Procura aqui a Bahn TV. Carrega sobre a esquerda no «live». Carrega à direita o Windows Media Player. Carrega depois na imagem e enche o écran de prazer. É um vício certo para quem gosta de comboios. Parece-me ser uma TV associada aos caminhos-de-ferro alemães e é um gozo do caraças. No cabo de Coimbra B não tenho acesso e só a espreito por computador. Na Gândara, por satélite, assisto em cheio no Astra, viajando sentado no sofá, a chuva lá fora, uma fogueira acesa. Experimenta. Escolhe música, enche um copo, acende uma cigarrilha e conhece a Alemanha a duas linhas.
Quando os institutos de turismo de Portugal e a CP tiverem esta ousadia, teremos um país quase perfeito.
o filho do JPN é um visionário: com meia dúzia de anos já sabe o que eu acabo de descobrir: que os pais um dia começam a mingar e se tornam mais pequenos que os filhos. é mais ou menos quando começam, os pais, a ficar velhos e (na opinião dos filhos) irresponsáveis. há um tom que tendemos a adoptar quando falamos com os nossos velhos, uma espécie de agora-vou-ser-eu-a-tratar-das-coisas, que se me tem tornado nítido e que, suspeito, deve corresponder, mais coisa menos coisa, ao tom que nós usamos quando eles são pequenos (e nós ainda não).
na terça-feira passada segui tranquila para a festa de aniversário (surpresa) da G, sabendo que podia mais tarde ver o episódio do retrato social do António Barreto aqui (indicação preciosa do J.). guardei-o para o degustar hoje ao pequeno-almoço (café escuro, torrada de manteiga e sumo de laranja).
mais uma vez me comovi até às minhas raízes: até zonas de mim que desconhecia. as imagens dos homens (tão novos) que partiam para a guerra; as histórias das mulheres que a nada tinham direito e, no entanto, sustinham o todo da vida familiar; o enunciar daquilo que, concretamente, lhes era vedado (perceber melhor as histórias de mulheres que ouço no consultório). um incómodo brutal por ter sido sujeita a isto (mesmo sendo criança) e por ter sido tão feliz enquanto assim viviam a minha mãe, as minhas avós, o meu tio que esteve na guerra, e tantos outros que sobreviveram a essa realidade que se me afigura insuportável.
comoção repetida, a que me vem habituando este documentário e que tem produzido o efeito inquietante de aumentar a minha tolerância às imperfeições e às eternas limitações do meu país e do seu povo.
no jornal Público de sexta-feira passada, um jornalista e um cantor português detêm-se a analisar o poema da mais famosa canção de Jacques Brel (que o último anda a interpretar). tudo bem, não fora nenhum dos dois saber francês e ninguém no jornal se ter dado conta disso. vem tudo explicado na página do provedor do leitor publicada hoje: o desespero de amor que é querer ser o ombro do cão do outro (em lugar da sombra, "l'ombre").
é por estas e por outras que os jornais cada vez me dizem menos. tenho-os comprado mais nos últimos tempos, mais precisamente o Público (por causa da colecção de CD "50 anos de música") e cada vez tenho mais a sensação de que a irrelevância se avoluma e a imprecisão grassa: detecto-as fatalmente sempre que leio uma notícia de áreas que domino, como a saúde. tudo somado, não compensa o dinheiro gasto, o stress de o ler já que o comprei e, por fim, a maçada de transportar tanto papel para o ecoponto. tanto mais que a blogosfera oferece actualmente uma alternativa imensamente mais rica, mais ajustável (a la carte) e grátis.
fiquemos com Jacques Brel, para redenção de tanta barbaridade.
Há certas noites em que regresso tanto ao passado que demoro sete quartos crescentes ao voltar ao riso presente. Ao gelo e a água. Ao cacho e o vinho. Ao carvão e o diamante. À memória e à noite que alimento às vezes como se fora um filho e por isso se cumpre.
quarta-feira, abril 25, 2007
Sabores de Sicó
O calendário do trabalho que cumpro com prazer não me deixou ponteiros para o pequeno-almoço no Astória desejado. Seria mais boa conversa que sabores, mas havia destino traçado. Fiz, neste 25, parte de um júri para avaliação de um doce de Sicó, a promover, a colocar futuramente nos vossos lábios uma dependência desejada.
