sexta-feira, dezembro 26, 2008

dia 26 era sempre assim...

Dia 26 era sempre assim, a mochila, a alma e o frio cortante misturado com nevoeiro na luz amarelecida dos candeeiros da rua contra o granito da estação de comboios de Viana do Castelo. O primeiro comboio regional com destino ao Porto. Às vezes o sono, às vezes a ansiedade, outras a hipótese de uma felicidade qualquer, mas sempre o frio gretante, o ronçar da carruagem, a geada nas beiras dos campos de milho e o mar como suspeita.

O Porto era o começo da luz, o café mau e quente, os azulejos azuis de São Bento. Quase sempre atravessava o douro, num outro comboio curto, que me deixava ora no apeadeiro de Valadares ou no de Francelos.

Às vezes ia até à praia, ao atlântico invernoso como só as praias do norte deixam sentir e salgar, máquina fotográfica e rolo a preto e branco a aguardar as horas de decência para, do café da praia, ligar para casa dos amigos.

Invariavelmente assim, durante muitos anos, o 26 de Dezembro. Viana – Porto no primeiro comboio da manhã.

Depois partíamos todos. O tempo faz-se aqui de uma espécie de arqueologia de lugares.

Muitas vezes foi a casa grande das Preces, lá para as zonas de Arganil, a camarata onde dormíamos todos em colchões de folheio, onde os banhos eram de água gelada e as noites de pequenos segredos. Foi o tempo de crescer no inverno. De ouvir as horas na torre da igreja e as cervejas no café da aldeia. A carreira pernoitava junto ao coreto e à casa, à espera da primeira viagem da manhã, e era esse o local ideal das primeiras confidências.

Mais tarde foi a casa pequena de Tábuas, o chão corrido para nos deitarmos todos a aquecer corpo com corpo, a rir sem fim. Esta casa lembra-me sempre poemas pequenos de Eugénio de Andrade e o cheiro a laranja que deles exalava (será verdade?). Esta casa tinha uma pequena capela na sua proximidade e eu e o David fazíamos dela o nosso bar, escondíamos a garrafa do gin e da macieira por trás das portadas de madeira da janela. Amiúde vínhamos ao silêncio da noite acender um cigarro e aquecer o corpo pelo gargalo. Primeira, assumida e perversa, cumplicidade com o David.

Destas casas a Mónica também fez parte. A nossa garantia de azul. O cal dos poemas do Eugénio que também cheiravam a laranja. Alguma mais tristeza, tinha ela nesses anos.

Mais tarde foi São Jacinto. A casa pequena, de madeira, alugada ao Francês. A ria num dos lados do mundo e o murmurar do mar vindo do outro, para além do pinhal. Tinha um vestido preto e era bonita.

Deste tempo, o tempo do amor, cada um de nós arranjou um lugar no mundo para acabar dezembro e os anos. Lembro de vir á vila, algumas vezes a pé e outras à boleia dos areeiros, para telefonar do café à Mónica e lhe desejar um bom ano. São Jacinto tinha nesse tempo uma quietude única, aquosa. Depois eram os bailes nos bombeiros, as idas para a praia pela madrugada dentro, e acabar toda molhada com uma onda nocturna.

Depois, foram os carros. O Corsa branco da Mónica e a viagem de quatro mulheres pela Galiza. Lembro de um hostal em Pontevedra onde arranjamos um quarto enorme com quatro camas, viras de frente duas a duas, onde depois da noite no bar nos deitamos e tivemos uma conversa deliciosa sobre os homens e os homens na cama. Temos desses dias umas fotografias tremidas e muito vento. O mar e as estradas rentes. Acabamos em Vigo a mudar roupa no carro, meia preta de vidro, a percorrer os bares do porto, a dançar nas ruas, a procurar os amigos do porto que se desencontraram. Dessa viagem lembro o retorno de madrugada e a paragem em Vila Praia de Âncora à procura da padaria para comprar pão quente. Nevoeiro cerrado e a sirene do farol, nessa praia de todas as minhas infâncias. No Porto apanhei um comboio directo para sul.

Outro carro, o do David, noutro ano. Andava triste, muito triste. Não sei como fui ter a Coimbra, mas nela sempre houve o chão do David, as músicas e o bom vinho. O calor das palavras ou só do silêncio. Em Coimbra sempre houve comboios a chegar e a partir. Sem nada combinado, enfiamo-nos no carro e fomos por terras de Espanha adentro. Primeira noite em Valladolid, um hostal da Plaza Mayor, num quarto para os dois que nem amantes éramos. Andava triste, muito triste. Fizemos essa viagem a acabar dia 31 em Santiago de Compostela. Jantamos com o G e umas amigas americanas. Depois fomos dançar. Dançamos, não dançamos David?...

Raro, mas também houve o sul. O sul no sofá da minha casa. Um retrato bonito que ficou: eu, francisco, isabela, gabriel e manuel.

Ainda houve uma casa, em Afife, para a passagem do século. Éramos muitos, já com filhos, a rebentar outros filhos (como eu!), a celebrar a alegria e o tempo.

Sempre tivemos esta espécie de felicidade de ter usado e abusado do tempo, da felicidade, do amor e do mundo. Sempre o soubemos, e sabemos, faze-lo juntos. Sempre celebramos dezembro, o inverno e a primavera juntas.


E sempre foi invariavelmente assim, durante muitos anos, o 26 de Dezembro. Viana – Porto no primeiro comboio da manhã.

4 Comments:

At 1:32 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Mudei «Salamanca» por «Valladolid»... para ser certeiro, se me lembro. o resto está perfeito! Que saudades!

 
At 11:38 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

as vidas que já vvemos, se não as visse aqui escrita quase duvidava delas.

 
At 12:04 da tarde, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

sei que aí em Stª Apolónia não se ouve a música da carruagem-bar, mas, pelo teu post, entrou uma nova, os U2: o fogo inesquecível

 
At 12:46 da manhã, Blogger francisco carvalho said...

Belas memórias. Tão tuas. Tatuadas.
Na flor do tempo.

Beijos, h.
E obrigado.


(e a palavra que me obrigam aqui abaixo a escrever é , curiosamente, "sylen"...)

;)

 

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