quinta-feira, agosto 03, 2006

até ao fim do mundo

eu também já fiz uma viagem assim: até ao fim do mundo. a minha última viagem. já então D e H souberam dela, vigilantes, perscrutando os meus dias com os olhos da alma, varrendo sem sono cada Km da linha imaginária que nos liga e munindo-me com os salvos-conduto para o caminho: duas bolas de sons cristalino, um baralho de Tarot, o sabor do Bombay Safira e dois sacos de palavras no lugar das mãos.

fiz essa viagem ao lado de um homem e todo o tempo foi como uma cena do filme: um homem e uma mulher caminham por uma montanha, ele com o braço algemado a uma porta fechada.

(imagem do filme "até ao fim do mundo", de Wim Wenders)

conhecemo-nos na vertigem de um paso-doble. depois, ele chamou o meu nome na noite escura e eu fui. partimos do sul, das areias de Tróia, e rumamos a norte. Guincho, Praia Grande, Almoçageme, Atalaia, Alenquer, Vila Franca, Montejunto (o som alucinante das antenas como um imenso enxame de abelhas), Torres Vedras (uma missa de domingo). e já me esquecia: o calor, demente, a tornar mais evidente a porta – a parede, a montanha – algemada aos nossos pulsos.

e outra coisa: o riso. o dia inteiro a rir. às vezes falar, depois de rir muito, falar de coisas sem lhes dar o nome. embora isso fosse mais tarde, com o Bombay na Galiza. depois Leiria, Porto (Swing), Castelo do Neiva, Afife, Caminha, Sanxenxo. aqui a chuva, diluviana, e o cheiro das coisas que a chuva molha. um quarto de hotel desolado com duas camas (numa ele a brincar com as bolas chinesas e a pôr as cartas do Tarot, eu a dormir na outra). chuva na janela do quarto durante o sono, chuva sempre até Santiago, chuva nos vidros do carro. acordar e ser de noite, Vigo, Baiona e uma conversa densa com Deus à mistura, entre 2 Bombay – já não sabíamos beber outra coisa. um jogo difícil.


depois do gin ele chamava-me “mana” e de noite eu tinha os pesadelos do costume. estávamos separados por muito mais que o intervalo entre duas camas, por mais que as nossas duas vidas juntas:

mais separada de ti que um sim de não. separada de ti pelos sacos de palavras que já escreviam esta história. eu aproveitava o teu silêncio (a tua ausência, onde ias?) e saía do meu corpo para ficar a espreitar-nos pelo tecto de abrir do carro e pelos espelhos dos quartos. ficava a ver-nos, a ti e a mim e à montanha que trazíamos algemada aos pulsos. e aquilo já não era bem a minha vida, entendes?

era uma história: feita de lugares que desenharam uma geografia nova. desde então Lisboa lembra-me Troia e a Galiza uma casa na Atalaia. nessa altura, se pensava em S. Xenxo ouvia o ruído das antenas no cimo da serra do Montejunto e quando chovia torrencialmente sentia o calor demente de Vila Franca. a minha cama lembrava-me a tua e o Bombay sabia-me por vezes aos cigarros que fumávamos à tarde depois de dormir. quando acordava sozinha era de dormir separada de ti que me lembrava.

foi uma viagem aos limites de um mundo vedado, interdito, atravessando portas fechadas e muros de pedra, na fronteira entre a noite e a manhã.

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3 Comments:

At 12:26 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

desculpem, mas tive de fazer isso: tinha sido eu pôr o blog de pernas para o ar e só agora o pude consertar. como aquilo não tinha emenda, só me restou apagar o post e postá-lo de novo.

 
At 1:18 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

OK, imperdível era este teu post.

 
At 1:24 da tarde, Blogger Sérgio R said...

"Until the end of the world"... do que me foste tu lembrar!... o fim do mundo está de facto em todo o lado. Cheguei de um um dia destes. Espero ir para outro outro dia destes.

 

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