sexta-feira, março 30, 2007

Caixa de correio

© Condeixa - Sicó - 2007
Foi um depósito de palavras que tiveram o seu tempo. A maior analfabeta da serra, depois do baile da eira e presa a um amor de verão do tempo das espigas, conseguiu num envelope juntar três palavras com assinatura:
«Amo-te, Abel. Rosa.»

Colou selo para o estrangeiro com a cola dos lábios do último beijo e lá deixou o desejo.

Foi a última que daqui o carteiro levou.
Palavras gastas com a corrosão dos dias nas suas futuras indecisas vidas, bilhete de jogo, jogando poesia e sabores, aqui amores, coisas que só o coração descodifica como os segredos dos eremitas.

A caixa fica para memória. A mesma memória da Rosa do rosto franco de Abel, que nunca mais apareceu no baile das espigas.

férias



"Sigo para o sul, que é para onde correm todos os rios, pelo menos os meus"

(Eugénio de Andrade, Memória Doutro Rio)

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quinta-feira, março 29, 2007

o conhecimento

uma exposição singular, que envolve devagar quem começa a olhar e nos dá por instantes uma noção da imensidão que é, que tem sido, o conhecimento.

vamos olhando fieiras de prateleiras: pedras, fósseis, plantas laboriosamente desenhadas e esquematizadas, dezenas de escaravelhos e borboletas seriados, animais embalsamados (pequenos pássaros, grandes depois, morcegos, símios), peças humanas conservadas em formol (que reconheci dos meus tempos de anatomia), instrumentos, máquinas, bolas, peças de arte e, no fim, teses de doutoramento.

olhamos tudo e dá-nos quase uma vertigem: imaginar todas as pessoas que recolheram, organizaram, pensaram e assim conheceram tudo o que existe.

"Depósito - Anotações sobre densidade e conhecimento" é uma exposição comissariada por Paulo Cunha e Silva que nos tem habituado a esta sua mania de conseguir misturar a arte com a vida das pessoas.

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MEC no seu melhor

"(...) São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade. (...)"

(excerto de uma daquelas argumentações apaixonadas de Miguel Esteves Cardoso, desta feita sobre o Norte)

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Portugal às postas


Pega-o pelo lombo, a mão entre Coimbra e Viseu, o bisturi na mão de um bispo e deixa-o cortar às postas. Três postas longitudinais de Norte para Sul. A posta Braga-Setúbal da indústria e do povoléu. A posta Vinhais-Faro dos indecisos. A posta Chaves-Vila Real de Sto António da raia hispânica. Depois amanha-o. O mármore do Alentejo. O volfrâmio da Raia. O calcário do maciço estremenho. O arazil da Gândara. As espinhas de peixe da zona económica exclusiva, o bom pedaço, crustáceo, de lagosta «off-shore» da Madeira e a massa de hóstias dos Açores. Olha-o do céu. Centenas de aviões indecisos para poisar entre a OTA e Rio Frio. Opera-lhe a cabeça. Vísceras de Camões, Pessoa, Salazar e escamas de miolo PALOP. Esquece o PREC, Cunhal versus Soares. Reza-o. Põe uma coroa de flores na Fátima dos pastorinhos. Sabe da sua política. Vê o livro de faltas da Assembleia da República por serviço externo e estuda a cabeça do Otelo. Apresenta na data prevista a tua declaração de rendimentos. Mete à vontade despesas de farmácia, Portugal doente. Corta-lhe o rabo «ALLGARVE» e vendo-o aos ingleses. Aprecia os ferrarrrrrrrrris do Vale do Ave e aplaudi-os nas outras estradas do rally de Portugal. Inscreve-te na Universidade Independente e compra a troco de uma posta de diamante um curso de filosofia, mesmo que nunca saibas quem foi Camus e o Mito de Sísifo. Emprenha a mulher-a-dias e obriga-a a tomar a pílula do dia seguinte, porque não gostas do rigor do preservativo. Telefona para Bruxelas e pede dinheiro para os próximos compromissos. Leva os meninos à missa e fica cá fora a beber branco com pevides e tremoços. Joga à lerpa e compra um cativo num dos muitos estádios do EURO 2004. Vai ao centro comercial, veste o fato-de-treino, não corras que morres, bebe um favaíto e defuma um ventil, compra, leva cheiro barato para o sovaco, cheio o carrinho para satisfazer a sogra, desvia os olhos da tua mulher das prateleiras e os teus do busto saltitante da miúda da caixa. Deste uma estalada no miúdo porque chorou pelo chupa? Fizeste bem. Isso é educação ao nível do teu 8º ano abandonado. Leva a família à praia e apinha-a debaixo do chapéu onde na cadeirinha sem compromisso tentas acabar as palavras cruzadas. Queres uma deixa? Porco com duas letras, António? «Tó!», meu burro! Reclama por um SAP. És doente de proximidade. Não queres é tribunal perto, não te dá ao jeito, jogo que perderias sempre. Compra uma Moleskine e aponta a tua história neste Portugal. Aponta a tua vida. Põe-lhe pelo meio um verso do país de poetas e dedica-o à secretária que levas a almoçar no seu dia de anos, prometendo que te vais divorciar. E já agora, dorme nu como Portugal se encontra e esconde na gaveta o pijama às postas azuis e brancas. Liga o aquecimento do gás natural da Argélia, enquanto a mulher rectifica o cromado para a manhã seguinte. Coisas de espelho, postas de intimidade apenas. E, quando te chateares com tudo isto, volta ao útero da tua mãe, começa de novo e inscreve-te, logo cedo, branco no preto, nas aulas de Portugal do António Barreto.

