Dezanove quadras de Coimbra A com uma moralidade B
De uma estação afectiva.
De novo vejo o homem na tarde de comboios.
Além, o rio estanha a luz coagulada.
Árvores acodem em moldura de quieta procissão.
Pela gare varre o vento o tempo.
Bocas eléctricas altifalam horas: e destinos.
Mulheres velhas pedem esmola na escadaria.
Profusão de revistas e cigarrilhas no quiosque.
O rio parece triste como uma pessoa deitada.
Pássaros angelizam o cartão do céu.
Um hotel jaz ao alto à saída da gare.
Raparigas de aluguer florescem à sombra da sombra.
Uma churrasqueira auschwitza frangos magros.
Amo lentamente a podridão institucionalizada.
As alunas da Escola de Dactilografia suspiram à janela.
O sol desce a meia-haste além-nuvens.
É possível morrer amando tanto.
Voltaremos de comboio a nosso passado porvir.
Estações sucederão a estações – a frio.
Apeadeiros quietos nos darão ginja, não água.
Comeremos o pão plastificado de algum desejo.
O homem na tarde de comboios não tem aonde ir.
É o destino dele – chegar a horas a nenhures.
Rubricam reclamos urgências verdes de farmácias.
Tossem peidos abusados carritos a gasóleo.
Subsolo, vigiam os nomes mortos em mármore.
Postais rápidos acodem à visão transeunte.
Pasteurizados matrimónios reciclam alheias crianças.
E a noite cabisbaixa-nos suas armas neónicas.
Coleccionamos homens em tardes de comboios:
até que um dia o dia se nos faça noite.
Não adianta coleccionar unhas, sujidades:
morremos limpos como uma folha branca – é o nosso papel.
Deriva longe de vós e de mim a maré primacial.
Somos mais naufrágios do que mares.
Domesticámos o lobo do coração: mas
lebres, não livres, corremos na neve.
Homem nas ruas da cidade sujeita à gare.
Bicho acossado pela noite comercial das ruas.
Vielas fritam fígado e sardinhas com cebola.
Polícias bocejam contra o regulamento.
Folha perene é ter vivido, caduco é escrevê-la.
Avenida até cima, alongam os plátanos a noite vegetal.
Rostos cerâmicos tragediam a comédia instante.
Uma cerveja fria arde na boca.
Discretos assassinos passeiam rondando a carne.
Museus fechados fazem de fluoxetina.
Sombras azuis como bandeiras fecham empenas.
Letras sem leitura juncam o lixo dos sonhos.
Este homem na noite sem transporte.
Eu conheço este homem em dele a noite.
Eu queria fazer um poema sobre a tarde.
Quando anoitece, mantém o formato poético, por favor.
Oh, a não lavada folhícula de alface do meio-bitoque!
Oh, o não respirado tinto da taça avulsa!
Oh, as saudades qu’eu tenho da tosse convulsa!
Oh, o jazz e o samba e a valsa e o rock!
Não. Oh nenhum. Nenhum oh. Vejo de novo
o homem na noite sem comboios, só com destino.
Altifala seu coração ulterior, bronquítico, eléctrico,
senilizando a infância como de costume.
Aparece a infância quando vos dizia do homem
dos comboios. A infância aparece muito,
nunca para redimir, antes para fazer de
Claude Nougaro quando canta a Toulouse dele.
A minha Toulouse é Coimbra: Coimbra-B.
Ela e eu temos sido B toda a vida.
Ela despede fábricas desempregadas.
Eu procuro emprego em fábricas.
Sou o homem na tarde de comboios à saída
de Coimbra-A, do destino sem comboios da noite.
Não conto para o totobola: conto versos.
Eu faço quadras.
Sou o pássaro. Sou a puta. Trago e levo
sombra. Já assei frangos, quando era
outro poeta, outro de cinzenta gabardine.
Entre Coimbra-A e Coimbra-B, tudo é de borla.
Só a vida não é grátis.
Daniel Abrunheiro
1 Comments:
estonteante
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