Obrigado M.
Recordar os Mler if Dada e o Nuno Rebelo. Coisas que fascinam. Se mandasse, amanhã logo pela manhã todas as missas em todas as capelas e igrejas deste país ouviriam esta música e ler-se-ia o texto como epístola.
Em Almaça, a barragem da Aguieira faria uma descarga de música-de-água, Mondego abaixo até ao Atlântico, na Figueira… o mar multiplicaria o som a cada sétima onda pelas sete partidas do mundo.
“Fechar os olhos e ouvir em stereo”.
Releiam o texto e depois experimentem fechar os olhos, ouvindo a música apenas.
O Nuno Rebelo obriga-nos a ver, ler o mundo no céu!
M obriga-nos com Wim Mertens a avivar o texto na memória!
Tentem agora!
…
…
…
Obrigado M!
"coisas que fascinam"
"A muralha da China. Os papagaios que falam. A lua e o céu à noite. A trovoada, os relâmpagos. O arco-íris e as manchas de óleo numa poça de água. O brilho cegante dos soldadores. O mar e os sons da água nos rios (fechar os olhos e ouvi-los em stereo), fazer o mesmo com os carros que passam e as pessoas que falam. Confusões de vozes numa festa (esquizofrenia sonora). O Jardim Zoológico e o Aquário (as cores dos peixes). O fantástico mundo submarino. As conchas. Os cogumelos, os fungos e líquens nas árvores. As lagartas brancas nos cadáveres. Os cristais de resina nos pinheiros. Os frutos tropicais e as ilhas exóticas. Comidas deliciosas. Roupas extravagantes. Os samurais, os egípcios, os romanos, a fábula de Veneza. A tragicomédia de Nova York. Aquela pessoa, porque é bonita. Aquela outra, porque diz coisas interessantes e inesperadas. Ainda outra pessoa por ser assim como é. Espaços amplos, espaços completamente claustrofóbicos. Espaços construídos, espaços destruídos. Mil coisas que se encontram no ferro velho. Os cristais de quartzo, estaurolitos, minérios brutos. As línguas estrangeiras, tanto mais fascinantes quanto mais incomuns e indecifráveis. O fogo, a idade média. Toda a história do mundo. Os sintetizadores e o futuro. Luzes, cores, sons, povos, espaços, o tempo. São um nada as coisas que eu compreendo e essas não me fascinam."
(texto de Nuno Rebelo - Mler If Dada - e som de Wim Mertens, CD Strategie de la Rupture, 1991) Etiquetas: Mler If Dada, Nuno Rebelo
Cardiofitness - um jogo de emoções
Não foi a peso de bom dinheiro no hotel da Curia.
Foi passar pela rua da casa onde a ia buscar, ver a casa e saber que o coração acelera ritmo antigo. É definitivamente um electrocardiograma – um jogo de emoções.
Inicia-se se há vestígios, acelera se um qualquer objecto na memória da noite ilumina o ar, bate o coração desmesurado se um sinal de gente transparece.
O carro não estava. Na janela as portadas permaneceram fechadas e por isso o jogo acabou ali e a actividade eléctrica cardíaca não fugiu à onda-padrão.
E se um dia o carro está?
E se um dia a portada da janela tem visível um arranjo de flores, o cinzeiro no parapeito, o gin escondido no cortinado?
E se uma noite ela está no carro com o camisolão das saídas para o frio e acena alegre com um ramo de violetas?
Pára o coração. É barato, mas mortal este cardiofitness.
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Estação para pousar
Não ando fugida, não ando longe, não perdi nem troquei horários de comboios nem ramais. Não posso é deixar de...
Acontece que tenho andado inquieta e entusiasmada entre as muitas coisas que se me tem sido oferecidas para viver. Acontece às vezes a vida se tornar maior que o tempo. Se concentrar por excesso. Nos chamar por urgência. Arfar de prazer. Nos levar com facilidade.
Nestas alturas não há palavra para pousar, não há repouso que se faça senão na cama, não há pensamento por estamos a sedimentar emoções. A alegria em mim nunca procurou palavras. A alegria em mim não deixa pensar. Não posso passar ao lado de.
Mas seguramente o tempo se amansará e aí, chegarei à estação e nessa altura estarei então disponível. Com tempo e ar por dentro. Corrente de ar. Janela aberta e quietude. Deixarei então as palavras sentadas ao meu lado à espera do comboio que pare e daquele que jamais parará. Compro o bilhete. Saberei a hora certa.
Há também o calor e a dilatação da alma. Os livros e os amigos. O mar, sempre o mar.
Magia do vapor d'água
Encontrou o livro em casa da avó. Abriu, deu linhas ao olhar e experimentou a velha magia. Terapia.
Cortou pedaços de papel branco em forma de mortalhas para cigarros.
Escreveu em cada um o nome de três homens,
Jorge,
Manuel,
Agostinho – a conta que Deus fez! – e palavras de resposta como
sim,
vai demorar,
não demora,
casada.
Enrolou os pedaços de papel, colocando-os numa peneira sobre a panela de água a ferver.
O vapor da água fez abrir os papéis, associando o primeiro nome à primeira resposta evaporada.
Saiu o nome
Manuel e a resposta
casada – ou seria
cansada?
O vapor tornou disforme a resposta.
São Cipriano sempre foi um capa de aço subtil!
calor
(imagem surripiada em www.substrato.weblog.com.pt)o cheiro do calor que se sente nos primeiros dias quentes do ano transforma os meus dias. sentir logo de manhã o ar quente na casa (em vez do friozinho costumeiro) invade-me de uma fúria de viver que não tem explicação. gosto de tudo nestes dias quentes: de acordar, de dormir, de beber uma cerveja fresquíssima, de comer, de trabalhar, de não trabalhar, de falar com pessoas, de seguir calada pela rua, de ouvir música, de ouvir gente...
