caderno de duas linhas VIII
fui avisada de que ele viria mas mergulhei no trabalho da estação, os horários a cumprir, os apitos constantes, as agulhas viradas para o resto do mundo e, num instante, deixei cair a vontade de viajar e a areia que ainda me restava nos pés. o David já chegou, aposto que o encontro num desses bares manhosos da linha de táxis (deve estar a pensar como Campanhã tentou mudar, modernizar-se, plastificar-se, com a chegada do metro e tal mas depois dá-se um passo em volta e é o Porto oriental, feiote e autêntico de sempre). ele já não fala disso mas sei que nunca se conformou, o David, com esta sina de nunca mais, desde que estamos na linha, termos conseguido beber um copo os três.
não sei como hei-de dizer-lhe que está perdido connosco. soube que a Helena partiu de Coimbra-B rumo a Tróia, ou à Grécia, já não sei. o seu ofício é estar sempre pronta a descolar deixando para trás recados escritos e pontas de cigarro tingidas de baton. quanto a mim, crio raízes cada vez mais fundas nos lugares de todos os dias, os movimentos que consigo arriscar desenham um perímetro cada vez mais estreito e suspeito mesmo que um dia deixarei de ser capaz sequer de sair de Campanhã.
isto, mesmo quando acabo de chegar e sei que foi bom ter partido e ter estado tanto tempo num terraço a ver outro mar e a ouvir outra língua. estive perto, muito perto, já ali na Galiza, mas é já outro país, como se fosse outra região do globo. admiro a sabedoria dos espanhóis em conservarem para si esse pedaço do litoral norte da península que mais lembra o mediterrâneo: praias recortadas na costa onde o máximo que sopra é uma brisa e o mar é limpo e quente e meigo como no Algarve da minha infância (e, como se fosse uma grande coisa, deixarem para nós os areais varridos pela nortada e as águas gélidas e revoltas até ao Cabo Carvoeiro). as praias da Galiza deviam ser um dos mais poderosos argumentos a favor da integração do nosso país na Espanha (outros seriam a siesta, o tinto Rioja ou os calamares).
se aquele bocado de litoral fosse nosso, mesmo que eu deixasse de conseguir atravessar fronteiras, teríamos sempre a Galiza.
Etiquetas: Galiza
1 Comments:
"crio raízes cada vez mais fundas nos lugares de todos os dias"
:)
há uns anos subi até à Galiza. demorei cinco dias a percorrer o caminho até à Coruna que, no regreso, fiz em três horas e meia. muitas vezes andámos vinte quilómetros...
Enviar um comentário
<< Home