E que pequeno-almoço. Duas boas dezenas de doces para provar, um branco seco para corrigir com acidez o paladar e ficha técnica para pontuar sabores, tenderam a manhã para uma festa de prazeres.
Ganhou um doce de chícharo com nozes, mel, açúcar e ovos, tudo bem fatigado no forno à temperatura da Primavera. Disse ao autor que se fosse eu o mandador, o borrifaria à saída do forno com jeropiga ou aguardente de medronho, corrigindo a doçaria.
Ficou a sugestão. Breve, muito breve, poderemos prová-lo depois de uma boa-noite em Coimbra B.
com um filho (ainda*) em cada lado do ensino (um no público e um no privado), constato que é no privado que o 25 de abril é assinalado, dedicando-se-lhe a véspera, contando-se a sua história e dando sentido às comemorações. do outro lado, no público, o dia 24 é um dia igual aos outros acrescido, suponho, da felicidade de se lhe seguir mais um feriado, uma folga, um dia sem alunos na escola.
*rendidos que estamos a todas as desilusões que sofremos ao longo de 3 anos, para o ano teremos os dois no privado
Não me atrevo a dizer que é chover. Direi antes que estas miudinhas águas que me chegam à janela são uma dádiva do céu, húmida liberdade como quando me olhas nos olhos, para que os cravos amanhã possam alimentar as suas raízes nas lapelas por mais tempo.
segunda-feira, abril 23, 2007
vivam eles
os livros, no seu dia mundial
por acaso acho bem, que haja este dia
fui à fnac - também por acaso - e até me ofereceram um livro
Foi preciso tempo e depois disponibilidade mental para me lançar de rajada à leitura do DOM QUIXOTE DE LA MANCHA. Ando nesse frenesim de Cervantes. Tinha lido partes, mas nunca o todo pelo todo. Leio a cavalo. Às vezes de burro.
A frase iniciática «Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me…», anuncia tudo, equilibrando-se nas cartas dos desafios onde, segundo ele, em muitas partes achava escrito: «A razão da desrazão que minha razão se faz, de tal maneira minha razão enfraquece, que com razão me queixo de vossa formosura», talvez já matutando em Dulcinea del Toboso.
Ando espantado como o Rocinante e num parágrafo já tropecei num moinho.
hoje dei comigo a pregar esta coisa atroz aos meus filhos: "ninguém dá nada a ninguém", para logo a seguir me tentar redimir como podia, argumentando que, claro, os amigos e a família nos davam muitas coisas*, e que, aliás, as melhores coisas da vida eram de borla e, antes que me enterrasse mais, a minha filha conclui: "tu és de borla".
*o que mais tarde tive de completar, com um sermão sobre o voluntariado e os donativos anónimos
ao ler a biografia de Alexandre O'Neill encontrei muitas semelhanças nas tiradas dele e nas da minha filha de seis anos que é uma apaixonada da retórica e solta gargalhadas de prazer ao brincar com as palavras. tenho a certeza de que, se fossem contemporâneos, se entenderiam às mil maravilhas, ela e o O'Neill e ela emprestava-lhe, com certeza, este seu vocábulo mirabolante de tão lógico: dezacinco.
ESPADAS. O analista clínico disse-lhe que tinha álcool a mais nas veias, coisas de análise desses laboratórios que, segundo ele, só lhe traziam más notícias e recibos para pagar, dando sangue por uma sande a quem dele precisar. Não podia renovar a carta de condução. Fez um mês sabático. Comportou-se. Muita água, meio-sal, caminhadas depois de jantar, carta no bolso para novas viagens.
COPAS. A dama de copas era um acerto do calendário. Nem era o gregoriano nem as fintas da lua nos seus quartos perversos. Era o calendário anual da Sra. da Estrela onde a dama gingava o corpo apetitoso, servindo leitão com batatinhas do forno, olhos demasiado altivos onde apenas chegava na ara dos desejos.
