar fica no meio.

silly posts V


ela tinha pesadelos com a indiferença dele. só sonhava com ele e com elevadores avariados. ela a cobri-lo de tudo o que ele pedia.

Etiquetas:

domingo, agosto 13, 2006

comboio especial



estes dias todos os lugares nos comboios, todas as estações da linha, reservados à maravilhosa viagem que é fazer campos.

Etiquetas:

velhote


Velhote, estás aí? …

Velhote é, para os que não sabem, um amigo que se cansou de filosofar na terra e partiu. Deixou-nos os olhos azuis a marear a memória mas de verdade foi mesmo ensinar metafísica aos anjos e sobretudo baralha-los.

Talvez o apanhe num instante de permeio entre a fé a profanação, a sorrir leve e maliciosamente, e aí o desvie desse gozo de confundir anjos... preciso de te falar. Estavas lá, não estavas? ao entardecer junto ao rio. Santa Apolónia e os comboios a chegarem. Os miúdos de mochila a não querem acabar o tempo ali e a cantarem com a força de quem espanta a dor da separação. A alma trucidada como dois carris paralelos e tão iluminada da mesma luz doirada de fim de dia. Os miúdos tão prontos a saber a essência da vida. Estavas lá que te vi de esguelha... sorrias? Certamente. Sorriso doce e simultaneamente orgulhoso. Filhos de gente que fizeste. Que igualmente viste, num dia terreno, a chorar no mesmo abraço onde começa a saudade e parte o comboio. Ligeiramente orgulhoso... são giros os nossos filhos, não são? mordidos de mosquito, encardidos de terra até aos olhos, vergados ao peso da mochila e tão cheios de felicidade. Essa mesma. A que fizeste para nós e nós, por gratidão eterna, a legamos como dádiva. Mas são giros os putos, não são?

Bem te vi... vira a esquina, aparece que bebemos um fino para gelar o calor e estancar a comoção. Não falaremos explicitamente disso mas tu contarás coisas de anjos como quem fala dos nossos filhos.

Quando te deixar no tasco, vou a trautear baixinho “ venham mais cinco “ e tu... tu assobias. Ainda te ocorre fazer a inscrição dos teus etéreos amigos, esses anjos baralhados do céu, num campo de férias. Dos teus.

sexta-feira, agosto 11, 2006

que pensa john malkovichcc ?


Que pensa john malkovichcc ?

Na chuva
Na estrada
Na mulher
Em ti

Agora adivinha tu, M...

quinta-feira, agosto 10, 2006

silly posts IV


É um homem que não conheço. Fotografei-o porque me pareceu bonito um homem encostar-se ao rio numa tarde de verão.

Suspeito um homem triste. Um caso por resolver. Uma fissura na pele. Uma ruga a mais no olhar. Homem cuidado mas com alma enxovalhada da vida. Pose estudada para uma tristeza pressentida na pele e no olhar.

Encostou-se ao rio para ligar. “ Está lá ? ... “ . Estaria alguém ?

quarta-feira, agosto 09, 2006

silly posts III

"Concentro os olhos no mais precário
lugar do teu corpo: morre-se
em agosto com as aves:
de solidão.

Neste instante sou imortal:
tenho os teus braços em redor
do corpo todo:
as areias escaldam: é meio-dia.

Do teu peito avista-se o mar
caindo a prumo:
morre-se em agosto na tua boca:
com as aves.
"

Eugénio de Andrade, Branco no Branco

Etiquetas:

para a rita


( fotografia de H )
Para a Rita


Um filho é um bocado de mar quente. O resto do sal. Um projecto de um barco que um dia irrompe de nós agarrado ao cais. Nasce quando lhe cortas a corda e o deixas manso mesmo perto de ti.« o mar faz-se devagar... » dizes-lhe num sopro.

Um filho é pedaço. Uma parte de desprendimento de nós. Multiplicação do respirar. História que foge da tua história. A palavra que se autonomizou num poema. Ter um filho é, em simultâneo, conter e estar contido.

A um filho ensina-se devagar as marés, os ciclos da lua, o cheiro a maresia e iodo, a bravura da tempestade. Começamos por ensinar a fazer barcos de papel, depois de cortiça e um dia de madeira.

A um filho ensinamos, aprendemos e fazemos o mar. Para que ele o saiba, com sal e vento. Para que ele seja feliz.

terça-feira, agosto 08, 2006

silly posts - II


o beijo acontece na lonjura da boca

domingo, agosto 06, 2006

silly posts


o mar ouvia-se melhor na tua boca

Etiquetas:

enquanto eles estão lá, na Serra da Lousã, e aqui na linha toca o "500 miles"


Diário dos Pais Invejosos

Nós somos os pais dos pinóquios que estão agora no campo. Mais do que uns pais ansiosos, somos uns pais invejosos! Sabem porquê ?

