Preces versão 45.0

Chegou pelo antigo correio o prometido envelope de Campanhã. A mesma letra que adoçou outros envelopes mais urgentes. Dentro, um CD pintado como um autocolante dos campos. Dentro, um fim-de-semana de fotos das Preces, da Mónica e da Helena, da última vez em que estivemos juntos. Dentro, um mar de amigos para guardar na memória (parece a cena do Aconteceu no Oeste, tudo dentro de… como as balas nos homens e nos guarda-pós, falta a música do Ennio Morricone, que ainda não reaprendi a meter na linha).
A paisagem de anos. Os rostos mais afiados pelo tempo. E tantos futuros a brincarem sem saberem ainda o que sabemos. Dançam, cantam, dedilham a viola, olham o Napoleão, trepam ou descem os socalcos, tudo com outro ritmo e ainda outra motivação. Assim se guardam gerações. Assim continuamos esta nossa imensa minoria de gentes e de prazeres. Há letras (como os desenhos que com elas faz a Mónica!) que poderiam ser fonte do Windows. A caligrafia da Helena também. E a do Cabrita. Um dia será possível pelo Windows escolher e escrevermos com elas. Não como elas. A foto é que é delas.
história com as poucas palavras disponíveis

numa tarde tórrida na serra da Freita vimos surgir ao longe um pontinho negro que depois se revelou uma figura humana veloz, congestionada e curvada sobre si mesma, que andaria ali a fazer?

chamava, por entre insultos, um rebanho pacífico. quantos anos tinha? 50 + 27, e boas pernas, sim senhora, só a coluna aleijada numa queda em miúda, quando tínhamos vacas e cavalos, agora só estas ovelhitas.
não teríamos um copito de sumol? que a sede era tanta! e a pressa maior ainda.
Etiquetas: Freita
Manuel Alegre

Não sei quantas legislaturas desde a constituinte, desde quando eu era menino. Deixou o parlamento e, como no seu poema, alegre se fez triste. Se os partidos fossem equipas de futebol a coleccionar cromos na caderneta, sim, desde quando eu era menino, o Manuel Alegre seria um cromo para guardar, valor ímpar de troca. Embrulhado como os da bola num antigo rebuçado, deixar-nos-ia nos lábios o sabor da Democracia na sua essência plena. Por isso raro. Por isso o meu «carimbado»!
Operação Vagô

A história do avião desviado
por João Miguel Rodrigues.
"Dia 10 de Novembro de 1961, sexta-feira. O Super-constellation da TAP Mouzinho de Albuquerque descola à tabela do Aeroporto de Casablanca, em Marrocos. Eram 09h15. O comandante José Marcelino e o co-piloto Raul Teles Grilo ganham altitude, alinham o avião na rota para Lisboa e permitem aos passageiros desapertar os cintos e acender os cigarros. Estava bom tempo. A viagem, de cerca de hora e meia, prometia ser calma. Mal sabia a tripulação que entre os 18 passageiros seguiam seis guerrilheiros, inimigos jurados do regime, chefiados por Palma Inácio. A calma a bordo foi interrompida mal à meia hora de voo. Hermínio da Palma Inácio entra de surpresa pela cabina de pilotagem – e aponta o revólver à cabeça do comandante: “Isto é uma acção revolucionária. Não quero fazer mal a ninguém” – diz. Nunca, na história da aviação comercial, um avião fora tomado no ar. O plano dos revolucionários é arriscado: pretendem seguir na rota para Lisboa, simular a aterragem na Portela e voltar para trás, em voo rasante sobre a capital, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, para lançarem 100 mil panfletos com apelos à revolta popular contra a ditadura. Aterravam sãos e salvos em Tânger – onde Palma Inácio e companheiros esperavam asilo político. O co-piloto Teles Grilo, o mecânico-chefe António Coragem, o mecânico de voo Alberto Coelho não disseram palavra. Apenas o comandante Marcelino, ameaçado pelo revólver, tentou com serenidade demover o guerrilheiro. Disse que o avião não tinha combustível para regressar a Tânger. Mas Palma Inácio, que era mecânico de aviões e tirara nos Estados Unidos a licença de piloto de linha aérea, estava seguro do que fazia. Exigiu os registos de voo do Super-constellation – e verificou que os tanques tinham sido atestados em Casablanca. Havia gasolina à farta. O comandante tentou outro truque: “Como é que vai lançar os papéis? Eu não posso abrir as janelas do avião” – disse José Marcelino. A resposta de Palma calou-o: “Pode, pode. Voa o mais baixo possível, despressuriza as cabinas e abrimos as janelas de emergência.” Palma Inácio tinha a situação dominada. Lá atrás, a aventura também não podia correr melhor. Os outros cinco revolucionários nem sequer foram obrigados a levantar a voz e a mostrar as armas. O comissário de bordo Orloff Esteves e as duas assistentes, Maria del Pilar e Luísa Infante, aceitaram participar naquele momento histórico – e até ajudaram a lançar os panfletos. Nem todos os 13 pasageiros (americanos, espanhóis, belgas e dois portugueses) compreenderam que o avião fora tomado de assalto: só ficaram a saber depois da aterragem em Tânger. A cerca de meia hora de Lisboa, momentos antes de iniciar os procedimentos de descida, o comandante Marcelino contacta a torre de controlo – e recebe autorização para aterrar na pista 05. Faz a aproximação – mas, no último momento, acelera os quatro motores a hélice: o avião ‘borrega’ sobre a pista, ganha altura e afasta-se do aeroporto. José Marcelino volta a comunicar com a torre – e tenta explicar ao controlador, por meias palavras, que a bordo o obrigam a fazer um voo rasante sobre Lisboa e outras cidades a sul. “Repita lá?” – dizem-lhe da torre. A comunicação é interrompida pela voz de um general da Força Aérea, Costa Macedo – que pilotava um monomotor, percebeu tudo e deu o alerta. Minutos depois, dois caças F-84 levantam voo da Base de Monte Real: descolam com ordens para abaterem o avião da TAP caso não conseguissem obrigá-lo a aterrar em solo português. O Super-constellation iniciou então um perigoso jogo do gato e do rato. O avião teria de voar baixo, a escassos 100 metros de altura, para fugir aos radares e iludir os caças. A manobra era perigosa, só ao alcance de pilotos de elite. Os seis revolucionários tinham levado 100 mil panfletos, impressos em fino papel de seda, na bagagem de mão. O avião passou a rasar a estátua do Marquês de Pombal, sobrevoa a Baixa, guina sob Alcântara. Uma chuva de papéis cai sobre Lisboa – o mesmo no Barreiro, Setúbal, Beja, Faro. Cem mil panfletos voaram das janelas do avião. A missão estava cumprida. O Super-constellation, como estava previsto, aterrou no Aeroporto de Tânger, em Marrocos, às 12h50 de 10 de Novembro, sexta-feira. A operação mereceu honras da Imprensa internacional – era o que os revolucionários pretendiam. Salazar espumou de raiva."
Palma Inácio faleceu hoje!
No teu deserto

