sexta-feira, março 24, 2006

eu estar aqui à tua espera


"Havia um revólver sobre a onda, uma jarra sobre a cinza, um espaço vazio sobre as mãos e a memória de candeeiros matinais, os que foram visitados pelas andorinhas na quinta estação do ano. Entretanto, tudo se desencadeava, helicópteros poisavam nos teus cabelos (alguém disse que era assim que se levantava o vento), partiam barcos carregados de bilhetes-postais, um nadador da Mancha morria afogado numa gota de água doce, despertava em nós este rumor de conchas envergonhadas, esquecidas como cotão no bolso das calças. E de cada vez que um homem caía, morto ou cansado, tu falavas da onda sobre o revólver, limpavas a cinza da jarra e modelavas a noite que faltava aos candeeiros. Alguém falou de tristeza, os poetas brasileiros vieram muito devagar (Manuel Bandeira giróflé, Drummond de Andrade giróflá, Cecília giróflé, flé, flá) e quando nasceu a madrugada a praia estava no mesmo sítio, simplesmente a areia era lilás, porque a tua cor é ser lilás dentro das coisas, tão natural como o estrondo dos canhões, as crianças tactearem palavras e Maio emaranhar-se de flores, tão natural como as pedras tropeçarem nas pessoas, o revólver matar a onda e eu estar aqui à tua espera como um cego espera os olhos que encomendou pelo correio."

(Dinis Machado, O que diz Molero)
(andávamos todos a ver se conseguíamos resistir a trazer à linha o livro fétiche dos ferroviários)

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2 Comments:

At 12:07 da manhã, Blogger David (em Coimbra B) said...

Que inveja! Eu tenho metido Molero aos poucos, nunca assim decisivo. Chamaria agora o Sparrow para se bater contigo num duelo de florete. Infelizmente sabes a história a pág. 135:
"... ah grandes filhos da puta que me mataram e eu não tinha nada a ver com isto."

 
At 12:20 da manhã, Blogger Mónica (em Campanhã) said...

caramba, que saudades terei sempre de reler Molero.

 

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