quinta-feira, julho 20, 2006

caderno de duas linhas - V


V

Das melhores coisas que uma mulher sabe lidar na vida é com homem desconfiado. Quando desconfiadas, as mulheres vivem da duplicidade, recriam uma outra vida à parte, mantêm equilíbrio até ao golpe derradeiro. E tendencialmente vencem o sufoco e fulminam. Os homens não. Cheira-lhes a desconfiança, aperta-se-lhes o coração, descarregam a adrenalina, logo querem saber o fim e o limite, esse tempo a que normalmente catalogo como cornologia dos afectos. Um dos sinais nelas é mudar o brinco de orelha ou retirá-lo simplesmente. Há também as que mudam o cigarro de mão, como o antigo código dos leques. Nos homens são os olhos baços e um silêncio ensurdecedor – fechamo-nos por dentro até ao golpe final, atitude tupperware.

Isto a propósito de ela me pedir de novo o volante para continuar. Pus o cinto, deitei-me sobre o vidro direito, fechei os olhos para pensar. Quando a fui buscar à estação não a via viva há mais de 15 anos. Mais mulher, mais maçã madura, parecendo-me a mesma. E não tinha os olhos baços.

Fecho os olhos desconfiado. Ela fuma, liga o rádio, pensa ou faz que pensa. Passou a alta velocidade pelo Alto de Allariz, não parou para o gin – a minha mulher que viria para o Verão pararia sempre para o gin! Aperta-se-me o coração. Pergunto-me: «Quem será esta mulher?» «Como descobriu a minha coordenada para mandar carta tão decisiva?» Vou jogar o jogo. «É a hora das cartas!», disse sonolento.

Parou numa área-de-serviço sobre o rio Amoia. Fiz de conta que não vi, ouvindo apenas os diálogos dos grilos junto à água. Regressou com papel de carta, cigarros, um jornal de papel barato e um reluzente xaile vermelho sobre os ombros. Com um leque na mão estaria perfeita.

Em Orense deu-lhe para dançar. Mambo. E eu que girasse ao seu egoísmo. Não era a minha mulher que esperava na estação, (definitivamente não era!) porque essa saberia desse meu pouco jeito para a dança e levar-me-ia, estou certo, para o primeiro restaurante da praça. Tapou-me a boca. Empurrou-me para um bar “La Santa Sed II” e deu-me corda para que a guiasse. Aqui o volante era fragilmente meu por minutos. Sussurrou umas palavras comidas pelo som alto da música, qualquer coisa como os homens saberem-se pela forma como dançam e, entre duas músicas, que queria uma carta escrita na cama. Que jogo é este? Tem regras?

O hotel Zarampallo é bonito e decente. Subimos ao doble 203. Disse que ia tomar um bom banho e iríamos jantar.

Pequei no papel de carta que comprou e escrevi:

Orense, 19 de Julho de 2006

Querida companheira:
Algo me confunde. Conhecemo-nos em que vida? Marquei dormida no hotel Corderí, Calle Ervedelo, 7, tel: 988 22 12 93.

Deixo-te o doble. Parece-me que a única coisa que nos liga é um mesmo sabor a sal na pele morena. Se quiseres continuar aparece amanhã para o pequeno-almoço e trás palavras decisivas. Confio em ti. Deixo-te o carro. As chaves estão na mesa do telefone. Apanho um táxi.

1 surpreso beijo doce


Envelope fechado, pouso-o sobre a cama e chamo o táxi da recepção. Ainda ouvi do banho ao sair: «vê no bar se há gin e gelo, não era o que querias?»
(Saí um pouco baralhado.)

1 Comments:

At 10:43 da manhã, Blogger Gabbiano said...

Um homem baralhado (não desconfiado) é das coisas bonitas que a vida tem. Bolas, amigos, vocês estão a empolgar-me!!! E a fazer desesperadamente lembrar "Um Inverno em Lisboa", de Muñoz Molina. Continuem, que eu continuo a ler!!!

 

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