desfazer as malas
"(...) Era a voz antiga das mulheres, no tempo da minha infância. Chamavam-me para acender o lume. Cumpriam um preceito de antigamente: apenas um homem podia iniciar o fogo. As mulheres tinham a tarefa da água. E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago.
A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer. (...)"
(Mia Couto, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Caminho 2002)
pela mão da minha mãe, uma descoberta destas férias: uma escrita fascinante e deliciosa que reinventa a nossa língua e à qual voltarei certamente.
5 Comments:
Logo mais levas um post sobre o acordo ortográfico. Os Mias e os Agualusas e todo o Brasil merecem que reconheçamos outras formas de falar e escrever. Logo mais...
e por falar no Agualusa, quem é o Agostinho Neto?
Menina, é ironia?
Se não é: Presidente do MPLA na Guerra Colonial e de Angola após a Independência!
Olá aos dois, falta actualizar o tempo verbal: Agostinho Neto foi, ou, se preferirem, já era. Poeta é que eu não sabia que tinha sido. Abraços
era ironia, sim. desse A Neto eu tinha ouvido falar (vivi ao lado de vizinhos que estavam em Angola e vinham "à metrópole" nas férias e da minha altura de criança ouvia esses nomes todos: MPLA, FNLA, Unita e respectivos galos). só queria saber se alguém conheceu um A Neto poeta leproso, digo glorioso.
agora pergunto eu: sabes tu a que me refiro?
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