domingo, abril 16, 2006

pretérito quase perfeito


"(...) Não se contam os adeuses nem as solidões, ou as partidas, que foram desaguar, como afluentes da nossa adolescência, ao mar manso e morto da música de Leonard Cohen. Aí ganhavam algum sossego, alguma companhia. Não compreendíamos as palavras, não conhecíamos os sítios, mas, à mesma, mergulhávamos nessas águas paradas de tanto correr, mornas à passagem dos nossos corpos doridos, cintilantes sob o hálito luminoso da lua. Na música de Leonard Cohen encontrávamos, pois, os nossos barcos.

Esses barcos não rumavam a lugar algum; nunca os conseguimos desatracar das nossas imaginações. Imaginações como cartas de navegação: Calcutá, Macau, Ceuta, Liverpool, Lisboa. Imaginações como viagens: vapor, mulheres de negro, absinto, contrabandistas, porões. Os nossos barcos aportavam apenas ao silêncio, ao silêncio de um sonho.

Ao silêncio de um sonho íamos amando. Eram tão largas as paixões em que caíamos! Caíamos indefesos e atordoados mas, mesmo assim, nunca desejamos escarpar-lhes. Em vez dos lábios duma mulher, em vez dos braços duma menina, beijávamos o espelho da casa de banho, abraçávamo-nos às almofadas da cama. E em vez de palavras como 'amo-te, amo-te' sussurradas aos ouvidos, ouvíamos as cantigas de Leonard Cohen. (...)"


(excerto de um texto de Miguel Esteves Cardoso intitulado "Leonard Cohen, o homem que trabalha o tempo", divulgado numa emissão do programa de rádio "Pretérito Quase Perfeito" dedicada a LC e emitida em Janeiro de 1982)

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2 Comments:

At 12:42 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

E eu é que sou mau... tinha no "my files", preparadinho, um Cohen lá para quarta-feira com texto quase em draft. A vingança será terrível!

 
At 1:30 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

pois considera isto uma provocação. como se fora cantar (postar) ao desafio. "hei-de deixar Vale de Gouvinhas Marião..."

 

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