Comprei depois de uma entrevista que li sobre o livro. Começas a ler e viajas. Já o vivi noutros contextos. A «Bonança no Deserto», num Outubro de Marrocos com o Mocamfe e a Intercultura. Tem também muito da nossa linha. Lê-se de um fôlego. Já cá canta!
Aventura na mina

A Mónica diz que é com mochilas que iremos. Lembram-se de “Uma Aventura na Mina” da Ana Magalhães e Isabel Alçada? O rebuliço na estação de Coimbra e um dos nossos campos dentro de um livro? E o livro “Os Campos” por dentro dos nossos campos? É desejo que não quero contrariar. Um dia destes cruzar-se-ão dois comboios, um do Norte, outro do Sul, Coimbra-B a fazer de arrumador, a estacioná-los para meterem água, ou gin, ou vinho, ou apenas a arrumar corações que ainda se inquietam. No Verão há uma ventoinha cromada a soprar o ar. No Inverno haverá lenha e fogo preso junto aos pés. Guardem os desejos que ainda são desejo. Guardem apetite para um jantar que terá como ementa uma conversa por acabar. Um dia destes convido-vos para um encontro a três que nos falta como o ar que respiramos. As Preces foram um ensaio. Agendem o dia. Quando? Já estou a fazer gelo e a escolher os melhores vinhos e todas as músicas que há anos não vos coçam os ouvidos.
Mesmo agora

No intervalo do trabalho a estas horas, fui ao faceboock abrir uma garrafa de tinto e acender uma cigarrilha. A Cristina, a provar vinhos italianos, abriu-me o apetite. Aqui o processo é mais aconchegado. O vinho tem tempo de abrir até ao fim da cigarrilha. Limpar o copo como quem cuida de palavras para prenda certeira. A Helena a caminho do Alentejo. A Mónica no seu Porto de abrigo. Pronto, limpo só um copo! Ops… trabalhinho, trabalhinho!
À minha maneira

O mundo parou nos écrans de TV, para além dos mais de 80.000 que presenciaram o acto. O número 9 tem outra vez um mesmo nome: Ronaldo! É Real. É uma realidade. Era quase impossível não ver. O futebol tem esta força, mesmo para ti, não escondas, que levas os olhos para outros sítios em tantos fins-de-semana. Mas quem ganhou mediaticamente foram outros pontapés. Os XUTOS. Com eles, sim, já gastaste olhos suficientes. Vês como nos desconstruímos com o mesmo vício dos pontapés?
o mundo - num livro

comprar um livro por 2 ou 3 frases que alguém escreveu sobre ele num jornal qualquer já me foi muitas vezes desastroso (e, no entanto, continuo a fazê-lo) mas, desta vez, foi um tesouro o que encontrei. nunca li nenhum dos romances de Juan José Millás mas senti-me imediatamente atraída pelo subtítulo da sua autobiografia "O Mundo": "o mundo é a rua da tua infância". porque outros livros de outras infâncias me fascinaram, porque a minha própria infância é um livro por escrever que se passeia em frases soltas na minha memória, porque o mundo e o modo como o vejo me chegam frequentemente intactos como os conheci (e estranhei e inventei) nos meus primeiros anos de vida.
o Mundo é daqueles livro que se lê com gula (poupando cada página para lhe preservar o sabor) e que a mim me envolveu numa volúpia - de conhecer e amar aquela criança extraordinária que Millás escreve que foi - muito, muito, semelhante à que me avassalou em
Uma História de Amor e Trevas (outra criança escrita por quem me apaixonei perdidamente).
"«Repara, Juanjo, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa.» Compreendi que a escrita, tal como o bisturi do meu pai, cicatrizava as feridas no mesmo momento em que as abria e descobri porque motivo eu era escritor. Não fui capaz de fazer a reportagem: acabava de ser atropelado por um romance."
Etiquetas: Juan José Millás, livros