...seguia eu pela rua a gostar assim de tudo quando de repente presencio um clássico português: dois automobilistas e respectivos acompanhantes engalfinhados num cruzamento, os respectivos carros parados mais à frente (e nem sequer estavam amassados, não, pareceu-me só uma questão de território) e a restante cidade parada a ver.
não, não gosto nada de tudo quando está calor
Etiquetas: quotidiano, Verão
Nevoeiro, Abril, 26
Eis o nevoeiro fino pela manhã.
Um outro,
mais cego no meu olhar
pelas curtas horas que doei ao pernoitar.
Seria a mensagem “valete, frates” do Pessoa
ou a ameaça de Sebastião
mostrando o fio da espada na proa?
Comboio pressa
Se vamos dizendo entre nós os pontos cardeais:
H em Buenos Aires com o Veríssimo.
M deitada cedo em Campanhã com a Grândola Vila Morena.
D esperando a passagem em Coimbra B do 25 de Abril.
Qual é a pressa?
Na mesa ao lado...
Estava Sintra a escurecer com nevoeiro, a escurecer o musgo dos muros, das árvores e das casas de pedra. Caía o nevoeiro com o silêncio do anoitecer. Esfriava em terra húmida. Acenderam-se as luzes amarelas.
Fui ontem jantar ao restaurante do Lawrence’s Hotel, o mesmo do Lorde Byron de Eça Queiroz e Alexandre Herculano. Fui em celebração para um lugar escondido do mundo.
Passaram poucos minutos quando na mesa ao lado se sentou Paul Auster. Camisa preta e calça de ganga. Voz forte e aveludada. Conversa de filmes. Também ele ali num lugar, enevoado, escondido do mundo. Vinho branco gelado, bebeu.
Encorpei no tinto e na conversa. Aferi com o empregado da autenticidade da parceria. Hospedado no Lawrence’s até Julho. Preparam um filme de umas das suas obras.
Também ele se encostou ao musgo das árvores, ao silêncio das histórias, ao arfar intenso do passado, ao mistério do lugar.
Encontrei-o sentado na mesa ao lado.
Onde está o 25 de Abril?
Já não deves perguntar “onde estavas no 25 de Abril”, mas “onde está o 25 de Abril”.
A data tornou-se móvel como a Páscoa ou o 29 de Fevereiro. Sei de fonte segura que o 25 saiu da Madeira, tendo sido visto hoje no Marco de Canavezes.
Vasco Lourenço aproveitou a ponte “Salgueiro Maia” (fins-de-semana com tolerância de ponto à portuguesa) e espera o 25 no Algarve.
E há países da América Latina que manifestaram interesse na sua aquisição. Hoje o 25 é data móvel, apetecível.
Sei de outra fonte segura que há um banco numa “off-shore” das ilhas Caimão que apresentou a Cavaco, via Durão Barroso, a compra do 25 de Abril, do 11 de Março e do 25 de Novembro – pacote revolucionário – para os negociar com países do Leste europeu.
O 25 de Abril permite que haja alguns que passeiem pin’s nas ruas com o 13 e o 28 de Maio. O 25 é tolerante.
A Assembleia da República, num acto condescendente, até deu cadeira, micro e salário a um deputado “Manel 25”, expressão da democracia no seu explendor.
A criatividade da RTP estatal, para fixar o agora descontrolado 25, fará como na quadra da Páscoa: enfia-nos neste dia pela tarde dentro “Capitães de Abril” em substituição das “Sandálias do Pescador” e do “Quo Vadis”. Teremos anos disto.
A sorte de Portugal é que cada português, à sua medida, tem o seu 25 de Abril guardado como semente.
Se o Estado o vender às ofertas ditas para correcção de deficit, cada português terá uma semente 25 para lançar ao território. Nascerão cravos, renascerá sempre o meu país:
- onde está o 25 de Abril?
Presença floral
Para a Marta:
Sei por M que estiveram alguns dos suspeitos do costume.
Os amigos, quando não podem estar, tentam-se representar.
Desse teatro de querer e não poder, fiz como melhor sei:
- mandei-me inteiro dentro de um arranjo de flores que não vi
com água que baste, florindo o suficiente, para me lembrar de ti!
Nota: Inquieta-me que a vossa condescendência permita a DB continuar a tocar viola! Estarão surdos com a idade?
para a Chinook, depois da festa
"Aos Amigosamo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhoscom os livros atrás a arder para toda a eternidade.não os chamo, e eles voltam-se profundamentedentro do fogo.- temos um talento doloroso e obscuro.construímos um lugar de silênciode paixão"(Herberto Hélder)Etiquetas: amizade, festejos, Herberto Hélder
ainda um poema de CG
"um dos produtos era uma chapa
de ferro deixada na terra durante alguns dias,
creio que uma semana. Uma chapa de ferro
enterrada num quintal, apodrecida,
enferrujada por fim onde fora escrito
de um lado LOVE WILL TEAR US APART.
Há uma separação nestas coisas, a beatitude
que surge através de um exílio surdo face
à realidade. Solidão, solidão, ainda um modo
de revelar-se fiel a um corpo
musical projectos nascidos já
para o esquecimento
e talvez por isso ganhando logo
a eternidade e o culto dos que se querem
perder, esfacelar na memória"(CG Novembro 1985)Etiquetas: Carlos Gomes, joy division
Contos do hélder chinês
Paus chineses da linha
Para a Inha:
“Um velho sábio mandarim teve um dia o privilégio de visitar o outro mundo:
Visitou primeiro o inferno.
Por mais estranho que pareça, era um lugar lindíssimo, cheio de jardins, de aves raras, de lagos azulados e montanhas rosadas, cujos cimos brilhavam ao sol.