PAUS. Metia lenha na fogueira. Afinfava trunfos à barda. Cada vez que se interrogava, porque era ainda amanuense com curso tirado superior, dizia que a culpa era da dama de copas que o não via e do analista clínico que lhe media o vinho nas veias.
OUROS. Fez uma promessa. Todo o ouro que teria seria oferecido ao analista clínico e à dama de copas. O analista detectaria ouro nas veias. A dama de copas esmerar-se-ia a limar o dedo para o anel que dimensionou nos sonhos.
Podia ser um robalo, mas asseguro-vos que era um homem com pele ao sal. Marnoto de marinha, lágrimas doces de água da ria da vida por dama de copas desejada. Ao sal, «suor do sol amando a água».
começou por ser um livro difícil e só avancei porque se me haviam esgotado as alternativas. mas, a certa altura, começou a prender-me e, aquela história que parecia descabida, profundamante bizarra e de mau gosto, começou a sugerir um dejá vu que só passado algum tempo percebi de onde vinha: a cena central do livro (a vida dos cegos proscritos) assemelha-se muito às descritas nos livros de quem viveu o holocausto por dentro ("Se isto é um homem", de Primo Levi, ou "Sem destino" do Nobel Imre Kertész). uma natureza abjecta, inumana mas, de todo, não ficcional, que emerge dos homens em situações limite.
ainda jaz no fundo das malas este livro que deixei a meio quando se me acabaram as férias. mas não resisti e já fui ler o fim. depois do horror, os cegos recuperam a visão e concluem (com a habitual percepção penetrante das personagens de Saramago): "Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".
habitualmente relutante em aderir a estas promoções, decidi experimentar esta colecção de CD "50 anos de música" que o Público tem vindo a divulgar. um após o outro fui comprando todos e agora sei que não perderei nenhum.
está lá tudo, desde os sons da infância, anteriores ao prazer de ouvir música, passando pela euforia do rock português que vivi com 13 anos, depois pela música popular portuguesa que descobri (e cantei e toquei) nos campos de férias, pelas bandas a que fiquei fiel quando me tornei mais ou menos adulta, tudo, acabando nos sons novos que fui apenas entreouvindo na azáfama dos últimos anos, com a sensação de que algo me estava a escapar.
estão lá os primeiros concertos (o meu primeiro, no ano de 1979, em Almada: UHF), a descoberta de que as letras de música portuguesa podiam ser tão ou mais belas que as inglesas (Carlos Tê, Rui Reininho), o som das noites longas dos 20 anos, as bandas heterogéneas que trazíamos às noites da queima no Porto, pérolas clássicas (a Pedra Filosofal e a guitarra do Carlos Paredes), temas que me fascinaram em tempos e nunca mais tinha ouvido, canções que nunca tinha escutado, versões diferentes de outras que já conhecia bem e até João Villaret a dizer o Cântico Negro.
são 50 anos que cabem inteiros nos meus 40 e devolvem-me hoje sensações, cheiros, histórias e gente que conheci. são CD híbridos, recônditos às vezes, fascinantes quase todos, cristalinos. e é como se neles conseguisse reconhecer cada ano da minha vida.
Amanhã à noite, sexta-feira, pelas 23 horas. É no Massas Café-Concerto, Zona Industrial da Pedrulha, armazém 8, que se apresenta o livro «Licor, sabão e sapatos», referenciado no post NÃO HÁ BOCAS. O Daniel convida via linha. Aqui fica na gare de Abril a proposta.
este foi O livro das férias (trazido de Stª Apolónia pela H, in extremis, quando já se escoavam as páginas que levara de Campanhã), devorado de um fôlego só, a sentir a falta de ter ao lado as Obras Completas para ir conferindo, poema a poema. fiquei fascinada com o personagem, de quem nada sabia para além de alguma escrita. mas é como se já tivesse conhecido homens assim: eternos garotos, visionários, siderais, exteriores a este mundo, tão dependentes dos outros que o seu egoísmo gigantesco se transfigura em altruísmo.
fiquei arrepiada ao perceber que a primeira vez que li O'Neill ele ainda era vivo (foi pela mão do Paulo Filipe Gouveia Monteiro que, na Aldeia das Dez, ajudava um bando de adolescentes a saber o que dizia ao dizer "tropeço de ternura por ti").
