De vez em quando aparece a Guida Geraldes a trazer-me coisas assim... neste caso, uma comemoração da Primavera que chega e duas irmãs que a vão ver para o Sul da Austrália.
Na ilha Lenox há uma árvore. Uma. Indivisível, vertical, pertinaz na sua terrível solidão de farol inútil e verde, entre a bruma de dois oceanos.
É um alerce já centenário e o único sobrevivente de um pequeno bosque derrubado pelos ventos austrais, pelas tempestades que tornam risível a ideia cristã do Inferno, pela implacável gadanha de gelo que ceifa o Sul do mundo.
Como chegou a este lugar reservado de vento? Segundo os ilhéus de Darwin ou de Picton, transportado no ventre de alguma abetarda como semente germinada e emigrante. Assim chegou, chegaram, abriram caminho entre as fendas da rocha, mergulharam as raízes e ergueram-se com uma verticalidade rebelde.
Entre vinte alerces ou mais, dizem os velhos das ilhas, que não tem metade dos anos da árvore sobrevivente nem estão há muito nesse mundo de onde o vento e o frio sussurram “vai-te daqui, salva-te da loucura”.
Foram caindo uma atrás da outra com a lógica das maldições marinhas. Quando o vento polar dobrou a primeira e o seu tronco se partiu com um ruído terrível que só se ouvirá novamente – dizem os mapuches – no dia em que se partir a espinha do mundo, começou a condenação da última árvore da ilha. Mas o camarada ruído tinha nos seus ramos o vigor de todos os ventos sofridos, de todos os gelos suportados e a sua memória vegetal foi sustento dos outros.
Assim tornaram-se fortes, continuaram o desafio de tocar o céu da Patagónia com os seus ramos, e assim foram caindo, um atrás do outro de uma forma definitiva. Sem se vergarem em agonias vergonhosas, bateram da copa ás raízes contra as rochas e aos ventos imoladores disseram: “caí, é verdade, mas assim morre um gigante”.
Uma permaneceu na ilha. A árvore. O Alerce que mal se vislumbra ao navegar pelo estreito. Rodeada por mortos que são seus, impregnada de memória, temporariamente a salvo dos lenhadores porque a sua solidão não compensa o esforço de atracar um navio e de subir pelas rochas escarpadas para a derrubar.
E cresce. E espera.
Na estepe polar, outros ventos afiam a gadanha de gelo que há-de aportar à ilha, e inexoravelmente, lhe há-de morder o tronco. Quando chegar o seu dia, com ela morrerão definitivamente os mortos da sua memória.
Mas enquanto espera o fim inevitável, continua vertical sobre a ilha, altiva, orgulhosa, como o estandarte necessário da dignidade do Sul.
Sepúlveda, Luís, A árvore
Na ilha Lenox há uma árvore. Uma. Indivisível, vertical, pertinaz na sua terrível solidão de farol inútil e verde, entre a bruma de dois oceanos.
É um alerce já centenário e o único sobrevivente de um pequeno bosque derrubado pelos ventos austrais, pelas tempestades que tornam risível a ideia cristã do Inferno, pela implacável gadanha de gelo que ceifa o Sul do mundo.
Como chegou a este lugar reservado de vento? Segundo os ilhéus de Darwin ou de Picton, transportado no ventre de alguma abetarda como semente germinada e emigrante. Assim chegou, chegaram, abriram caminho entre as fendas da rocha, mergulharam as raízes e ergueram-se com uma verticalidade rebelde.
Entre vinte alerces ou mais, dizem os velhos das ilhas, que não tem metade dos anos da árvore sobrevivente nem estão há muito nesse mundo de onde o vento e o frio sussurram “vai-te daqui, salva-te da loucura”.
Foram caindo uma atrás da outra com a lógica das maldições marinhas. Quando o vento polar dobrou a primeira e o seu tronco se partiu com um ruído terrível que só se ouvirá novamente – dizem os mapuches – no dia em que se partir a espinha do mundo, começou a condenação da última árvore da ilha. Mas o camarada ruído tinha nos seus ramos o vigor de todos os ventos sofridos, de todos os gelos suportados e a sua memória vegetal foi sustento dos outros.
Assim tornaram-se fortes, continuaram o desafio de tocar o céu da Patagónia com os seus ramos, e assim foram caindo, um atrás do outro de uma forma definitiva. Sem se vergarem em agonias vergonhosas, bateram da copa ás raízes contra as rochas e aos ventos imoladores disseram: “caí, é verdade, mas assim morre um gigante”.
Uma permaneceu na ilha. A árvore. O Alerce que mal se vislumbra ao navegar pelo estreito. Rodeada por mortos que são seus, impregnada de memória, temporariamente a salvo dos lenhadores porque a sua solidão não compensa o esforço de atracar um navio e de subir pelas rochas escarpadas para a derrubar.
E cresce. E espera.
Na estepe polar, outros ventos afiam a gadanha de gelo que há-de aportar à ilha, e inexoravelmente, lhe há-de morder o tronco. Quando chegar o seu dia, com ela morrerão definitivamente os mortos da sua memória.
Mas enquanto espera o fim inevitável, continua vertical sobre a ilha, altiva, orgulhosa, como o estandarte necessário da dignidade do Sul.
Sepúlveda, Luís, A árvore
1 Comments:
que bom bocado de prosa, a dar vontade das férias que aí vêm e dos livros que elas trarão (entre os quais um LS). um beijo meu à GG
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