quinta-feira, abril 13, 2006

Confissão


Tempo da visitação. Entro na igreja que escolhi ao acaso por falta de serviço na loja do cidadão. Há uma luz celestial vinda do vitral dos anjos plasmados no vidro. Ouve-se música de cravo. Dirijo-me ao padre que não vejo, escondido do mundo no mobiliário de castanho. Faço o sinal da cruz.
Digo: - em nome do espírito santo.
Padre: - Vamo-nos colocar na presença do Pai. Que Ele lhe dê a alegria e a coragem de uma vida nova.
Digo: - Padre, pequei contra Deus e contra os irmãos. Estou arrependido e peço perdão. Andava no meu juizinho todo, mas dos novos pecados anunciados nada consegui controlar. Sim, leio jornais, navego na Internet, vejo TV e, pasme-se, - pasmo-me! -, comemorei hoje com amigos os 100 anos de nascimento de Samuel Beckett, esse homem do absurdo, nada temente a Deus nosso Senhor e motivo-me com Eça, Guerra Junqueiro e Torga. (Rezo de seguida, por eles, quatro vezes o Acto de Contrição).
Padre (rezando também com a mão estendida): - Deus, Pai de misericórdia, a ressurreição de seu Filho reconciliou o mundo consigo, enviando o pedido para a remissão dos pecados, pelo que lhe concederá, pelo ministério da Igreja, o perdão, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Que o Deus nosso Senhor o acompanhe.
Digo: - É só isso o que tem a dizer? Nem um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria de penitência? (Era o que ainda sabia dos acordes de infância!).
Padre: - Vai ao site do Santuário de Fátima e encomenda um e-perdão. Esquece a penitência Internet. Eles que te recomendem à reparação da alma. Tenho mais que fazer. Sabes que agora nos novos pecados também temos que apresentar a declaração do IRS? O Ministério da Igreja passou a cruzar os dados com o Ministério das Finanças. Estamos lixados!
Digo: - Que ao menos o Ministério das Finanças esteja consigo. Ele está nos bolsos de nós.
(Saio da igreja e lavo as mãos na pia de água benta).
Disponível também em garrafinhas individuais, 0,33 cl, com rótulo ecuménico, à saída da sacristia, entende-se o esforço para a receita.
Leio o rótulo. Engarrafada pelo consórcio Bento XVI. Águas destiladas. Brindes “crucifixos JNRJ”. Bênção de óleos. Excursões ao Vaticano. Cerimónias de lava-pés. Exorcismos. Atestados de castidade e celibato. Lugar central na procissão de bêbedos do Redondo. Desculpas infalíveis para faltas de deputados. Garantias electivas Berlusconi. Homilias para divórcios. Recuperação de dívidas.
Tudo a 5 euros.
Digo: - compro o quê, mãe?

3 Comments:

At 11:05 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

desculpa lá D, mas aqui tinhas de ter metido os GNR e a sua video Maria

 
At 11:11 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

o que ouvi nas notícias é que ler e navegar na net passavam a ser pecado se no meio disso não se arranjasse tempo para a bília. e não é que tinha estado a reler, apenas umas horas antes, M Duras no seu "o jardim", que conta uma história à volta d'O Livro, a bíblia, percebendo-se - com pasmo para mim da primeira vez - como esse pode ser um livro muito belo.

"Tudo é vaidade. Vaidade das vaidades. E procurar o vento."

 
At 11:05 da tarde, Blogger David (em Coimbra B) said...

Tens razão nos GNR. Põe tu agora música. Sempre considerei A Bíblia um livro surpreendente. As interpretações institucionais da Igreja é que motivam a ironia e algumas vezes o sarcasmo.

 

Enviar um comentário

<< Home

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!