No centro desse lugar, conduziram-no a um palácio maravilhoso, onde, numa esplêndida sala de jantar, eram servidas às pessoas as mais deliciosas iguarias confeccionadas com arroz.
No entanto, toda a gente tinha um ar famélico e infeliz.
E o velho mandarim compreendeu porquê, quando reparou que para se servirem tinham distribuído pauzinhos com dois metros de comprimento, com os quais lhes era obviamente impossível levar a comida à boca.
Angustiado com este espectáculo, pediu que o conduzissem depressa ao céu.
Aí, surpreendido, verificou que a paisagem era idêntica à do Inferno. E num palácio em tudo semelhante ao primeiro, encontrou o mesmo banquete preparado com as mesmas iguarias.
Apenas no rosto das pessoas via uma expressão tranquila, saciada e feliz, que admirava tanto mais quanto os via empunhar os mesmos pauzinhos com dois metros de comprido.
Observando melhor, notou então que cada pessoa, com seus pauzinhos, dava de comer à que se sentava de fronte.”
(Conto chinês dado pelo Hélder, em sua casa, depois de uma festa dos Campos em Almaça)
Nota do Hélder em adenda à época:
“Com a Lua a minguar a caminho da fase de Nova, torna-se possível observar as Constelações de Primavera em todo o seu esplendor, como por exemplo a Virgem ou a Coma Berenice, com os seus enxames de galáxias, ou o Boieiro com o seu brilhante enxame M3. Mais para o fim da noite já é possível ver Constelações típicas do Verão como o Escorpião e Sagitário.”
O tempo nas tuas mãos
Quando disseste que nas tuas mãos há tempo que baste para fazer um ninho, e depois dele nascer um pássaro azul, acreditei. Tinhas tempo!
O teu tempo faz-me lembrar.
Lembra-me que tens de te lembrar.
Não é o inscrito na agenda.
O toque do telemóvel.
O fio atado no dedo.
O despertador agudo.
A falta ao dormir de respirar.
É esse tempo do mito eterno de voltar.
E o tempo que gasto agora a juntar ventos para o pássaro poder voar.
Dados que foram dados
Chegou por telemóvel com convite para jantar. Lousã. Burgo a olhar o Talasnal. Lá fomos, comemos, bebemos, lavámos as mãos na água fria da piscina natural e falámos muito. Quem sim, que a vida está uma merda, que é preciso ter tomates e, versão dela, muito feminina, ter o sítio onde eles batem. Ofereceu-me um par de dados e disse: - Lança-os de manhã ao acordar. Até seis é dia mau. Seis ou mais é bom, podes sempre dizer bom-dia. Doze? Deita-te de vez e dorme até ao meio-dia. Ficaram os dados e a memória dos seus dedos. Nos dados e nos meus dedos. “Alea jacta est”.
Gestão vertical
Há os que não perceberão nunca as funções de um organigrama – serão sempre oportunistas felizes!
Outros há, que percebendo, fazem dele gestão vertical – mediaticamente felizes, a história corrigirá o desvio do defeito.
Outros desenham organigramas por convicção. Como quadros onde pintam traços simples nas ligações hierárquicas para a felicidade dos outros. Normalmente são quadros sem espaço nas galerias, porque demasiado altruístas.
O equilíbrio define-se quando o pintor explica ao gestor vertical que, para o ser, todas as noites se deita umas horas – posição horizontal – onde a cabeça, deitada, nos torna mais sensatos.
Queira o pintor explicar, queira o gestor dormir o suficiente para perceber.
Quando a folha de um lado se sobrepõe ao espaço imaginado de partilha, procura outras artes o pintor, perde o gestor, ganha o oportunista… e disso tenho sempre receio que baste.
duas equações de equinócios
1. SETEMBRO
o poente não escurecia e a noite, nunca
amanheceria, ainda a madrugada
não era de adormecer. Não ali.
Corriam os momentos, rios
em nossos corpos-templo, vazios,
esgotados de qualquer eternidade.
Procurávamos, o desaguar da
espera. Encontrávamos
que a serra não nos deixaria adormecer
2. COIMBRA
as próprias manhãs sabem a outra
coisa quando não se acorda, viemos
desde o dia anterior. Navegando
no fumo, confidências, café que
trazemos nos olhos. tão frágil este
nosso corpo e hesitantes e poucas
e curvas as explicações da felicidade
que encontramos. Que perdemos.
nunca teria sabido acordar, esse abril.
(texto escrito a 4 mãos - as minhas e as mãos perdidas para sempre de CG - em Junho de 1985)Etiquetas: Carlos Gomes
insónia
Deitaste-te cedo, cansado, fora das tuas horas.
Acordas.
O corpo soube procurar um copo de água fria.
Vai lá espreitar!
Sabias que acordavas, rente despertar.
Vai ver de H e M.
Vai à linha.
Pesca à linha.
Afinal quem chega tarde?
Elas ou tu?
Acorda o Cohen, lembra-lhe
o Astor Piazzolla e o Georges Brassents.
Acende a cigarrilha.
Fumaste-a?
Vai-te deitar.
São, breve,
outras horas para acordar.
Assobio e uma lição
Sentei-me na esplanada feliz. Tinha sol que baste, a mesa limpa, a cadeira escorrida das últimas chuvas.
O gin tónico foi servido por profissional (copo largo e alto, as medidas certas, a rodela de limão fresca como o dia).
Peguei no livro e ali estive no tempo de três cigarrilhas.
Depois, o assobio.
Era JP, ligeiro, que passou e convidou para um almoço de caras de bacalhau.
