ainda a história de Amos Oz
acabei ontem à noite o livro de Amos Oz: um livro grosso e pesado, de capa macia, que pude saborear com gula, sem medo que acabasse depressa demais. uma paixão demorada que me agarrou, me envolveu e me fez 640 páginas de sensual companhia. acabei-o ontem: embargada, angustiada e lavada em lágrimas porque só mesmo nas últimas linhas Amos Oz decide escrever que não foi só raiva que sentiu quando a mãe morreu, foi sobretudo desespero remorso impotência saudade e uma dor que o amordaçou durante décadas, até ser capaz de escrever este livro.
fiquei a pensar como se pode sobreviver a uma infância como a dele: entre uma mãe que entristeceu de morte e um pai alegre e verborreico mas com quem nunca falou da mãe ("o pai e eu parecíamos dois maqueiros transportando um ferido por uma encosta acima"); entre uma ascendência de judeus europeus intelectuais que o educaram como sobreviventes da humilhação e trinta anos passados num Kibutz, onde entrou com 15 anos, ferido a ponto de mudar de nome para escapar à sua história, procurando "uma vida de fraternidade e de trabalho manual"; entre o deslumbramento de assistir ao nascimento de uma nação e a desilusão da guerra interminável, do desencontro e da ausência de honestidade política. como, não só se sobrevive mas, se acaba assim, como o descreviam em criança, "inundado de luz"?
lembro-me que, no prefácio do seu livro "20 mulheres para o século XX" (Dom Quixote, 2000), Inês Pedrosa escreveu que notou uma coincidência na infância das 20 mulheres notáveis que biografou: "(...) quase todas perderam um dos pais, ou ambos, numa idade muito precoce. A esmagadora maioria delas não teve nenhuma das condições que hoje julgamos indispensáveis ao adequado florescimento de uma criança (...)".
fico a pensar nisto, na minha infância fácil e na dos meus filhos. no país de cristal de onde vim e onde os mantenho. que mundos nos são vedados para lá destas fronteiras? as flores nascerão apenas do estrume? será que conhecer as trevas nos ilumina por dentro?
Etiquetas: Amos Oz, Inês Pedrosa, livros, país de cristal
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