caderno de duas linhas - IV
Julião Sarmento
IV
Cá vamos. Na paisagem trilhada em cima do mapa. Rádio sintonizada e silêncio em viagem.
Ela conduz, o que se pode tornar num perigo quando a mulher tem um caminho e uma reserva doble num hotel de Orense.
Abre a janela, deixa o braço de fora, fuma um cigarro e pensa em brisa «Que vou fazer com este homem?», «o que cabe neste homem?», «que história de mim vou deixar neste homem?».
A estrada faz-se sozinha, começam a ouvir-se os grilos e a luz a perder-se. É a hora do silêncio do mundo, essa hora quente dos fins-de-tarde de verão. Não falam. Ele deixa-se cair num torpor lento. Adormece e estremecesse de inquietação. Ela assobia por cada pergunta que levanta no pó da estrada. Está calor. Muito calor, ainda. Abeira-se a noite e a estrada por cumprir. N 525 até Orense.
Não parou no Alto de Allariz. Ele dormia e ela tinha pressa. Mudou apenas a estação de rádio e começou a trautear, em surdina, a música dos “Presuntos Implicados” que passava. Parou na estação-de-serviço seguinte. Deixou-o a dormitar no carro. Comprou tabaco, o Crime, um maço de envelopes, papel de carta e um xaile encarnado. Sentou-se ao volante e arrancou.
«É a hora das cartas!» disse ele com voz enrolada de quem dorme. Ela apagou a rádio e deixou-se a ouvir a noite e os grilos. Que quereria ele dizer ?... tinha a pele seca e morena o que a fez suspeitar de que viveria perto do mar. Cheirava a sal. «Cartas ?... que cartas ? » pensou ela.
Chegaram a Orense já com a noite entranhada. Parou o carro em frente a uma porta de madeira antiga, numa das ruelas da zona velha. Ela saiu do carro e espreguiçou o corpo devagar. Ele acordou em sobressalto. Estremunhado saiu do carro e bocejou.
Não lhe deu tempo. Tapou-lhe a boca e empurrou-o para dentro da porta velha. Sussurrou-lhe ao ouvido: «Vamos dançar... os homens sabem-se pela forma como dançam...». Ele anuiu calado. Sentiu-lhe a voz quente na pele. Deixou-se empurrar. Ela voltou a deixar-lhe ao ouvido: «Vais ser tu a escolher o teu destino... pela forma como dançares».
Entraram no salão. «Só mais uma coisa... se chegarmos ao quarto do hotel Zarampallo, quero uma carta escrita na cama...» disse ela.
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