segunda-feira, maio 01, 2017

de que é feito um homem? II


«Tudo nos escapa, e todos, e nós mesmos. A vida do meu pai é-me mais desconhecida que a de Adriano. A minha própria existência, se eu quisesse escrevê-la, seria reconstruída, por mim, de fora, penosamente, como a de outra pessoa; teria de recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar essas flutuantes memórias. Nunca são mais que paredes desmoronadas, divisórias de sombra. Conseguir que as lacunas dos nossos textos, no que se refere à vida de Adriano, coincidam com o que teriam sido os seus próprios esquecimentos.

(…) Interdizer a si mesmo as sombras projectadas; não permitir que o bafo de um hálito se estenda sobre o aço do espelho; aproveitar somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contacto com aqueles homens que como nós trincaram azeitonas, beberam vinho, besuntaram os dedos de mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no Verão a sombra de um plátano, e gozaram, e envelheceram, e morreram.

(…) Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que se não compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas sim de três linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que um homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi.»


(Marguerite Youcernar, in Memórias de Adriano)

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