domingo, fevereiro 17, 2008

uma selva em vez de um país de cristal

é um menino de sete anos e a mãe conta que ele se queixa que lhe dói quando faz xi-xi. peço-lhe que faça um pouco num copinho para uma análise rápida e ele vai sozinho para a casa de banho enquanto a mãe fica à minha frente a arrastar palavras exaustas. não os conheço (é uma urgência de fim-de-semana) mas sinto que talvez seja esta mãe quem está verdadeiramente doente. passado um pouco ela vai juntar-se ao filho. demoram muito. chegam mais pacientes para consulta e eles sem regressarem com o copinho. é frequente as crianças demorarem nisto e decido avisá-los que irei vendo outros pacientes, que me avisem logo que tenham alguma coisa. encontro a mãe de cócoras no chão da casa de banho, aos gritos “eu não aguento mais”, o menino atónito e assustado, sentado na sanita em frente. falo devagar e baixinho, que espero por eles, que levem o seu tempo, que bebam um pouco de água, que compreendo o rapaz, nem sempre se consegue quando se quer.

duas consultas depois vêm de copo quase cheio. a mãe pede desculpa pela cena de há pouco, mas é que se sente tão cansada que acha que não aguenta: "o pai sempre fora, os filhos sempre doentes". peço-lhe que não chame doença a isto, que é uma situação banal e se resolve facilmente. depois conta que o menino na escola se recusa a ir ao wc. e o que é que se passa nos wc da escola para o menino ter medo de lá ir? sabemos que esses são frequentemente sítios de violência contra o mais pequenos. e ela conta, que sim, que lhe amarraram o filho, o vendaram e lhe raparam o cabelo. e que foi à escola e exigiu que se identificassem os alunos responsáveis mas foi avisada que os respectivos pais nunca compareceriam; que falou ela própria com a mãe de um deles e que teve de ser salva por outras mães pois ia sendo também agredida. que se juntou a outros pais, falaram aos responsáveis da escola e fizeram colóquios sobre o bullying, mas que a violência continuava. alguns dias atrás uma aluna do 6º ano tinha precisado de socorro hospitalar depois de ser violentamente agredida.

as palavras saem-lhe cada vez mais exaustas mas quando a olho vejo uma mulher como eu – o mesmo instinto de protecção das crias, a mesma força, a mesma fragilidade – só que sem o dinheiro necessário a escolher uma escola para os seus filhos. e de como isto pode ser a diferença entre um país de cristal e uma selva.

quando diz que este filho é o mais novo e que com a mais velha foi um pouco mais fácil porque ela se sabia defender, e este não, “deixa-se ficar”, nesse momento começa o rapaz a falar “deixo-me ficar? Mas eu agora tenho uns paus e bato nos meninos todos”. e a mãe confirma que agora até já foi chamada porque o filho começou ele próprio a bater. mas aqui o menino já não a deixa falar e conta da pedra que arremessou, muito maior do que a lhe atiraram a ele; e dos vários paus de que dispõe e de como engana as empregadas para entrar pela janela no wc delas, mais seguro. e de como atirou um dos maus a abaixo de uma árvore. e não pára de falar enquanto a mãe se despede e o leva para fora do consultório.

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5 Comments:

At 12:57 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Que mundos estes que assustam!

 
At 9:43 da tarde, Blogger Cristina Gomes da Silva said...

Um país real, Mónica. Por muito que nos doa. Abçs

 
At 5:35 da tarde, Blogger  said...

Isto é muito sério e dá que pensar.
O teu relato é perfeito e comovente pelo paradoxo de contar uma história assim tão assustadora, desesperante e traumática de uma forma tão bela e objectiva.
Pergunto-me se alguns relatos dos nossos pais sobre o que se passava na nossa infância e adolescência não seriam tão aterradores - de apocalíptico em relação às normas estabelecidas - quanto este.
Seriam? Ou a violência actual na escola e entre os jovens é tão mais intensa, brutal e presente que não se pode comparar à que vivemos nessa época?
Obrigado, Mónica, pelo sinal e retrato do nosso mundo. Alerta. Alerta.

 
At 7:36 da tarde, Blogger Luís said...

Um pesadelo, Mónica.E que fazer?

 
At 11:22 da tarde, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

Jó: lançaste uma réstea de luz nessa hipótese de nada disto ser novo (ainda assim será sempre excessivo mesmo que para uma só criança em cada geração).

luís, não sei. não consegui, na escola dos meus filhos, ser parte da solução e, depois de algumas tentativas, simplesmente (temos a imensa felicidade de assim poder decidir) mudei-os de escola. na escola nova a solução parece-me fácil: todos os professores e funcionários partilham com os alunos o recreio e os corredores da escola, todos se conhecem uns aos outros, existem várias actividades não lectivas transversais aos vários anos que criam um espírito de pertença, etc etc etc.

 

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