quinta-feira, abril 12, 2007

mulher no espelho - mulheres de botero


Lavar corpo para aguar a alma. Por creme para amaciar na pele a vida àspera. Escovar devagar os cabelos e deixá-los secar ao ar para que, de revolto, fique a cabeleira farta já que a postura é submissa. Ousadia suprema: enganar a verdade em frente ao espelho.

L. trocou a ordem ao mundo. Não saiu pela manhã ainda noite para esfregar escadas no prédio das finanças, antes de tomar o lugar de alinhava bainha na loja da Dona C. e sair depois, a correr, para fazer umas horinhas de limpeza no prédio do Doutor. O corpo chega usado a casa, o jantar não está feito e na caixa de correio, carta de amor não espera. Liga telefonia para enganar a casa que habita o silêncio. Roubaram-lhe horas e já não consegue ler livros de amor depois de cozinha arrumada e paninhos estendidos. Olha de soslaio o pó dos móveis e dá de frente com o olhar entristecido dos pais em retrato sépia. Ela, prometida ao alferes, levou coça da vida quando ele se ficou lá pelas savanas a cumprir amor de mestiça depois de serviço obrigatório. Ela chorou a alma, amaldiçoou o fado e partiu para a cidade para servir em casa farta. Fez-se mulher no filho do patrão e foi para a escola para apreender a escrever soneto. Mas o amor, coisa vadia, nunca se juntou de vez a ela. Assim quis o destino e L, calada, aceitou.

L. trocou a ordem ao mundo porque relógio não tocou. Acordou súbito com sentimento de ter sono a mais na cama e lá se fora a hora das escadas nas finanças... alinhavou na ideia a ousadia. “ E se hoje não desse cavaco ao mundo... “ deixar bainha por fazer, evaporar água da limpeza e deixar-se estar. Roliça e quente nos lençóis amarrotados de um dos lado da cama de casal. Ousadia máxima: não partir para a vida. Deixar-se ser senhora das horas.

Lavar corpo para aguar a alma. Por creme para amaciar na pele a vida áspera. Escovar devagar os cabelos e deixa-los secar ao ar para que, de revolto, fique a cabeleira farta já que a postura é submissa. Deixar perfuminho de rosa na dobra do pescoço, esticar meia de vidro preta e por vestido de festa. Sentir-se mulher de coronel já que de alferes o destino não deixou.

Abriu as janelas todas de casa para deixar ar fresco entrar. Mudou o posto na telefonia e escolheu música dolente e romântica. Puxou cadeira da sala e sentou-se, no quarto, em frente ao espelho e finalmente... conversou com a vida.

2 Comments:

At 12:17 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Lembra a Luísa da «Calçada de Carriche» do António Gedeão. Em frente ao espelho, Luísa desenchovalhada...

 
At 6:54 da tarde, Blogger Cristina Gomes da Silva said...

Também me fez lembrar, sim. E que bem que nos faz conversar com a vida.

 

Enviar um comentário

<< Home

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!