FILHOS DE UM DEUS MAIOR
Filhos de uma mãe primária. Professora primária. Ensinou-me com mãos primárias a educação das minhas para a escrita. Por isso primário, para mim, sempre foi um substantivo maior. Porque nela percebeu cedo que a mão esquerda não era de contrariar. Era com ela que eu desenhava as letras mais redondas e assim ficou a escolha.
Depois o primário. Livro escolar. Prova em folha de 25 linhas com dobra à esquerda (que me contrariava a mão, a mãe não!) com desenho a lápis de cera no pouquito do cabeçalho - recorrente a mesma imagem, uma casa com duas janelas e uma porta grande, fumo a sair pela chaminé e um sol, alegre, no canto superior direito. À direita dava jeito desenhar, mão esquerda e muitos pássaros, que pensava serem cotovias-. Contas de somar e subtrair. Tabuada. Contas de multiplicar e dividir. Globo. Cognomes dos reis, heróis e façanhas. Opas permanentes sobre Espanhas, plural magestático. Depois tempo de fracções. Alfabetos em madeira. Lousa e ponteiro. Pau de giz, pó de giz. Quadro negro. Medo de ir ao quadro. Cana-da-índia importada das colónias para os ombros e cabeça. Régua, esquadro, compasso. A cruz de Cristo, marca “JNRJ” e o a preto e branco Salazar. Chiuuuu… boca calada! Mapas. Ainda toda a África. Mapas onde com dedos Braille líamos os rios e os comboios.
- Diz lá o rio Tejo?
- O Tejo nasce na serra de Albarracín em Espanha, entra em Portugal por…
- Diz lá a linha do Minho?
- A linha do Minho começa em… e acaba em. Importante era decorar que em Caminha havia um ramal para Espanha. Ninguém sabia onde era o território do inimigo. E muitos nunca tiveram o prazer de uma viagem de comboio.
Lembrar também o avô primário, que moldado pelo método do decorar para o aprovisionamento da sabedoria, sobre história, perguntava aos alunos:
- Diz lá o “andando”!
E o aluno respondia com a cantilena sabida, não eram repentistas, mas bons declamadores de arte decorada:
- “Andando” D. Afonso Henriques na guerra contra os mouros… (acabando em D. Manuel II e na Iª República, em cinco minutos ansiosos de guerras, discussão da linha das fronteiras, casamentos e baptizados, África, América e as Índias, filhos bastardos e a Igreja, Cerejeira em música de câmara ao fundo e proibida a palavra Olivença).
Ao fundo da sala, como um relicário, o armário de boa madeira das colónias, onde permaneciam aprisionadas todas as figuras geométricas. Quando se abria era um espanto. Fiquei também aprisionado para sempre à esfera e ao cilindro.
Filhos de um Deus Maior. O meu chama-se Beatriz e ainda hoje me corrige o acento e a vírgula sem prontuário ortográfico. E a educação, claro!
As vossas primárias têm também nomes bonitos. Cuidem delas e não discutam as emendas. Discutam apenas as ementas. Morrerá nelas uma infinita sabedoria que infelizmente neste país de mais ministros que educação nunca ninguém conseguiu aproveitar depois da reforma para serem ainda úteis a tanta ignorância. Mal pagos enquanto activos para as benfeitorias que deixaram. Mal aproveitados enquanto reformados para a sabedoria que reservam. Essa era a reforma que mereciam. Educativa. Aproveito eu, à borla, a reserva da mãe Beatriz! Aproveitem as vossas reservas, filhos de um deus MAIOR.
2 Comments:
não me tinha apercebido sermos os 3 filhos dessa espécie de deusas. ah, obrigada por esta viagem ao doce imaginário dessa escola: e os tinteiros? e a balança com os pesos alinhadinhos por ordem crescente? e as fotos de cada lado da cruz?
eu tinha áfrica como terra. começava mais cedo a educação, numa pré primária integradora. era quente. ia , sózinha, para a escola numa pasteleira grande. 2 kms desde casa. mas do que lembro melhor foi o primeiro castigo: ninguém me informou e perante o exercício de copiar o "a" do quadro de ardósia, eu acabei logo o caderno... ninguém me dissera que não era para copiar um "a" gigante por folha. Foi o que fiz. Apreendi assim que as letras se alinham da direita para a esquerda e por linha, que às letras não é permitido o espaço todo de uma página de caderno...
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