terça-feira, agosto 26, 2008

caderno de duas linhas - III


«Se quiser, podem fazer nova viagem, partir amanhã. Ele a esperará na estação de Coimbra B», escrito num pedaço de folha dobrado em quatro, que o revisor deixara debaixo da minha porta. Seguirá depois até à última casa da rua, a primeira do mar, para se atirar à cama. Era o único homem da vila que não se fizera aos barcos, escolhera o comboio como quem desvia o destino.

Li o recado e estremeci vento. Vento como só em Agosto. Sentei-me na cadeira velha e quietei o desassossego. Enrolei um cigarro mortalhado na folha, fumei uma a uma as palavras.

Agarrei na manta preta, enrolei-me nela e apressei-me a descer a rua até à praia. Sentei-me na areia e no frio. Ele não sabe, depois de ardida e recuperada, perdi as palavras. Elas vêem-me de dentro, sobem o corpo e desfazem-se na boca. Como o mar. Como matéria sem vestígio.
A mudez é diferente do silêncio... silêncio não tem palavras para haver espaço, mas mudez é ter palavras que se desfazem, que não falam.

Fiquei calada de passado e de tempo. Que materialidade tem assim um homem numa história de amor? A pele, bem sei! Mas ficou gretada e seca depois do incêndio.

Retornei a casa e, na rua, cruzei-me com os homens que partiam para a faina. Guardei num saco o último vestido com que dançara, a fotografia do homem ainda novo e uma folha em branco. Esperei na estação o primeiro comboio, enquanto clareou o dia.

Saí assustada, passei apressada à porta do bar da estação cheia de homens e entrei na porta do chefe da estação...

1 Comments:

At 6:46 da tarde, Blogger Cristina Gomes da Silva said...

Mas que belo dueto, este com que nos presenteiam em agosto. Estou "agostar" de vos ler.Abraços de cá

 

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