Não resisti. O gin ajudou. Difícil foi explicar aos comensais o livro que trazia:
- “A Civilidade Pueril”, clássico de bolso de Erasmo, onde se fala da decência da apresentação, do vestir, do corpo e seu trato, das refeições, dos encontros, do dormir… tudo pouco apropriado para quem tem de chupar os dedos, constantemente, a comer caras de bacalhau.
Da cozinha, a lição. Um homem gordo, diria gorduroso, de avental a suster esforçadamente a barriga, bigode farto, vendo o livro sobre a mesa, provocou-me:
- Conhece as “Notas de Cozinha” de Leonardo da Vinci?
- Não, respondi!
- Então compre e leia. Não chupe os dedos… parece que foi ele que inventou o guardanapo.
(Já comprei). Juntei-o ao Erasmo. Uma nova cadeira de formação. Estou definitivamente agora em período escolar.
pretérito quase perfeito
"(...) Não se contam os adeuses nem as solidões, ou as partidas, que foram desaguar, como afluentes da nossa adolescência, ao mar manso e morto da música de Leonard Cohen. Aí ganhavam algum sossego, alguma companhia. Não compreendíamos as palavras, não conhecíamos os sítios, mas, à mesma, mergulhávamos nessas águas paradas de tanto correr, mornas à passagem dos nossos corpos doridos, cintilantes sob o hálito luminoso da lua. Na música de Leonard Cohen encontrávamos, pois, os nossos barcos.
Esses barcos não rumavam a lugar algum; nunca os conseguimos desatracar das nossas imaginações. Imaginações como cartas de navegação: Calcutá, Macau, Ceuta, Liverpool, Lisboa. Imaginações como viagens: vapor, mulheres de negro, absinto, contrabandistas, porões. Os nossos barcos aportavam apenas ao silêncio, ao silêncio de um sonho.
Ao silêncio de um sonho íamos amando. Eram tão largas as paixões em que caíamos! Caíamos indefesos e atordoados mas, mesmo assim, nunca desejamos escarpar-lhes. Em vez dos lábios duma mulher, em vez dos braços duma menina, beijávamos o espelho da casa de banho, abraçávamo-nos às almofadas da cama. E em vez de palavras como 'amo-te, amo-te' sussurradas aos ouvidos, ouvíamos as cantigas de Leonard Cohen. (...)"
(excerto de um texto de Miguel Esteves Cardoso intitulado "Leonard Cohen, o homem que trabalha o tempo", divulgado numa emissão do programa de rádio "Pretérito Quase Perfeito" dedicada a LC e emitida em Janeiro de 1982)
Etiquetas: Leonard Cohen, Miguel Esteves Cardoso, rádio
Papel de carta
Foi o meu folar da Páscoa. Comido, lido no Sábado com chuva à pilheira da Gândara. O exílio de Sena encontrou em Sophia a lição ética e a construção estética que precisava o país salazarento (sal azarento).
Mas é mais que isso:
- são dois sóis que teimavam por carta repor à vida a luz que dela mereciam e uma inconfundível lição de amizade felizmente acessível.
As cartas continuam a fazer todo o sentido. Poderão ser cada vez mais dispersas no tempo, mas sempre que chegam a vida recupera pele nova sobre estas rugas que começámos a desenhar em vez de as escrever. Um dia voltaremos a isso!
Facilita-me a confissão...
- Arranja-me aí um catálogo das confissões.... quero escolher uma onde me deixe confessar.
Confissão
Tempo da visitação. Entro na igreja que escolhi ao acaso por falta de serviço na loja do cidadão. Há uma luz celestial vinda do vitral dos anjos plasmados no vidro. Ouve-se música de cravo. Dirijo-me ao padre que não vejo, escondido do mundo no mobiliário de castanho. Faço o sinal da cruz.
Digo: - em nome do espírito santo.
Padre: - Vamo-nos colocar na presença do Pai. Que Ele lhe dê a alegria e a coragem de uma vida nova.
Digo: - Padre, pequei contra Deus e contra os irmãos. Estou arrependido e peço perdão. Andava no meu juizinho todo, mas dos novos pecados anunciados nada consegui controlar. Sim, leio jornais, navego na Internet, vejo TV e, pasme-se, - pasmo-me! -, comemorei hoje com amigos os 100 anos de nascimento de Samuel Beckett, esse homem do absurdo, nada temente a Deus nosso Senhor e motivo-me com Eça, Guerra Junqueiro e Torga. (Rezo de seguida, por eles, quatro vezes o Acto de Contrição).
Padre (rezando também com a mão estendida): - Deus, Pai de misericórdia, a ressurreição de seu Filho reconciliou o mundo consigo, enviando o pedido para a remissão dos pecados, pelo que lhe concederá, pelo ministério da Igreja, o perdão, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Que o Deus nosso Senhor o acompanhe.
Digo: - É só isso o que tem a dizer? Nem um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria de penitência? (Era o que ainda sabia dos acordes de infância!).
Padre: - Vai ao site do Santuário de Fátima e encomenda um e-perdão. Esquece a penitência Internet. Eles que te recomendem à reparação da alma. Tenho mais que fazer. Sabes que agora nos novos pecados também temos que apresentar a declaração do IRS? O Ministério da Igreja passou a cruzar os dados com o Ministério das Finanças. Estamos lixados!
Digo: - Que ao menos o Ministério das Finanças esteja consigo. Ele está nos bolsos de nós.
(Saio da igreja e lavo as mãos na pia de água benta).
Disponível também em garrafinhas individuais, 0,33 cl, com rótulo ecuménico, à saída da sacristia, entende-se o esforço para a receita.
Leio o rótulo. Engarrafada pelo consórcio Bento XVI. Águas destiladas. Brindes “crucifixos JNRJ”. Bênção de óleos. Excursões ao Vaticano. Cerimónias de lava-pés. Exorcismos. Atestados de castidade e celibato. Lugar central na procissão de bêbedos do Redondo. Desculpas infalíveis para faltas de deputados. Garantias electivas Berlusconi. Homilias para divórcios. Recuperação de dívidas.
