os carros também se abatem
antigamente, os carros morriam como as pessoas. alguns, prematuramente, em acidentes violentos. outros, a maioria, morriam devagar. iam acumulando ruídos, dificuldades, começavam a ir mais vezes ao mecânico, gastavam cada vez mais óleo, pediam-nos redobrados e paliativos cuidados e, um dia, não acordavam da sua imobilidade.
se os donos eram mais negligentes, ficavam encostados numa berma em lenta decomposição. se mais estimados, eram trasladados para sucatas onde os seus orgãos eram vasculhados num processo estimavelmente ecológico e, peça por peça, regressavam ao pó metálico de onde tinham vindo.
por vezes, antes que adormecessem de vez, os carros velhos eram vendidos e, com sorte, ainda podíamos cruzar-nos com eles uma vez por outra e desse modo saber que continuavam vivos e em boa circulação. aconteceu assim com o mítico NSU Prinz 1000 que os meus pais tiveram nos anos 60 e 70: vários anos depois de ter sido vendido, ainda acontecia cruzarmo-nos com a sua inesquecível matrícula HC-64-29.
mas hoje os carros velhos já não interessam. nem que tenham sido os nossos companheiros de uma vida - ou mesmo, à falta de cão, mais um fidelíssimo membro da família. e, mesmo que não estejam propriamente velhos, basta já não serem novos. poucos interessam. pior, interessa que sejam eliminados, abatidos. é o ecologicamente correcto que inventou esta espécie de eutanásia automóvel.
o nosso polo vai ser abatido. foi o nosso carro por quase onze anos. veio para cá era o F bebé e já viu nascer a I . levou com as suas migalhas de bolachas e com os seus vómitos de viagem. carregou-nos e às nossas infindáveis tralhas por todas as nossas férias. deu-nos segurança e reservou sempre um lugar para o nosso anjo da guarda nos acompanhar não fossem os perigos da estrada espreitar-nos. nunca nos deixou ficar mal. nem uma vez. adeus.
Etiquetas: morte, o tempo que passa
2 Comments:
Também me ligo assim a certos objectos, parece que têm vida e falam connosco.
~CC~
Já abati dois. A mesma memória.
PP-38-22
VL-57-83
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