terça-feira, março 27, 2007

o retrato de Portugal

tropecei na televisão com o retrato de Portugal de António Barreto: eu reconheci aquele país pobre, de pés descalços, fascista, rural, infectado, esfaimado... é o país da minha infância e lembro-me de tantas dessas coisas: da cólera quando andava na primária, da roupa que usavam as minhas colegas desses anos, dos penteados da minha mãe - irremediavelmente parecida com todas a mulheres bonitas que apareciam naqueles filmes dos anos 60 -, da fotografia do Américo Tomaz na sala de aula.

fiquei a ver até ao fim, de pé no meio da sala, a meio de ir fazer outra coisa qualquer e sempre à espera de ver a seguir passar algum dos nossos amigos, a roullotte em que seguíamos de férias ou o NSU da família.

no fim fiquei adoentada com este retrato: nostálgica (não do que havia ou deixava de haver, mas do tempo que passa para sempre); incomodada, isso sim, com alguns caminhos que percorremos. porque como dizia AB, nem sempre se muda para melhor. nem sempre o que é mais seguro e mais limpo e menos pobre nos faz pessoas mais inteiras e mais felizes. e isso é muito complicado de perceber.

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a solução

F, rapaz, 8 anos:
- Tenho 38 anos e sou divorciado.
Eu, mãe:
- Divorciado? E a que propósito?
F:
- Ora, é a única maneira de ter filhos sem ter mulher.

(de livro, este meu filho em plena lactência)

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Christine Garnier



15/SET/1951
Christine Garnier ficou alojada na Pensão Ambrósia, em Santa Comba. Virá todas as manhãs conversar comigo.

19/SET/1951
Continuei a falar para Christine:
O isolamento muito me ajudou, na verdade, a desempenhar a minha tarefa e permitiu, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos e evitar que fosse influenciado ou atingido.

20/SET/1951
Falei verdade à francesinha, mas não disse a verdade toda. A minha vida interior não se reduz a preocupações de ordem intelectual. Comporta frequentemente imagens mais profanas. Imaginar Christine a despir-se, expondo progressivamente o seu corpo elegante e perfumado tornou-se uma das minhas fantasias.

16/NOV/1951
De certo modo, é bom que esteja longe. Posso ver claro.
Tenho sessenta e dois anos. Estou velho ou, pelo menos, vou a caminho disso. Casar com Christine é impensável. Ela ainda nem sequer se divorciou. Nem a maneira de pensar do país nem os meus hábitos arreigados o permitiriam.
Abandonar São Bento e segui-la para França havia de ser uma deserção. E depois, viveríamos de quê? Do que ela ganha? Não está prevista reforma para o meu cargo. A Universidade de Coimbra havia de me dar alguma coisa. Chegaria talvez para nos sustentarmos em Santa Comba, mas não em Paris.
Tudo acabará em breve, mas não me arrependo de nada. Durante toda a vida fui contendo as emoções. Desta vez soltaram-se. Bem haja!

Trabulo, António, O Diário de Salazar

segunda-feira, março 26, 2007

seria este ?...



... por hoje de Salazar se falar e pela leitura do livro “ Amores de Salazar “ da Felícia Cabrita, fui procurar o olhar.

Seria este o olhar de homem que enrola mulher ? ... há homens a quem é difícil perscrutar o amor ou só o devaneio. Há homens a quem é difícil imaginar amantes. Há homens opacos a quem não se antevê o desfazer da cama, o ranger do amor ou só o arrepio da paixão . Salazar era um deles, homem que a história nos ensinou opaco. Mas pelos vistos... nada disso. Um frio arrebatador, um charmoso irresistível, um distante quente. Quantos amores e devaneios fez história esse ditador!!! Felícia conta muitas e a nós compete juntar ao conhecimento amoroso a procura do olhar... seria este ?