- uma semana depois de retomar o trabalho, estas malas ainda meias por desfazer, o tempo literalmente devorado pelo dia-a-dia -
Nunca estacionei politicamente pela direita e tenho dúvidas do parquímetro do centro-direita que pede moeda para tempo curto, consoante as necessidades da geometria política e institucional. Vi hoje, na RTP, como um prolongamento do sofrimento que me dá o meu Sporting, o debate Ribeiro e Castro versus Portas.
CDS. PP. CDS-PP. CDS. Alguém que me diga o que isto tem vindo a querer dizer.
Ribeiro e Castro pareceu-me um homem sério, daqueles, como se diz, a quem comprarias um carro em segunda mão. Portas, inteligente que baste, perde-se no riso trocista, no salamaleque, sombreando os olhos em atitude de penitência quase religiosa quando pressente que as câmaras o focam num zoom decisivo.
Não me interessa esta guerra e para ela nada dou.
Com estas e com outras, o engenheiro Sócrates vai aplicando o seu teorema da elasticidade linear, mecânico da civilidade.
Mas registei o «tronco» que me parece ser Ribeiro e Castro e o «pica-pau» que me pareceu ver em Portas. Por ele, de resto, o seu nariz crescente como Pinóquio, também ajuda.
uma história bem portuguesa, incrível, estonteante, cruel e, até agora, bem guardada. mas, além do romance que conta, a escrita de Pedro Almeida Vieira não fez muita história dentro de mim.
um clássico que me faltava e que perseguia desde que há tempos li o fantástico "A Tempestade" (Juan Manuel de Prada), que me levou aos canais e à humidade lacustre de Veneza. doentio qb. fatal.
ia ser muito difícil de explicar todas as irregularidades ocorridas durante a minha licenciatura. e eu nunca pedi favores a ninguém. e era uma universidade pública. com nome. mas portuguesa, no seu pior.
às vezes também acho que a dança se esqueceu de mim, zangada por eu me ter esquecido dela. outras vezes basta ouvir a música certa para saber que não é assim. ela vem, olhos nos olhos, estende-me a mão e dá-me as boa-vindas (ao meu passado).
Lá fui com os Ruis, todos convidados para a matança previsível da provocação. «Não há bocas», é a password do Daniel para pôr cada um no seu devido lugar. Quando de casca crustácea, digo, fato herdado por direito consuetudinário, que lhe dá o direito de é meu e coleccionador de finos ao balcão, (onde acredito arredonda as palavras mais audazes!), acrescenta alto e bom som aos amigos que chegam: «escondam as carteiras». E sempre que um amigo se aproxima com opinião, afirma vernáculo «o que é que o mundo gay tem a ver com isto?», fuzilando o transeunte com a mesma dimensão de «não há bocas!», quando delas gosta e por elas vive com convicção, dando depois beijos gay aos mais aconchegados, forçando-os com as mãos de amigo para o peito.
Lançou hoje mais um livro onde tive o prazer de estar e dele ser pertença. LICOR, SABÃO E SAPATOS.
Lembrou-me, no absurdo de pessoas geometricamente diferentes, mas porque o receituário do título convida, o livro do amigo Cabrita, « CLIPS, PUNAISES & ZIPS».
Autógrafo: «Pouca terra, muita terra, Ala-Arriba - 0 União de Coimbra - também»
Coisas das nossas guerras do futebol, mas sapiência que leio num jogo de palavras, uma outra dimensão de sermos felizes com o pouco que temos e o prazer de o divulgarmos. Empate, também.
Estranho para quem não o conhece, não nos conhece, foi o acto ter acontecido numa pizzaria do amigo Aniano, o local menos improvável para quem provavelmente alimentaria outros sítios para a tradução das palavras escritas.
(Museu, capela ortodoxa, adega de cascas de tremoços com bons arrotos e chão cuspido, salão nobre de um município apenas para provocar).
O Aniano esmerou-se. Criou uma massa fina cortada aos quadrados (pequenos poemas de amor aos sabores!) com tomilho, alho e por cima fios de azeite coados pela mãe na exacta medida que exigiram mais rigor do que os parágrafos do livro, tal o desprendimento e a dedicação, juntando-lhe vinho branco SICÓ e uma intenção de vinho rosé para acreditação das madames em rótulos de ocasião.