Tudo a 5 euros.
Digo: - compro o quê, mãe?
Espantalho indizível
Quis a oportunidade que pudesse hoje fotografar uma exposição de espantalhos. Depois fui ver mais perto: ao fundo, a linha do norte e, mais próximo, no espaço, um busto de um homem que respeito – com quem aprendi da política autárquica o saber como a entendo ainda.
À sua volta espantalhos!
Fica a dúvida: seria um acto do pelouro da cultura da nova gerência ou a representação indizível do futuro que dele sobrou?
Gajos a abater
Já o conhecia antes. Hoje mais de perto no seu palanque preferido. A política. Trazia escrito na gravata o texto do discurso para ser o centro das atenções. Na cabeça uma linha contínua de néon abrilhantava-lhe a burrice.
Falou, falou, falou e os seguidores da religião apresentada batiam palmas a cada copo de água do irascível profeta.
Tinha 16 pontos na agenda e permitia aos mortais que apenas se pronunciassem em “outros assuntos”.
Quando chegou ao ponto, levantei-me e fui tratar de “outros assuntos” mais importantes:
– três finos e um pratinho de tremoços.
os comboios, Alice Vieira e Tolstoi
Alice Vieira gosta de comboios, dos filmes a preto e branco em cenários ferroviários, de "
pequenos restaurantes, de soalhos a cheirar a sabão e cera, de mesas de ferro e madeira, e melancólicos criados que nos deixavam nas mesas grandes chávenas de chocolate quente, que agarrávamos com ambas as mãos para que o frio passasse mais depressa. Aí sonhávamos com os nossos heróis do cinema, esperando que chegassem no próximo comboio (....) o tempo da paixão, que começa e acaba entre um comboio que chega e um comboio que parte, com muitos violinos em música de fundo. E fumo. Nuvens e nuvens de fumo."
Neste livro (Bica Escaldada), na crónica "
Dantes os comboios", Alice Vieira espraia-se neste imaginário de encontros, gares e personagens, e conta-nos que Tolstoi (o escritor que também era médico) um dia, já velho, saiu de casa, apanhou um comboio, apeou-se numa pequena gare longínqua (Astapovo) e aí se deixou morrer sozinho. Alice Vieira comenta que lhe pareceu "
a maneira mais digna de morrer - sobretudo, como era o caso, aos 80 anos, depois de já se terem apanhado e perdido todos os comboios essenciais da vida."
nota: actualizei, com uma correcção e alguns links úteis o post "foi assim"
Etiquetas: Alice Vieira, livros, Tolstoi
Exilada num livro
Ando agora em terras de chuva, pela Colômbia, nessa história que me levou atraiçoada na determinação. Pela Baía Negra. Perto da selva e do mar. Ainda não ouvi comboios nesta história de amor entre uma catalã e um colombiano. Já senti a chuva grossa e quente, o arfar da terra, o barulho do mar, o cheiro a petróleo do candeeiro... vou contando, se os mosquitos me deixarem e as sombras não me assustarem.
“Os anos, dizia Wilson, roubam-nos as palavras. Basta reparares nos velhos. O seu olhar perde-se ao longe durante horas. Falam com o mundo. Como eu, quando me perco “.
Caixa de segredos
Agora há as passwords dentro de passwords, como caroços dentro de caroços, Marioskas Bill Gaytes, limites onde se escondem os segredos. Tudo escondemos do que temos a esconder com um prefixo “e-“ (é, traço) qualquer coisa – byte informático!
Permite esconderijos a cartas.pdf, fotos.jpg, músicas.mp3.
E permite “delete”, esse passo efémero contra a memória dos dias.
Do prazer, do verdadeiro prazer, é ir ao esconderijo antigo. Porque as cartas têm de ser palpáveis para bem lidas e sentir-lhes o cheiro do tempo de guardadas em aforro; as fotos precisam de um espaço próprio, escolhido nas mãos para as chegar perto dos olhos e accionar memória; os discos carecem de movimento para os abrir como pães quentes, onde escolhemos do conduto.
- E não há coragem para a tecla “delete”.
Obriga-nos a uma ética de personalidade, de responsabilidade para quem connosco partilhou momentos, mesmo que algumas vezes apeteça apagar da memória.
Tenho essa luta comigo, mas o essencial - o meu essencial - ainda repousa disponível em dois escaninhos de carvalho envernizado.
domingo de ramos
O miúdo, educado na igreja da avó caseira, ofereceu alegre e decidido à madrinha a palma enfeitada de flores de papel.
A madrinha nada sabia da entrada triunfal de JC em Jerusalém e desse ritual com que ainda se alimentam gerações.
O miúdo falou-lhe de que lhe falaram da Paixão do Senhor.
A madrinha ouvia e pensava na paixão que tinha por Pedro e no convite recebido para jantar.
Beijaram-se no momento da partilha. Um ensinado pela avó a pensar em JC, outra ensinada pela vida a pensar em Pedro.
Nada impediu a que o dia tenha sido delicioso: a madrinha passeou o miúdo pela praia, ofereceu-lhe um gelado e cada um no seu deslumbramento foi feliz, caminhando juntos rente à subida da maré nesta tarde de chuva, até à hora de jantar.
foi assim
uma semana a dormir 10 horas por dia, a comer pão alentejano torrado com manteiga, a ler e a apanhar sol de manhã à noite (com dois diazitos de chuva pelo meio que só serviram para dormir, comer e ler ainda mais). e mais não digo para a inveja não invadir a linha.
li três livros intensos (além de dois que nem por isso):
- Sinais de fogo (Jorge de Sena): prometido a mim própria desde que o descobri meu desconhecido na listagem dos "cinco romances portugueses dos últimos 30 anos" promovido há uns meses pelo A natureza do mal *. É um livro que nos prende pelo pescoço, duro (uma espécie de Fado Alexandrino - também muito referido na votação desses "5 mais" - dos anos 30) mas que se lê sem dó e com o mesmo embalo da escrita de "Noutros Lugares".
