quarta-feira, agosto 27, 2008

Caderno de duas linhas - IV

Ajeitava ainda a última volta do corpo na cama quando o telefone tocou. A noite tinha sido pesada, daquelas de quando entramos em casa e nos deitamos sem darmos por isso.
«Ela está aqui, pá!» – gritou o Labitinha ao telefone, chefe da estação de Coimbra B, velho parceiro do canto do bar.
Resmunguei, desliguei, até ter consciência da notícia. Á forte dor de cabeça ajudava um som: - «Ela está aqui, pá!»
A vida ganhou forma. Levantei-me devagar como quando se ergue uma flor no orvalho da manhã. Arrumei a casa à pressa, ordenando-a como os tachos e as panelas de cobre nas antigas cozinhas e descuidei-me na pressa de vestir. Se demorasse, ela era mulher para apanhar o comboio seguinte, como me fez num fim de tarde, saindo assim do Hotel Zenit Coruña.
Pego no carro e atravesso a cidade até à estação. Não a reconheci no primeiro momento. O Labitinha saltava ao canto da gare e apontava para uma mulher bonita, pronto, assim maçã mais madura. Depois sim, reconhecia, porque me revi numa fotografia a preto e branco que se agitava na sua mão. Tinha o cabelo mais solto, a pele ao sal mais seca, os mesmos olhos, os mesmos olhos mais distantes, o mesmo andar de passo longo e decisivo. Na outra mão, um saco de onde saía a ponta de um vestido com que me dançou a vida no bar “La Santa Sed II”, um mambo em Orense, tapando-me a boca, dando-me corda para que a guiasse.
Aproximei-me e disse: - «Li o teu post. Falei com o revisor. Como estás, deu-te o meu recado?»
«Deu. Estou como o Chiado, ardida e recuperada, lembras?»
«Estás bonita!»
«E tu continuas mentiroso!»
Alargou a écharpe do pescoço e disse naquela voz suave - «apetece-me um copo!»
Fomos para o bar. O Labitinha rondava-nos ao largo como um barco, acenando de largo. Convidei-o. Sentámo-nos os três. Três gins. Três mentiras de conversa. Só a dois, depois, sem Labitinha, a aposta se fez.
«Estou disponível. Escolhi a roupa, dobrei dinheiro. Nesta folha em branco, desenha o nosso trajecto. Estou disponível, ouviste?»
Depois acendeu um cigarro e ficou muda na mesa, fumando-o como as abelhas sugam o pólen das flores. Ainda perguntei se queria tomar um banho lá em casa e descansar um pouco. Que não, que não. Queria partir. Pedi uma caneta ao Labitinha e desenhei na folha branca, à pressa, o mapa da Europa e, sobre ele, pontuei um percurso a vermelho sem ordem como o trajecto de uma estrela.
Ela olhou, pediu mais dois gins e disse: - «Vamos por aí!».
«E se fossemos de comboio? Ó Labitinha, vendes bilhetes para Irún?»

4 Comments:

At 11:23 da tarde, Blogger CCF said...

Há muito que não lia uma correspondência tão intensa, tão bela.
~CC~

 
At 2:20 da tarde, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

já cheguei mas vou ficar aqui calada a ler a vossa história

 
At 2:12 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

CCF
Vai às nossas «gares» de Julho/agosto de 2006 :) Aí há mais de duas linhas...

 
At 12:01 da manhã, Blogger CCF said...

Fui espreitar David, que história soberba a que estão a construir entre linhas.
~CC~

 

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