Porque também nós, alguns de nós, fizemos campos. Também nós dormimos em tendas, contamos segredos à noite, fomos ao rio, descobrimos pistas, amigos, estrelas e muita coisa nova.
Porque também nós fizemos caminhadas, cantamos os liríos, ficamos com bolhas nos pés, comemos sopa com sal a mais.
Porque também nós choramos, à partida, na estação de comboios e escrevemos à pressa as moradas das cartas que no resto do ano mandamos.

Foi assim connosco. E fomos crescendo, crescendo sempre com uma tenda instalada na alma onde cabiam todas essas coisas que vocês começam agora a saber. E a tenda ficou. Ficou para sempre. E dentro dela ficaram esses amigos que encontramos, essas dores que tivemos, as lágrimas que choramos, as músicas que dançamos, as gargalhadas que demos. Mas a tenda ficou sempre.

Crescemos, crescemos mais e tivemos filhotes. E a tenda ficou na alma, bem arrumadinha. Cantamos canções de embalar e histórias de entreter que eram canções e histórias que, sem dizer nada, fomos buscar à tenda.

E chegou a altura em que os nossos filhotes foram para um campo, ou seja, foram instalar a tenda dentro do coração. Ajudamos a fazer as mochilas maiores que eles, pusemos pilhas nas lanternas, desfolhamos o cancioneiro, deixamos muitos recados e fomos à estação. Deixamo-los partir, num aceno comovido, mas... o que queríamos mesmo, mesmo, era ir.

E agora estamos aqui, muito, muito invejosos. Temos um gato, mas é diferente. Vemos gaivotas, mas é diferente. É muito diferente!!!! Não tem o mesmo sabor... e, invejosos, resolvemos mandar esta carta pelos humanos. Temos os abraços, as saudades e os beijinhos guardados. Mas nestes dias, os pais gostavam mesmo, mesmo, era de serem os filhos pinóquios.


(texto de H, em 2005, subscrito por M, para sempre)

Etiquetas: ,

o que ando a ler (alguns livros destas férias)





contados no blog BKC.

Etiquetas: , , ,

sábado, agosto 05, 2006

fuga de férias


«Informam-se os senhores passageiros que nos próximos 15 dias não haverá paragem em Coimbra B por motivo de férias a não ser, e por excepção, para serviço público.»

Gostarei outra vez de ti quando o disseres.
E breve voltarei se o pedires.

Vou à procura de um novo sítio
para lá te levar quando quiseres
quando disseres «gosto outra vez de ti» e o sentires.


quinta-feira, agosto 03, 2006

até ao fim do mundo

eu também já fiz uma viagem assim: até ao fim do mundo. a minha última viagem. já então D e H souberam dela, vigilantes, perscrutando os meus dias com os olhos da alma, varrendo sem sono cada Km da linha imaginária que nos liga e munindo-me com os salvos-conduto para o caminho: duas bolas de sons cristalino, um baralho de Tarot, o sabor do Bombay Safira e dois sacos de palavras no lugar das mãos.

fiz essa viagem ao lado de um homem e todo o tempo foi como uma cena do filme: um homem e uma mulher caminham por uma montanha, ele com o braço algemado a uma porta fechada.

(imagem do filme "até ao fim do mundo", de Wim Wenders)

conhecemo-nos na vertigem de um paso-doble. depois, ele chamou o meu nome na noite escura e eu fui. partimos do sul, das areias de Tróia, e rumamos a norte. Guincho, Praia Grande, Almoçageme, Atalaia, Alenquer, Vila Franca, Montejunto (o som alucinante das antenas como um imenso enxame de abelhas), Torres Vedras (uma missa de domingo). e já me esquecia: o calor, demente, a tornar mais evidente a porta – a parede, a montanha – algemada aos nossos pulsos.

e outra coisa: o riso. o dia inteiro a rir. às vezes falar, depois de rir muito, falar de coisas sem lhes dar o nome. embora isso fosse mais tarde, com o Bombay na Galiza. depois Leiria, Porto (Swing), Castelo do Neiva, Afife, Caminha, Sanxenxo. aqui a chuva, diluviana, e o cheiro das coisas que a chuva molha. um quarto de hotel desolado com duas camas (numa ele a brincar com as bolas chinesas e a pôr as cartas do Tarot, eu a dormir na outra). chuva na janela do quarto durante o sono, chuva sempre até Santiago, chuva nos vidros do carro. acordar e ser de noite, Vigo, Baiona e uma conversa densa com Deus à mistura, entre 2 Bombay – já não sabíamos beber outra coisa. um jogo difícil.


