sábado, junho 10, 2006

o meu trabalho


o meu trabalho é às vezes usar o cérebro, o melhor raciocínio, a lógica, a dedução, como o jogo aprendido na faculdade (quando ainda era a brincar), o jogo em que me viciei nos primeiros anos de hospital: juntar queixas e sinais até obter uma série de hipóteses testadas metodicamente até chegar à meta: o diagnóstico.

outras vezes (que são muitas vezes quando se sai dos hospitais para os centros de saúde), o meu trabalho é desistir da lógica, usar menos o cérebro e mais o coração, e deduzir deduzir deduzir, decifrar as pistas que me conduzem ao sofrimento invisível que trouxe as pessoas até mim.

tenho dias em que acredito que a minha função é ser digna desse sofrimento, ser digna das pessoas que me procuram e da dor que me revelam, e, nesses dias, sem sinais nem diagnósticos, sei que o meu trabalho é ser, eu própria, o tratamento.

mas, raramente, o meu trabalho é outra coisa, terrível, insuportável: é quando me aparece um homem novo e bonito que traz a morte encostada a ele – e ele ainda não sabe -, a morte a respirar com ele, a falar por ele, decidida e implacável. e enquanto esse homem não me faz perguntas eu só consigo ficar a olhá-lo para lá dessa hora, a vê-lo no dia em que ele souber quão breve vai deixar a vida, a mulher, os filhos pequenos, o seu corpo. quando é assim, não há raciocínio, não há jogo, a respiração suspende-se, o coração enraivece-se

e, por momentos, trabalhar é ter medo, é esquecer esse homem e as outras pessoas que me procuram, e julgar ver, por cima do seu ombro, a morte a piscar-me o olho – a mim, ao meu homem, aos meus filhos -, como quem diz, já volto.

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4 Comments:

At 2:26 da manhã, Blogger Gabbiano said...

A morte, ou a ideia dela, tem andado à boleia na linha.Deve ser sina desta idade: ficar entalado entre os que partem, de quem precisamos, e os que ficam, que precisam de nós. Isto também é crescer.

 
At 12:26 da manhã, Blogger JPN said...

que post!!! sem palavras...

 
At 1:24 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Lido outra vez, agora devagar, pausa na pausa. Perceber o que sentia antes: todos trabalhamos com um coração por dentro. E, sem muitas vezes percebermos, pomo-lo a trabalhar para os outros.
M sempre foi assim. A linha é assim. Que bom!

 
At 7:35 da tarde, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

vocês não sabem mas este post foi-me terapêutico, eu andava a adoecer disto e agora começo a conseguir respirar

 

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