A memória do frio
Ao contrário do calor, o frio diferencia-se e deixa memória. Há calores incómodos, mais ou menos agradáveis, mas no entanto indistintos. Do frio, consigo lembrar frios belos.
O frio das caminhadas na Serra da Estrela. O frio misturado de assombro e asfalto da estrada, de uivos indistintos de cães e sombras de luar, de confidências e conversas sussurradas, de hipóteses de amor ou dor… andar a pé noite dentro, até amanhecer na Torre, com o frio a gear na bermas das estradas. Frio intenso de felicidade e arrepio.
O frio das férias de Dezembro. A casa grande das Preces, a água fria dos banhos, as conversas no autocarro de carreira que pernoitava junto ao santuário e onde nos escondíamos para conversas de apreender a vida e tentar o amor … o frio do caminho até à Aldeia das Dez, feito devagar, para chegar ao café e telefonar para casa. O frio das saídas solitárias até ao coreto para chorar o nó do que dói, porque crescer não é mais do que doer em dores diferentes.
Os outros Dezembros, também frios, no chão da casa de Tábuas, Miranda do Corvo. Dormíamos todos no chão, juntos no jeito de não perder o calor que os corpos e a cumplicidade exalam pelas frinchas do soalho. Tão frio o frio, que bastava guardar (o David!) atrás da portada da janela da capela para que a Macieira e o gin se mantivessem prontos a consumir no queimar das noites em que até a voz falhava o eco na serra. Como tocavam os dedos na viola, não sei hoje… mas tocavam e creio que alguns o tentaram de luvas calçadas. As páginas do “Livro em Branco” do Eugénio de Andrade estão colados a esses dias, com cheiro a laranjeira sem saber porquê. Acho que nunca mais encontrei um frio que me trouxesse Eugénio pousado nas mãos.
O frio do primeiro comboio da manhã que me levava, pela linha do Minho, até ao Porto e depois do rio, até Francelos. O mar na espera do acordar dos amigos. O mar azulmente frio.
O frio do retorno das passagens de ano na Galiza. Só mulheres num carro vermelho. Parar em Vila Praia de Âncora e procurar a padaria para a primeira fornada de pão.
O frio de acordar cedo para partir em viagem. Estremunhado e amarrotado frio, esse arrancado da cama. Um frio com mistura de sono, expectativa e entusiasmo. Desenhar com o dedo no orvalho do vidro enquanto o carro aquece em início de rodagem. O frio de partir como que a fugir do lugar. As casas e as ruas vazias dentro das horas madrugadoras. As viagens de família coladas ao frio das manhãs de partir.
O frio dos lençóis brancos da cama da casa da avó nas noites de inverno. O colchão de folhelho, a botija de água quente para os pés, o corpo a aquecer o espaço mínimo de caber na cama de lençóis brancos e o arrepio de um pouco ao lado se gelar. O frio de Viana é frio de ir ao osso e é para mim, único. Havia depois o frio da botija quando, pela manhã, nelas pousávamos os pés incautos.
O que me ficará na memória deste frio, que ainda não aconteceu ?
O frio das caminhadas na Serra da Estrela. O frio misturado de assombro e asfalto da estrada, de uivos indistintos de cães e sombras de luar, de confidências e conversas sussurradas, de hipóteses de amor ou dor… andar a pé noite dentro, até amanhecer na Torre, com o frio a gear na bermas das estradas. Frio intenso de felicidade e arrepio.
O frio das férias de Dezembro. A casa grande das Preces, a água fria dos banhos, as conversas no autocarro de carreira que pernoitava junto ao santuário e onde nos escondíamos para conversas de apreender a vida e tentar o amor … o frio do caminho até à Aldeia das Dez, feito devagar, para chegar ao café e telefonar para casa. O frio das saídas solitárias até ao coreto para chorar o nó do que dói, porque crescer não é mais do que doer em dores diferentes.
Os outros Dezembros, também frios, no chão da casa de Tábuas, Miranda do Corvo. Dormíamos todos no chão, juntos no jeito de não perder o calor que os corpos e a cumplicidade exalam pelas frinchas do soalho. Tão frio o frio, que bastava guardar (o David!) atrás da portada da janela da capela para que a Macieira e o gin se mantivessem prontos a consumir no queimar das noites em que até a voz falhava o eco na serra. Como tocavam os dedos na viola, não sei hoje… mas tocavam e creio que alguns o tentaram de luvas calçadas. As páginas do “Livro em Branco” do Eugénio de Andrade estão colados a esses dias, com cheiro a laranjeira sem saber porquê. Acho que nunca mais encontrei um frio que me trouxesse Eugénio pousado nas mãos.
O frio do primeiro comboio da manhã que me levava, pela linha do Minho, até ao Porto e depois do rio, até Francelos. O mar na espera do acordar dos amigos. O mar azulmente frio.
O frio do retorno das passagens de ano na Galiza. Só mulheres num carro vermelho. Parar em Vila Praia de Âncora e procurar a padaria para a primeira fornada de pão.
O frio de acordar cedo para partir em viagem. Estremunhado e amarrotado frio, esse arrancado da cama. Um frio com mistura de sono, expectativa e entusiasmo. Desenhar com o dedo no orvalho do vidro enquanto o carro aquece em início de rodagem. O frio de partir como que a fugir do lugar. As casas e as ruas vazias dentro das horas madrugadoras. As viagens de família coladas ao frio das manhãs de partir.
O frio dos lençóis brancos da cama da casa da avó nas noites de inverno. O colchão de folhelho, a botija de água quente para os pés, o corpo a aquecer o espaço mínimo de caber na cama de lençóis brancos e o arrepio de um pouco ao lado se gelar. O frio de Viana é frio de ir ao osso e é para mim, único. Havia depois o frio da botija quando, pela manhã, nelas pousávamos os pés incautos.
O que me ficará na memória deste frio, que ainda não aconteceu ?
6 Comments:
estava a ler-te e a julgar que ias falar de ainda um outro frio: o das manhãs muito cedo na outra margem, ainda escuro vir de cacilheiro a tempo de ver amanhecer Lisboa. lembras-te que fizz contigo esse percurso alguns dias? tu ias às aulas e eu ficava a andar por ali na 24 de Julho.
são tantos, afinal... talvez esse, de tão repetido virou usado...
Que bom lembrares-nos desse bom frio. Como diz um amigo meu, «até corta!». Até sou capaz de ir beber uma macieira...
é certo a vida ter uma "banda sonora". tu descobres que, afinal, também há uma "banda de temperatura", como de certeza há uma banda de cor...
estes frios, contados por ti, e contigo, são lembranças quentes!
p.s. - pois. tou aqui, tou a ir beber uma macieira com o david...
queres, também?
Tão bonito este texto, Helena. Tão teu.
Mas de ti eu não tenho memórias do frio.
beijo grande.
cheguei tarde ao frio das Preces,
mas a alguns frios, antes tarde
Só tu para te lembrares dessas quentes temperaturas assim
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