quinta-feira, setembro 04, 2008

Caderno de duas linhas - VII

A entrada em Campanhã de comboio é uma visitação de um templo antigo. Nada mudou. A fronte de pedra negra no branco caiado, o negócio oculto, as gentes sem pátria e sem anjos de asas para fechar ou abrir, cavalos-vapor dos comboios como Pegasus de Poseidon, procurando alimento e novo rumo como nas velhas mala-postas, Porto seguro.

Não sei se o Labitinha a avisou da minha chegada. Saltei ligeiro para a plataforma, entrei num daqueles bares antigos ao pé da linha de táxis, pedi um Porto branco das manhãs (uma lágrima de Cristo!), acendi uma cigarrilha, distraí-me por momentos na capa do Jornal de Notícias e logo rebobinei memória. Já fomos notícia de jornal, outra vida. Recordo da última vez que a vi, que ela tinha nestes anos acumulado um calo no dedo médio de muita escrita, os mesmos dedos curtos e finos como balas de carabina, uma aliança no anelar a pedir fogo e serradura para voltar a brilhar (mister de ourives!) e uma voz suave, que senti pela primeira vez entre um acorde de viola, quando pernoitávamos pelas serras. São lápis acumulados a verter palavras, são óxidos no ouro redondo das promessas a cumprir, é sol de manhãs e fins de tarde a ouvir o vento à beira-mar.

O dia começava a crescer, desenhando sombras na praça, junto aos jogos de água, onde acertaríamos o tempo com a rotação da terra. Lembrei-me, depois, que coleccionava imagens de gárgulas nos edifícios. Descobria esses diabretes das muralhas, sacava da máquina fotográfica, ajustava a distância e, feito o passe milagroso, visionava no écran a alma apreendida e começava a rir, a rir como uma menina ri de um mágico de rua no fim do terceiro passo. Depois, cerrava os olhos, acendia um cigarro, perdia a fala e entristecia. E isso causava-me um desconforto imenso.
«Acorda menina. São horas!» - dizia-lhe muitas vezes!
Não me ouvia. Segurava o queixo na mão esquerda e rabiscava em letra miudinha a toalha de papel da mesa da esplanada. Cada letra era um desenho, parecia um código hieróglifo, senha enigmática para me perturbar. Alfabeto grego?
«Acorda menina. São horas!» - repetia-lhe uma vez mais baixinho ao ouvido.
E ela, na sua cumplicidade com o mundo, espreguiçava-se como um gato e rodava o corpo para o sol. Lembro-me da outra mulher por momentos. Onde andará? E esta, terá tempo no tempo para aparecer? Quem me dera...

Termino esse jogo de molhar os lábios como um Pegasus no fim do copo de Campanhã. Volto à estação, talvez se tenha enganado no meu horário. O Labitinha não é um relógio suíço. Descuida-se muitas vezes. São 16:03. Não sei se aparece. Deixo aberto o caderno de duas linhas.

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