«Peguem no missal», parece que disse o Daniel como padre de missa assegurada. Não peguei. Ouvi-o apenas a ler as entranhas do coração (Ouvi-lhe o coração!)
Não foi esta a cartilha que aqui deixo, mas está no livro que vos deixo:
«Das narrativas que me passou, não conservo senão a atmosfera escura dos homens (quase sempre ou operários ou homens de génio), a tristeza palpável das florestas com seus caminhos de criança, o carácter inapelável da chuva e um vago terror pela morte que não pude ainda confirmar pessoalmente.»
As “Imagens & Letras” do amigo Fernando Mendes, que apostou nisto, merece a mesma música para o Daniel. Da nossa velhinha play-list!
sábado, abril 14, 2007
desfazer as malas II
faltava-me este Tabucchi no repertório e ainda bem que resolvi colmatar a falha. já nem me lembrava bem do que é que me fascinava na escrita deste italiano que se apaixonou por Portugal, me ajudou a apaixonar-me pelos Açores e escreveu o conto da minha vida: "anywhere out of the world".
(fiquei com vontade de ver o filme, com Marcello Mastroiani interpretando o jornalista Pereira)
"eu imagino assim a morte de pavese: era um quarto de hotel em turim, decerto um hotel modesto, de uma ou duas estrelas, se é que havia estrelas.
uma cama de pau, de verniz estalado, rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido com a cova do meio, a do costume. corria o mês de agosto com a sua terra escura
encardindo as cortinas. nada ia explodir naquele mês de agosto àquela hora da tarde de luz adocicada. e alguém pusera três rosas de plástico num solitário verde.
vejo como pavese entrou, como pousou a maleta com indiferença, dobrou alguns papéis e despiu o casaco (como nos filmes italianos da época). depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado que esta vida é uma mijadela ou que. voltou ao quarto, havia uma fétida alma em tudo aquilo.
ele abriu a janela e pediu a chamada telefónica. a noite ia caindo sem palavras, mesmo sem businas excessivas. encheu um copo de água. e esperou.
quando a campainha tocou, havia muito pouco a dizer e ele já o tinha dito: já tinha dito quanto amar nos torna vulneráveis; e míseros, inermes;
que é preciso humildade, não orgulho; e parar de escrever; e que dessa nudez é que morremos. foi mais ou menos isto - a nossa condição
demasiado humana, a voz humana, a frágil expressão disso tudo, uma firmeza tensa: "e até rapariguinhas o fizeram", tinham nomes obscuros e nenhum
remorso lancinante, ninguém para falar delas. a mais temida coisa é a coragem do que parecia fácil; tudo o que não se disse carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir pôs do lado de fora um letreiro com do not disturb ou coisa assim, nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.
não sei se o encontrou uma criada, se a polícia veio logo, se deixou uma carta ao seu melhor amigo, se apagou a luz, nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte como quem traz imagens pungentes na cabeça, palavras marteladas do desejo, ou como quem friamente está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.
não sei se foi assim, se existe uma outra verdade inimaginável ou vedada. sei que ele tinha um olhar decidido, alguma instigadora e quarenta e dois anos. e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte. já vem nas escrituras. eu prefiro dizer que ele fechou a porta à chave e sei que era viril a sua transparência."
andava desde 1986 para ler um livro de Cesare Pavese, por causa de um poema de Vasco Graça Moura que li vezes sem conta (chamado "ofício de morrer" e que começava: "eu imagino assim a morte de pavese"). mas nunca imaginaria que alguém que se suicidou, mais ou menos com a minha idade, poderia escrever de forma tão luminosa.
agora não vou conseguir descansar enquanto não lhe ler o resto (começando talvez por "Ofício de Viver", publicação póstuma dos seus diários).
quinze dias sem computador, sem blogs e sem e-mail. quinze dias sem despertador, sem correrias, sem metro, sem estender roupa, sem profissão, sem insónias, sem horas, sem ter que. quinze dias de livros, de sol, cerveja, azeitonas e pão alentejano, de sono espesso, de pele na pele, de amigos, de crianças a correr
e as suas bolas amarelas a virem devagar tocar-nos nos pés (como dizia Molero, a páginas tantas).
