quinta-feira, setembro 07, 2006

ando assim, fascinada

"Aí se acolheriam, a princípio como dois animais em que as feridas cicatrizam ao contacto com o sol, o ar seco ou húmido que repousa nas colinas de uma montanha ou até de uma falésia sobre o mar. E receber a família durante uma semana, em férias. E escrever cartas, ler paperbacks ingleses, fazer sestas em pinhais, ter saudades e poder satisfazê-las. Compraria os instrumentos para pescar no rio, mesmo sem haver peixes. Ganharia hábitos, cultivaria horários, ritmos, adivinharia o tempo da geada. Um lugar assim, perverso e inocente, obscuro e doce, leve, onde chegasse o som das tragédias e dos muros que se abatem, a luz do amanhecer, jogos de futebol ao domingo, domingo sim domingo não, seria sócio do clube da terra, beberia uma cerveja vulgar, qualquer uma, comeria tremoços, iria a funerais, seriam convidados para casamentos, compraria um fogareiro a carvão para cozinhar ao sábado, teria um médico fixo, apenas um, vida simples, sem nome, sem itinerários, iria aos miradouros mais próximos, estudaria fotografia, talvez viesse a ter filhos a quem ensinaria pouco e gostaria que eles brincassem na terra de um jardim ou na beira de um rio, e quereria que eles fossem felizes. E gostaria, afinal, que Isabel viesse com ele, não porque fosse absolutamente necessário, evidentemente, mas porque se deve eleger uma companhia, um corpo, um cheiro, uma maneira certa de comer connosco à mesa, de arrumar a roupa nas gavetas e os livros nas estantes."

Francisco José Viegas in Morte no Estádio (ASA, 2002)

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3 Comments:

At 12:20 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Ai tantos sítios que tenho assim, muitos, felizmente, onde passo imensos dias. Já falo sobre isso.

 
At 9:56 da manhã, Blogger Gabbiano said...

Até eu, que sou do asfalto, que curo as alergias que tenho ao excesso de natureza com o nariz enfiado nos tubos de escape, que durmo como um anjo ao som das sirenes e amaldiçoo os pássaros que me acordam de madrugada - até eu fiquei com vontade. Pelo menos, de ler o resto...

 
At 10:20 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

o meu fascínio vem muito de eu ser também assim - do asfalto e da máquina - e, no entanto, subitamente sentir-me incluída na nostalgia desta vida que nunca foi a minha - nem a de quem escreve, repara no condicional "aí se acoleriam"

 

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