- Borges e os orangotangos eternos (Luís Fernando Veríssimo): um livro feliz descoberto num feliz acaso (D vou-to emprestar logo que H mo devolva, é uma escrita que me lembra de ti ao virar cada página).
- As duas águas do mar (Francisco José Viegas): um romance vestido de policial (a lembrar com saudade Manuel Vazquez Montálban) repleto de paisagens que revestem o meu imaginário, Finisterra, na Galiza, e a ilha de S. Miguel
*por lapso, na 1ª versão deste post, referi que a iniciativa havia sido do Da literatura, blog também muito activo na divulgação da mesma
Etiquetas: férias, Francisco José Viegas, Jorge de Sena, livros, Luís Fernando Veríssimo, Manuel Vásquez Montálban
Atraiçoada pela chuva a determinação
Os livros invadem-me as paredes de casa como o ar. Escondem o gretar da cal e as marcas do fumo. Envelhecem connosco e ocupam um território cada vez maior no espaço da casa. Vivem connosco. Vejo-os e saúdo-os todos os dias. Tem a intimidade de nos saberem à muitos anos, de nos conhecerem na dor e na alegria. Crescem tanto quanto nós.
Estão ordenados por autores e pela proximidade de temáticas. Tento não os ter em segunda linha, ponho por cima, afasto o pó, encosto uma fotografia de família.
Tem uma outra ordem invisível que se não se sustém nas prateleiras. A ordem da referência, a arqueologia do tempo colada na história da vida de cada um de nós.
Tomo, ensonada, café virada de frente para eles. Gosto de os revisitar com o olhar todos os dias. Mais raro, toca-los. Afecto nocturno. Pegar neles e redescobri-los. Gosto também do que encontro neles perdidos: bilhetes de concertos, anotações na margem, cartas...
Um destes dias, ao pegar num livro de Eduarda Dionísio, “Retrato de Um Amigo enquanto Falo”, propus-me a um exercício de verão: reler alguns dos livros ou autores que numa dada fase me seduziram. Reler a escrita, reler-me. Fazer uma reavaliação da lista de livros ou autores eternos.
Anoto todos de Eduarda Dionísio, Maria Gabriela Llansol, Clarice Lispector. Temo faze-lo com o “ Para Sempre” de Vergilío Ferreira. Faltam alguns mas estes seriam suficientes para o verão.
Gostava ainda de voltar a alguns do Júlio Dinis e uns quantos do Eça. Mais antigos na memória e na curiosidade.
Nesta determinação secreta, eis que hoje encontro um livro que não sei como cá chegou. Dizem-me que fui eu que o trouxe. Estava hoje, por acaso, no cimo da mesa de madeira. “ Rainha da América “de Nuria Amat – Prémio Cidade de Barcelona.
Espreitei-lhe a primeira página e gostei dele. Gostei como fala da chuva forte e ruidosa. Como isso me levou logo na enxurrada duma chuva que sinto quente. Decidi-me a ele.
“A chuva era mais forte que as palavras “
Depois digo-vos o resto desta chuva, o resto deste livro e o que aconteceu com esta traição a uma determinação assumida.
De cátedra
De cátedra
Hoje levei um banho de sapiência. De cátedra. Humildemente ouvi saberes sobre o património natural e arqueológico da serra de sicó, na imensa sabedoria dos Professores Jorge Paiva e Jorge Alarcão (merecem o professor por extenso).
Dos amores entre orquídeas ao chão escutado dos mosaicos, senti no avaliar do meu conhecimento o máximo limite do respirar de uma folha e o corpo curto de uma tessela. Mais que isto fica o desejo de saber mais. E ouvi-los sempre que o tempo me privilegie essa efémera possibilidade de os voltar a ter juntos.
Moinhos
Quando o vento se mostra forte ou a água corre encorpada, a máquina move-se. Tritura grãos, raízes e vidas inteiras, onde homens e mulheres, caiados a farinha como paredes, depositam o respirar.
Canta-se, conversa-se, aconchegam-se os corpos nos sacos de pano fino branco, enquanto a natureza exercita as suas forças mais capazes.
Há os de vento, de água e os educados para o movimento das marés.
Artes da Pérsia e de Roma.
E há a arte do pontapé de moinho, gesto de poucos pontas-de-lança, que quando dá golo, um vento de claque anima e água faz correr em certos olhares mais emotivos.
Dia nacional dos moinhos.
Muitas vezes, dentro deles, a alimentar conversa antiga, há pão fresco, queijo, vinho, uma medida de tabaco, mãos que entre as tarefas se dão.
Nessas noites, dentro deles, para que os corpos se acudam ao desejo nos sons do vento ou da água, faz sempre falta um moinho de café para que o momento seja mais duradouro. Dourar o ouro.
Senta-te aí. Vamos enrolar o tabaco e palavras na mortalha. Deixamos a rolar nos dedos. Colamos com a língua e fumamos, um cigarro e as palavras. Riscamos o fósforo na lixa e pegamos fogo na ponta da língua e do cigarro.
Senta-te aí... que palavras enrolas tu? verbos ou adjectivos? Ficas tu com os adjectivos para o teu cigarro ! Sabes muitos... eu fico com os verbos da 1ª conjugação. Enrolo tabaco com verbos como falar, calar, amar, pensar... misturo uns quantos “vagar”. Tenho a minha conversa feita e o cigarro para a suster.