depois do gin ele chamava-me “mana” e de noite eu tinha os pesadelos do costume. estávamos separados por muito mais que o intervalo entre duas camas, por mais que as nossas duas vidas juntas:

mais separada de ti que um sim de não. separada de ti pelos sacos de palavras que já escreviam esta história. eu aproveitava o teu silêncio (a tua ausência, onde ias?) e saía do meu corpo para ficar a espreitar-nos pelo tecto de abrir do carro e pelos espelhos dos quartos. ficava a ver-nos, a ti e a mim e à montanha que trazíamos algemada aos pulsos. e aquilo já não era bem a minha vida, entendes?

era uma história: feita de lugares que desenharam uma geografia nova. desde então Lisboa lembra-me Troia e a Galiza uma casa na Atalaia. nessa altura, se pensava em S. Xenxo ouvia o ruído das antenas no cimo da serra do Montejunto e quando chovia torrencialmente sentia o calor demente de Vila Franca. a minha cama lembrava-me a tua e o Bombay sabia-me por vezes aos cigarros que fumávamos à tarde depois de dormir. quando acordava sozinha era de dormir separada de ti que me lembrava.

foi uma viagem aos limites de um mundo vedado, interdito, atravessando portas fechadas e muros de pedra, na fronteira entre a noite e a manhã.

Etiquetas: ,

à escuta


A acompanhar o 30-12-HB na inspecção anual, ouvido atento à voz no altifalante ampliada, lá de baixo mandava o funcionário «vire o volante para a esquerda e a direita, agora trave… isso… está a ouvir-me?»

Não estava. Estava atento a uma outra conversa que, inesperadamente, se fez ouvir do outro lado, junto ao bar:
«… a conversa andou dali para ali e coisa e tal… sabe-se lá se até falámos de mulheres!»

«Sabe-se lá...», dito num tom ardiloso de quem não falou de outra coisa. Nas mulheres sim, «sabe-se lá», é que é importante algumas vezes ter segurança na direcção, quando se deixam por descuido conduzir e depois travar se formos a tempo.
«Está a ouvir-me?»

quarta-feira, agosto 02, 2006

israel


Parece uma lança da era da pedra lascada, sempre guerreira, ou apenas um aparo de caneta de tinta. Já só serve para ferir no mármore velhos epitáfios. Quando é que isto acaba? Quando é que os mortos começarão a enterrar os mortos?

terça-feira, agosto 01, 2006

caderno de duas linhas - x - Fim

X

Apanhou o primeiro comboio. A madrugada deixava adivinhar Agosto e o calor. Confirmou, ainda na gare, a presença do “voucher “ no bolso interior do casaco de linho. Subiu para a carruagem e escolheu a janela. «Vou... pensou... ter com ela ou tão só recuperar o carro».

Os comboios têm uma dolência sincopada, levam-nos com vagar ao fim. Ás vezes o mar, ou tão só os milheirais. Deixou entrar a paisagem num olhar vazio de janela. Se é certo que ia ter com ela, também certo é que nada esperava. Sentia-se quase vazio, quase esgotado. Barba por fazer. Desalinho no linho do casaco. Charuto por fumar. Livro de poemas por ler. Dormitou em sobressalto. Sonhou com cartas, muitas muitas cartas das quais saiam rostos vagos de mulheres misturados com palavras a tinta azul. Muitas, muitas mulheres. Muitas, muitas palavras.

A estação, outrora ocre, era agora de um claro azul abeirado ao azul do rio grande. Apanhou um táxi até ao hotel. Sentou-se no hall a ler os jornais e acendeu o charuto. Deixou-se a ver a tarde e a cidade. Também o mundo em viagens nos homens e mulheres que ao hotel aportavam. «Esperarei por ela na cama...», pensou, enquanto dava entrada no quarto sombrio. Cortinados grossos e antigos. Cheiro a madeira nobre.

Adormeceu cansado no meio do poema que acordou com a manhã a raiar na última estrofe e na primeira janela. Estremunhado, pressentiu o fumo sem o saber. Pensou no charuto ou no amor a arder. Abeirou-se da janela e afastou os cortinados grossos e antigos. Soube então que a cidade ardia a partir da colina.

Destruída cidade em parte do corpo. Agosto ficou cinzento de fumo. Nos escombros de uma casa velha, a caminho da colina, restava ao vento uma só folha onde se podia ainda ler a carvão "caderno de duas linhas“ ...

FIM

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!