caderno de duas linhas V
cheguei ontem da Galiza, as malas repletas de areia, livros e crespúsculos. apanhei o comboio em Vigo e atravessado o rio Minho foi a alegria de sempre. às vezes nem sei porque saio de casa, tamanha é a euforia de regressar. pouca-terra, pouca-terra, toda a viagem para casa a conferir um a um os lugares onde o meu coração já bateu: Caminha (numa noite de loucura, apaixonada e às escuras numa casa arrombada), Moledo (num Agosto difícil, com 15 anos e demasiado perto do fruto proibido de Vilar de Mouros), Darque (onde nos apeámos em 85, na primeira noite da nossa Volta ao Minho), Apúlia (onde o meu anjo da guarda me pôs a mão no volante quando adormeci por instantes numa curva) e Campanhã (o meu porto de sempre).
quando entro no gabinete de chefe de estação o telefone já toca de Coimbra-B. o Labitinha conta-me que a Helena e o David têm escrito recados inspiradíssimos em cadernos de duas linhas. pouso as malas, ligo o portátil e consigo vê-los do meu lugar: sentados num bar de estação, uma mulher e um homem, sem bagagem, debruçados sobre um mapa e dois gins. ela coberta de palavras: coladas à roupa, penduradas aos cachos pelos cabelos revoltos, enroladas nos colares, pulseiras e anéis. ele, subitamente analfabeto, crê que ela emudeceu. e faz-lhe um desenho do futuro (esquecido que ela não vê).
permanecerão assim ainda muito tempo: ele sem a ler, ela sem o ver. mesmo deste lado do vidro sei que à volta deles cheira a álcool barato e que é fria a mármore suja da mesa. sei que as mais belas histórias são as que quase aconteceram, acontecendo assim muito mais intensamente e sem serem desafiadas pelo o curso indiferente do tempo. do resto não sei.
Etiquetas: comboios, minhas histórias, norte
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