Vamos falar devagar. Não podemos gastar o cigarro depressa que destes, não se cravam. Imagina a aleatoriedade resultante de ser possível cravar cigarros destes... eu a ter uma conversa de gajas e tu uma de bêbado. Poderia acontecer... mas antes tem que acontecer a conversa. Escolhida verbo a verbo na gramática do afecto.
E que tal riscar a mortalha? Cada um escolhe um poema ou letra de música para nela a escrever, desenhada, a letra negra.
Senta-te, vamos fumar um cigarro. Não sei se nesta conversa inalamos ou expiramos os verbos e os adjectivos.... é uma conversa reversível. Acontece de dentro para fora para depois passar de fora para dentro.
Senta-te. Vamos lá...
Encontros de fotografia de Coimbra
Andre Gelpke
Cheguei a Coimbra, em 80, quando os encontros começaram. Sonhava com uma Pentax K1000, focagem manual, muita vontade de registar memórias incontornáveis, pouca arte, muita vontade que satisfez.
Dos encontros não falhei nenhum. E aí estão no Centro de Artes Visuais outros mais. Vinte e seis anos de negativos.
Estes são, disseram, “mulheres fotografadas por mulheres, mulheres que se fotografam a si mesmas, mulheres fotografadas por homens, homens ou mulheres que fotografam homens que parecem mulheres e homens que se fotografam a si mesmos como mulheres."
'XX' é o nome da exposição. Não por estar em causa o século vinte, mas porque XX representa não só "o duplo cromossoma que marca o género, mas também a marca de um lugar, duplo e dúbio" - uma escolha natural para esta abordagem, enfim, a opção "mais simples e a menos metafórica das denominações".
XX Encontros de fotografia de Coimbra com esta gente. O duplo cromossoma da fotografia no feminino. Venham ver, pago um copo:
Ana Vieira, André Gelpke, Bernard Plossu, Bill Brandt, Carlos Vidal, Carmela García, Carolee Schneemann, Cecília Costa, Christian Vogt, Cindy Sherman, Cristina García Rodero, Dan Graham , Daniel Malhão , Debbie Fleming Caffery , Diana Blok , Edouard Boubat , Eadweard J. Muybridge , Horst P. Horst , Hannah Starkey , Helena Almeida , Inês Gonçalves , Jannie Regnerus , Jeff Wall , Jemima Stehli , Joana Pimentel , João Trabulo , Joel Peter Witkin , Johannes Backes , Jorge Martins , Jorge Molder , Julião Sarmento , Lee Friedlander , Lewis W. Hine , Malick Sidibé , Man Ray , Manuel Alvarez Bravo , Manuel Ismora , Maria Pia Oliveira , Marianna Viegas , Marianne Müller , Max Pam , Nan Goldin , Nobuyoshi Araki , Noé Sendas , Paul den Hollander , Paulo Nozolino , Pepe Diniz , Pierre Gonnord , Rineke Dijkstra , Rita Magalhães , Robert Frank , Rui Calcada Bastos , Sarah Jones , Thomas Ruff , Tracey Moffatt , Vanessa Beecroft , Vasco Araújo , Vitor Palla , Walker Evans , Weegee
Águas que fazem vida
As águas do rio são educadas. Rolam seixos, aclaram a terra na fronteira das margens e têm o objectivo da foz a caminho do mar.
As águas do mar são permeáveis e justas. Aceitam o corpo todo do rio e movem-se convictas, salgadas, na tabela das marés.
As águas da chuva são previsíveis. Molham se te queres molhar, disformam os vidros e os espelhos se não te queres ver.
Quando os teus olhos se inundam de outras águas – dizem lágrimas - não há objectivo, justiça ou previsibilidade: - acontece quando nos conhecemos!
Quando perdemos,
quando a vida nos entorna o olhar,
quando temos a certeza da razão que nos querem roubar!
Parabéns, Vasco
Hoje o Vasco G. faz anos. Deixo-lhe aqui os meus parabéns dedilhados na linha. Na mesma viola , que o lembra, pés para dentro e cigarro a pender na boca. Lembro assim o Vasco. Um homem que quis o mundo todo de uma vez e acabou, tardia e violentamente, a aprender a ver o mar com o vagar de quem demarca território na areia. O mar foi maior que ele...
Foi feroz esta luta que o mar teve com este homem que sempre teimou, e quase pareceu conseguir, em fazer as marés. Haja a felicidade de os saber compatibilizados, ou seja, quase enlaçados na vida.
O Vasco era, e é talvez ainda... , um homem muito carismático. Um homem que levava os outros como marés de setembro. Um apaixonante devasso. Um mentiroso lutador. Um homem acabou a ter que se fazer, pedra a pedra, numa nova casa para se caber. O Vasco é um homem especial.
Atravessa-me memórias, desde o tempo de Dornelas e uma carrinha de caixa aberta que nos levava tolhidos de frio pela estrada da serra, até o jeito magro e desengonçado de dançar. Mas sempre a viola, o dedilhar como quem ama ou chora, na guitarra . Pés para dentro, jeito reconhecidamente familiar, e cigarro na ponta da boca.
La Sierra Oeste de Madrid
Também Espanha, H. Das nossas doidisses à antiga. Arranquei esta madrugada com dois amigos de trabalho para uma reunião em San Martin de Valdeiglesias, Sierra Oeste de Madrid. Mil e tal kilómetros somados para lá e para cá como antigamente fazíamos Espanha por outras paixões e pouco dinheiro. O útil e o agradável.
Da reunião, objectivo cumprido. De Espanha o perfume de sempre.
Fuentes de Oñoro, Ciudad Rodrigo, Salamanca, Ávila. Depois la Sierra Oeste e o regresso.