Mesmo que nada te mova nessa petrificação tão tua como uma vida só semelhante à dos gatos onde deixas crescer as unhas (na sonolência à espera por egoísmos de umbigo)
vem ao bar da beira-gare onde assobiam os comboios e abeira-me um sustenido: - meio tom acima de música e palavras que guardavas para ouvirmos no meu ouvido.
mulher no espelho - mulheres de botero
Lavar corpo para aguar a alma. Por creme para amaciar na pele a vida àspera. Escovar devagar os cabelos e deixá-los secar ao ar para que, de revolto, fique a cabeleira farta já que a postura é submissa. Ousadia suprema: enganar a verdade em frente ao espelho.
L. trocou a ordem ao mundo. Não saiu pela manhã ainda noite para esfregar escadas no prédio das finanças, antes de tomar o lugar de alinhava bainha na loja da Dona C. e sair depois, a correr, para fazer umas horinhas de limpeza no prédio do Doutor. O corpo chega usado a casa, o jantar não está feito e na caixa de correio, carta de amor não espera. Liga telefonia para enganar a casa que habita o silêncio. Roubaram-lhe horas e já não consegue ler livros de amor depois de cozinha arrumada e paninhos estendidos. Olha de soslaio o pó dos móveis e dá de frente com o olhar entristecido dos pais em retrato sépia. Ela, prometida ao alferes, levou coça da vida quando ele se ficou lá pelas savanas a cumprir amor de mestiça depois de serviço obrigatório. Ela chorou a alma, amaldiçoou o fado e partiu para a cidade para servir em casa farta. Fez-se mulher no filho do patrão e foi para a escola para apreender a escrever soneto. Mas o amor, coisa vadia, nunca se juntou de vez a ela. Assim quis o destino e L, calada, aceitou.
L. trocou a ordem ao mundo porque relógio não tocou. Acordou súbito com sentimento de ter sono a mais na cama e lá se fora a hora das escadas nas finanças... alinhavou na ideia a ousadia. “ E se hoje não desse cavaco ao mundo... “ deixar bainha por fazer, evaporar água da limpeza e deixar-se estar. Roliça e quente nos lençóis amarrotados de um dos lado da cama de casal. Ousadia máxima: não partir para a vida. Deixar-se ser senhora das horas.
Lavar corpo para aguar a alma. Por creme para amaciar na pele a vida áspera. Escovar devagar os cabelos e deixa-los secar ao ar para que, de revolto, fique a cabeleira farta já que a postura é submissa. Deixar perfuminho de rosa na dobra do pescoço, esticar meia de vidro preta e por vestido de festa. Sentir-se mulher de coronel já que de alferes o destino não deixou.
Abriu as janelas todas de casa para deixar ar fresco entrar. Mudou o posto na telefonia e escolheu música dolente e romântica. Puxou cadeira da sala e sentou-se, no quarto, em frente ao espelho e finalmente... conversou com a vida.
Um amigo, pedreiro, excelente na sua profissão, para adaptar a sua pequena empresa familiar às novas regras socráticas e bolonhesas, inscreveu-se num curso às terças e quintas para a certificação das suas competências, melhorando a sua escolaridade.
Uma das provas em jogo era aprender informaticamente a trabalhar com o Word para apresentação de orçamentos.
Comprou portátil, treinou, treinou e apresentou-se à prova final.
«Pedia-se que apresentasse o texto “justificado”, à esquerda e à direita e o Sr. apresentou-o todo encostado à esquerda. Chumbou, temos pena!» - disse o orientador do curso de certificação.
«Peço perdão a V. Exa., mas garanto-lhe que antes de vir para o exame encostei o meu fio-de-prumo ao ecrã do portátil e as linhas estavam todas bem niveladas nos intervalos certos. O quê? Tinha o texto todo encostado à esquerda? Foda-se Henrique, queres ver que me esqueci de usar o nível?»
Aceita as cores que se fixam na tua face como dádiva de um Deus. Andas bonita. Cheiras à Primavera de Praga, onde todos os edifícios mais tarde ganharam luz e outra vez o angular independente das arestas.
