sexta-feira, dezembro 29, 2006

morituri te salutant


Nem sei como contar. Há uma capela na Redinha que abre as portadas apenas para prenúncios de morte, ali ao pé da sede onde trabalho.
No fim de tarde, a caminho do copo suave na Ti Gracinda, ouvimos um silvo agudo, daqueles a que tens de obedecer como pássaro enganado pelo falso diálogo de amores de suposta fêmea, assobio de caçador furtivo.
Estacionada, uma carrinha mortuária. Dentro um caixão. Dentro um corpo de mulher. Não havia família por perto, apenas um homem velho, de pé, com encomenda de corpo morto para encomendar.
«Ajudem aqui!», disse o velho solista do silvo. Ajudámos. E transportámos da carrinha mortuária a caixa negra da viagem na medida do esforço de braços, o corpo feminino escondido para a ara iluminada.
Morta estava. Não lhe vimos o rosto. Não lhe ouvimos o nome. Morta ficou uma noite sem padre no frio previsível da capela, encomenda de alma adiada, até que ao outro dia, pela manhã, a terra lhe conferisse a senha do céu.
Mais tarde, na tasca da Ti Gracinda, ouvimos do longe um obrigado, silvo lento. Não foi da família nem do discurso da homilia nem dos homens indisponíveis da confraria. Foi dela um obrigado sereno. Ouvimos «morituri te salutant» como quem fala para uma nova família. Furtivo ouvido atento.
Por isso é que quero ser um dia cremado. À pressa, pronto, cromado. Sem tempo para assobios de solista que chame alguém, padres à toa, interrompendo um copo para amealhar quem me carregue, homens como nós que o fizemos na boa.

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