Tempo para reter a monumentalidade e a vida de um país que gostaríamos de ser, os prazeres de uma tábua de presunto e queijo e vinho Rueda e paisagens nos olhos para recuperar em nova doidisse de antes.
Chego agora à linha. Estoirado. Dia feliz para repetir. Os amigos mais perto. Curiosamente, nomes da matrícula da viatura que em esforço nos transportou: RR - os meus dois Ruis.
Parque Natural de Monfrague
Deixei o mundo à minha espera e fui. Há sempre um lugar para nos escondermos do mundo e o ouvir.
Fui procurar o Tejo em terras de abutres e grifos. Nas escarpas do rio. Nas passadas das caminhadas. No silêncio da luz e dos ruídos. No voo das águias imperiais e das cegonhas negras. Parque Natural de Monfrague.
Dois dias mansos de caminhar junto ao Tejo. Primeiro no próprio parque. Levar binóculos, levar quem saiba de aves e fazer itinerários de mata mediterrânea. Caminhar na terra quieta tem um gosto único. Ouve-se o mundo como o mundo é.
Domingo voltar a terras de Portugal. Sempre rente ao Tejo. Salvaterra de Extremo e fazer novo percurso até ao rio. Sempre na vista o castelo de Penafiel no cimo da escarpa, hoje espanhol, outrora fortaleza nossa.
Levei as crianças e elas gostaram de saber as pistas e marcas dos caminhos, gostaram de aprender a espreitar no telescópio e saber das aves a cor das penas, os nomes baralhados, o fim do mundo. Viram veados. Torceram o pescoço ao céu entre as águias e os grifos. Molharam os pés na água fria e forte do Tejo quebrado. Apreendem o mundo no lugar onde o mundo começou.
Viemos na linha de água desaguar a Lisboa. Nunca mais olharão este rio da mesma maneira. Apreenderam a engrossar o caudal azul e alguma coisa na alma lhes ficou a aguar.
Maciço da boa escrita
Para o Daniel ( e novo livro)
Quis a volta da vida que um dia o tenha conhecido. Perdão, reconhecido.
Conhecido, foi quando o Daniel jornalista, depois cronista, me atravessou o percurso. Figura fina, esguia, com um humor educado na boa comédia do “non sense” e uma arte de escrita próxima da excelência – a figura fina.
Depois juntaram-se conversas de fim de tarde, um bom copo, a degustação do passado (Coimbra, Gândara, Sicó).
Reconhecido, foi quando o Daniel futebolista me trouxe o recorte de termos sido jogadores de uma mesma equipa – selecção de iniciados – e termos sido adversários leais naqueles anos de sucessivos campeonatos de Inverno do distrital de Coimbra – a figura esguia.
Tem novo livro escrito. Dribla melhor as palavras que os defesas esquerdos, cabeceia melhor as ideias que as bolas ao segundo poste, domina mais facilmente a ironia que o esférico caído do alto dos céus a chuto aflito de alívio.
É um prazer tê-lo como amigo. É um privilégio lê-lo enquanto escritor.
No
blogue ou nos livros, aconselho que o acompanhem. Não tanto na vida, mas no raciocínio mordaz.
CHUVA
A chuva, como uma vasta mas fina senhora líquida, desce a visitar-nos.
Desfiada por anjos, tudo toma.
O mundo, que é sempre de baixo, recebe o pó de água como uma bênção de incontáveis dedos.
Somos tocados em pura graça por essa mão sem número.
Espelhos formam-se pelo chão.
Neles nos revejamos: reflexos de anjos, por um instante, seremos.
Abrunheiro, Daniel, Gente do touro de ouro
Feitiço da "Villa" (estação arqueológica)
O arqueólogo chegou à estação vindo da linha do norte. Montou tenda, abriu a mochila, deitou o saco-cama debaixo da oliveira, passou o pincel na areia.
O mosaico revelou-se. Lavou-o de seguida com água fresca, sob um sol de primeiro Abril e as tesselas ganharam as cores do fogo e da paisagem.
Lá estava a imagem que nunca ninguém viu:
- três números 1, dispostos nesta fórmula – 1:1:1.
O primeiro, um minuto, marcando o tempo num relógio de sol pintado num mapa de estrelas;
O segundo, um metro quadrado, limitando o espaço num arranjo floral de outras estações na linha do mundo (Primavera duas orquídeas do monte, Verão duas espigas, Outono dois cachos de uvas, Inverno uma alcachofra e uma pequena árvore);
O terceiro, um Megabyte, registando toda a memória que ficou da “villa” (um rosto, um beijo, um percurso de viagem, um maço de cartas, os acordes de uma música).
Tempo. Espaço. Memória.
Ao pôr-do-sol, o arqueólogo tapou o mosaico de areia. O nosso tempo voltou. O feitiço acabou. O espaço fez-se cidade e a memória arquivou-se no filelodge em jpg. gif. mpg. avi. wmv. doc. pdf. mp3… fica ao teu critério.
Para voltar ao momento, verdadeiro momento, disse-me o arqueólogo:
- D, deixa o portátil, escolhe com H e M um dia de sol em Abril, bebam um copo e tragam um pincel! O feitiço da “villa” abrir-se-á para a linha!
três
somos este número mágico
Etiquetas: linha do norte
Lei da paridade
Também sinto a lei da paridade.
Na linha represento a agora mediática quota dos 33,3%.
O material circulante feminino, H e M, acumulam quota de 66,6%. Será esta a paridade dos comboios, ou ando nesta percentagem por mérito?
Elas o dirão!
Para tentar perceber usei a numerologia e fui parar à Bíblia, Jeremias, capítulo 33, versículo 3.
E sei também que o 0,1% que resta ainda é uma “little golden-share”da CP.