Caderno de duas linhas - VI
«Vamos por aí!» E, pelos vistos, foi. Quando regressei dos lavabos, nem mulher, nem saco, nem ruído que anunciasse a sua partida. Tinha já obrigação de saber que em 2 minutos ela corta a linha, sempre foi assim. Deixou uma nota de dez euros debaixo do copo, como os artistas americanos fazem aos dólares nos filmes, a ponta do cigarro marcado do batom ainda a arder no cinzeiro e um rascunho nas costas da folha, que me pareceu uma sequência de alfabeto grego. O Labitinha olhava-me com uns olhos de ternura, tão baixos como aqueles que mal cruzamos quando nos dão um abraço.
«Um comboio parou e ela meteu-se nele… nem tive tempo…» - disse e retirou-se para o seu velho lugar de chefe de estação. Ali fiquei olhando o relógio grande, analfabeto funcional do tempo. O bar cheirava a álcool barato. Peguei na nota para pagar o nosso prejuízo e procuro lá do fundo o Labitinha para gastar o troco num último trago, desculpas do coração. Estava ao telefone, animado, sorria-me de soslaio, numa conversa tão vulgar que só me foi familiar quando ouvi a palavra «Darque».
«Darque?» - pensei. O Labitinha é assim. Por isso, a sua alcunha alternativa é «compensan». Já estava a ligar para a mulher de Campanhã, a contar tudo como uma alcoviteira. Que a mulher de Lisboa tinha fugido, que me era bom o seu regresso, que eu estava estatelado no mármore frio da mesa, que era melhor não desfazer as malas, que… sorria, piscava-me o olho, que ela ainda tinha areia nos pés, que Darque é um sítio bonito, repetindo-lhe uma história antiga que eu lhe tinha contado, «a Volta», dizia, «a Volta, lembra»? e ela que o confirmasse.
Desligou e avançou para mim, decisivo.
«Ainda há dinheiro para pagares um copo?» - disse, sentando-se na cadeira do canto. Tinha os olhos brilhantes, bom sinal. Chegava outro comboio. O Labitinha olhou-o sabendo largo das suas procedências e desafiou:
«Este já não é para ti, é o de Irún, mas daqui a 12 minutos faz paragem um inter-regional para Campanhã. Tens cócegas?»
Campanhã, Darque, a outra mulher. Estranhamente foi com esta que perdi há muito o resto das letras do alfabeto grego. Histórias que quase aconteceram, o último contacto das coisas que fascinam.
Há que esquecer por momentos a mulher muda. Mudar a agulha, mudança de linha. Eu sem a ler, ela sem me ver. Corri a estacionar o carro no parque. Está decidido. Vou sem bagagem, vou para Campanhã no inter-regional. E nem preciso de dizer nada. Se conheço o Labitinha, ele encarrega-se disso.
1 Comments:
Ao ler-vos apareceu-me o poeta "...a vida é a arte do encontro,embora haja tanto desencontro nesta vida." Que bem se cruzaram estas linhas. Há mais estações? :)
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