Aceita que andas apenas bonita pelo tempo que faz. Não te vistas em demasia. Deixa que o batom não te realce a boca e calça os saltos altos apenas para certas festas. Deixa cair todo o oiro herdado dos teus dedos, tornando-o disponível para o fundir num único anel onde se enroscarão os limites dos segredos.
Aceita que corres apenas a favor do vento. Chegas mais depressa. Abre os braços. Vês a sombra que já me fazes, ou sou só eu perfumado na imensa cegueira dos meus olhos?
sexta-feira, abril 06, 2007
Promessa de Páscoa
Porque te prometi que levaria uma palma adornada de flores (cada flor um beijo por ti prometido) à missa da igreja dos Navegantes, subi à palmeira, cortei palma, atei-lhe sete flores de papel e pedi ao senhor prior para a encostar o mais próximo do altar, a adejar o nosso senhor jesus cristo. O senhor prior, aproveitando a promessa na homilia, vendeu-a pela palma, flor a flor, entre os devotos, receita para as obras da igreja. Renderam 30 dinheiros. Perdi-te a ti, Maria Madalena e o sabor dos teus desejados beijos.
Mas cá para nós, amiga, gostava de saber o que o sacristão, Judas, fez com esses dinheiros.
Pela Páscoa em Coimbra B e, presumo, em Sta Apolónia e Campanhã, a língua oficial é o Portuñol. O mesmo se passará em Salamanca, Vigo, Valladolid e Zamora, sobretudo nos mercados do alojamento, restauração, bares e comércio tradicional.
Há definitivamente uma nova língua no ar, mais falada que escrita, se bem que já há programas de conversão como o “Python”. No mundo ibérico corremos o risco de nos perdermos pela fronteira, hoje apenas detectada quando o GPS anuncia que mudámos de margem e, perdendo também segurança linguística pelo castelhano forte, adiantamos com elegância o nosso Portuñol.
No Brasil é ao contrário. Comemora-se a cada 13 de Outubro o dia internacional de hablarse portuñol, tal é a força aí do português açucarado sobre as fronteiras castelhanas. Nessa América Latina o portuñol tem mandador português.
Uma outra nova linguagem que passa é o internetês, mais escrita que falada. Na net e nos telemóveis há novos vocábulos, abreviaturas, siglas & acrónimos, códigos dos países… «Donde teclas?», baralhando as Academias das Letras e a sua ortodoxia.
Entendamo-nos! É o que todos queremos. Acredito que o portuñol tem origem na prática do velho verbo «desenrascar» da idiossincrasia portuguesa. Acredito que o intermetês é a resposta à prática dos dedos nos teclados e aos ouvidos entupidos por mp3 e ipod’s das novas gerações. E, com tudo isto, Ludwik Lejzer Zamenhof, criador do Esperanto, abriria a boca de espanto a um futuro tratado linguístico de Tordesilhas.
Mas há uma coisa a que resisto. Ouvir a Teresa Salgueiro dos Madredeus cantar “abrasileirado” no seu recente álbum «Você e Eu» é uma aflição. Não me soa bem. A música tem raízes mais profundas que o som das palavras. Mas estas, cantadas no seu instrumento – a língua! – têm identidade sem falsete. Usando um velho título de um programa que tive numa rádio pirata, digo: o som a seu dono! Deixo-vos o menos mau da Teresa para que me contrariem.
Embora o frio, a luz já concentra a irrequietude da primavera. As horas são maiores para o desfrute que duas crianças em casa da avó, deixam. Cinema.
Cinema King. Já não lembro a última vez que lá estivera, a última de muitas. Foi à muitos anos na minha história e descer de novo aquelas escadas foi atravessar o ar espesso deixado pelo tempo. Encontrei-me na livraria com a memória de mim e bebemos, juntas, um café apressado e fumamos o último cigarro ( de marcas diferentes) antes de entrar na sala 2.
Sempre me fascinou o sussurro das conversas breves que se tem nas salas de cinema. Adocicam as palavras por pequenas e fúteis que sejam. Tornam sensuais os pedaços de vida daqueles que por acaso se sentaram ao lado. Deve ser a ilusão ou a verdade esquecida, de que cada um de nós e a vida de cada um é cinéfila ...
