de que é feito um homem? II
«Tudo nos escapa, e todos, e nós mesmos. A vida do meu pai
é-me mais desconhecida que a de Adriano. A minha própria existência, se eu
quisesse escrevê-la, seria reconstruída, por mim, de fora, penosamente, como a
de outra pessoa; teria de recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar
essas flutuantes memórias. Nunca são mais que paredes desmoronadas, divisórias
de sombra. Conseguir que as lacunas dos nossos textos, no que se refere à vida
de Adriano, coincidam com o que teriam sido os seus próprios esquecimentos.
(…) Interdizer a si mesmo as sombras projectadas; não
permitir que o bafo de um hálito se estenda sobre o aço do espelho; aproveitar
somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos
sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contacto com aqueles
homens que como nós trincaram azeitonas, beberam vinho, besuntaram os dedos de
mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no Verão
a sombra de um plátano, e gozaram, e envelheceram, e morreram.
(…) Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que
se não compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas
sim de três linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente
aproximadas e divergindo sem cessar: o que um homem julgou ser, o que ele quis
ser e o que ele foi.»
(Marguerite Youcernar, in Memórias de Adriano)
Etiquetas: escrita, Marguerite Yourcenar, os outros
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