Belíssimo: “ História Trágica com Final Feliz” de Regina Pessoa. Muito bom: “ O Caimão” de Nanni Moretti.
No fim e no terrível embate com o mundo, a noite já se deixou á porta. Escura mas com uma espécie de luminosidade serena que a primavera confere aos contornos. As avenidas estão quietas, sossegadas e bonitas . Tenho que chegar á primeira bomba de gasolina caso contrário, não chego a lado algum. Encho depósito, lavo o vidro, e atiro-me pela estrada a acabar numa conversa tardia a arder no fogo de uma lareira ainda acesa.
Respirar pelo olhar é-me uma felicidade. Haja tempo para respirar.
Já muito tarde, ouço as notícias do mundo deixando-as à minha espera um dia deste e procuro o tempo para o dia seguinte. Chocada! Teatro, em Lisboa, quase só ao fim-de-semana...
Mulheres da minha vida que me mandam fotografias de outras mulheres da minha vida. Desprendimento. Estrelas que emanam uma luz branca por outras estrelas, fazendo de mim um prisma, colorindo várias alegrias. Incertas as suas. Incertas as minhas. Retratos mínimos. Sabedoria.
O único índice mensurável nas conversas é o que nos mede os rigores do seu apetite. Conversar é adicionar especiarias às palavras quentes, delicadas pétalas de humor para quem o tem, corrosivo; folha de louro por um travo seguro, pimentão-doce se as queres adoçar logo à saída da boca, pimentando os lábios; um pé-de-salsa por cima, decorando o ambiente; dente-de-alho se as queres intensas; uma cabeça de cravinho como um ponto final quando se chega ao fim, misturado no brusco espanto das horas. Bastaria este tempero, admitindo uma sugestão de orégãos por egoísmo, não fosse quem nelas admite apenas falar com um copo de vinho, que lhes fica sempre meio no fim, por muito perto do seu fim. Um copo é um copo. Também gosto. Mas o seu excesso, o acumular de vinagre nas veias das conversas, espelhos quebrando espelhos, tiram-lhes o apetite.
segunda-feira, abril 02, 2007
absolut madrid
Arranjei um lugar para fugir do mundo: madrid. O sufoco do tempo sem respirar atira-me contra a estrada e as horas, sendo seis, fazem-se depressa. Com vontade, todos fugimos depressa. Por alcatrão, com chuva na planície, para longe qualquer que fosse a geografia da fuga.
Madrid por acaso como por acaso são feitos os determinantes encontros. Começou no encontro de uma mulher amiga e na porta da casa que se veio a abrir. A casa habita madrid e eu passei a fazer desse lugar a habitação da fuga.
Gosto do vagar feito a acordar num café manhoso, numa decisão serena de ocupação das horas, do caminhar nas avenidas largas, no tomar sentido para ... com desvio no Retiro. Gosto da volúpia do tempo em cidades e vidas alheias, gosto do vagar de olhar como quem descobre as diferenças e a luz. Gosto de me sentir como que a caminhar num filme, bonito e luminoso de fundo, como acontece quando estamos em cidades que nossas são por precariedade temporal. O prazer advém de não se ser de mas estar em. Fugir é procurar uma irrealidade para respirar as certezas.
E as mulheres... as mulheres fazem de madrid um perfume e um charme. Uma sedução alegre e ruidosa. Que elegância elas me conferem ao olhar do mundo...
Bendita fuga para um lugar de prazer e alegria que faz de três dias , três eternidades revigorantes. Chego devagar mas já senti a chuva. Para começar insensivelmente a morrer devagar. Até à fuga seguinte. Sem lugar determinado.
Tem um nome escolhido em homenagem à avó e livros favoritos. Dança lenta como um iceberg. Tem corpo justo. A justa ganga. A anca e o olhar que me desarma e um passo ou passado sobre o gelo que engana.
Sou tão enthusiasta pelos caminhos de ferro, que, se fosse possível, obrigava todo o paíz a viajar de comboio durante 6 meses (Fontes Pereira de Mello)