Grandes Portugueses?

Acabou o concurso da RTP, «grandes portugueses.» Como já alguém disse ou escreveu, o concurso de hoje foi a única vitória de Salazar numa eleição democrática. Abstenho-me da análise sociológica que motivou tal votação.

Como a democracia nos permite ser livre nas coisas sérias, deixo aos saudosistas do regime o texto do célebre Decreto-Lei nº 27003 de 15 de Setembro de 1936:

«Para admissão a concurso nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: Declaro por minha honra que estou integrado no ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».

Ainda bem que em democracia, A BEM DA NAÇÃO, podemos ser subversivos, passe a má instrução pública que usufruímos e que motiva resultados destes.

Neste tipo de votação será que por uma vez os "velhos" usaram os telemóveis dos filhos, ou...




domingo, março 25, 2007

lugares

playa Baldayo - Galiza
1987

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sexta-feira, março 23, 2007

Tratado de Roma

Correu desde que nasceu. Uma primária rápida sem cadernos, nem arquivos, nem memórias e, sempre em velocidade, fez toda a Europa do trabalho. Fala bem mal várias línguas (por isso um bom português, não de língua, mas de origem), não sabia de Eça da cidade e as serras, não buscou o tempo perdido de Proust, vive em Saint-Germain des Près, alma simples reflectida no Sena e desenrasca-se agora com uma loja de alfarrabista, ali próximo da Catedral de Notre-Dame, no centro de Paris, no centro do seu mundo.

«Joaquim, que tal vai a vida?»
«Desenrasco-me!»
«Queres voltar a Portugal?»
«Não. Fui um comboio rápido com partida e destino. O destino foi Paris. Nenhum comboio volta ao lugar de partida como partiu.»

Se tivesse feito a escola regular do Portugal salazarento, seria hoje talvez um manga-de-alpaca ou, mutilado pela insensibilidade da promoção pública, transformar-se-ia num carimbo. Teria a alcunha, para gozo dos colegas do regime, «está conforme o original.»

Pela oferta rara de raros livros no escaparate, contou que uma empresa francesa lhe pediu o curriculum. Escreveu-o com o velho lápis que guardou quando foi carpinteiro em papel de embrulho:

«Chamo-me Joaquim e sou veloz como um comboio com partida e destino.»

O manga-de-alpaca da empresa francesa deu-lhe entrada, tirou cópia e carimbou:
«está conforme o original.»


ventana de emergência


Ventana é janela de vento, assim quero eu! Como se houvesse um comboio cinzento que perfurasse o vento junto às águas cinzentas. Não sei de onde parte o comboio nem a onde se destina. Vai. Por entre cinzentos fortes e ventos quentes.

Não é preciso saber os pontos que ligam um comboio, é preciso que haja um movimento que corte o vento. Só.

Está feito o comboio e a ventana. A emergência vai comigo na mala, junto ao livro e seguramente ao maço de cigarros. Não se apanha este comboio, está-se nele. Só.

Feita a construção, permito-me ao detalhe. Arrozais, extensos arrozais. Água cinzenta que espera. Passagem do comboio.

Feita a construção e o detalhe, falto eu. Emergência sou eu, ventana é o que procuro. Para pousar no movimento do comboio que atravessa arrozais infindos. Vietname, imagino assim.

Estou encostada à vertigem da água que passa kms à hora. Será assim que encontro a velocidade zero? Dois movimentos à mesma velocidade com sentidos opostos não originam uma velocidade zero? Não interessa a exactidão da física. É assim que quero no comboio do Vietname.

O comboio tem cinco carruagens velhas. Em nenhuma está alguém. Apenas eu encostada ao vidro. De pé com a emergência sentada ao lado. Ambas cobiçamos um cigarro. Dou-lhe a primazia de ser a primeira a fumar. Depois da emergência, fumo eu. Como assim o tempo não acaba, as águas não fogem, o comboio não pára e eu vim fazer vagar. Posso permitir-me à simpatia. Encostada à janela. A focar o olhar.

Atravesso e atravesso-me quieta. Até ao anoitecer. Há mosquitos, muitos mosquitos, imagino eu. Poucas luzes se vislumbram ao fundo dos arrozais. Quantas vezes teremos já passado pelo mesmo ponto? Incertamente, nenhuma. Vento quente. Pele húmida.

Atravesso. Aqui vou eu... pouco certa de mim. Ventana.

quinta-feira, março 22, 2007

Dinis77molero

Dinis Machado, o Eremita das Mãos Frias que ninguém sabia onde se encontrava, lá onde um pequeno rio corria ao contrário, foi encontrado hoje porque fez anos, 77, o ano da 1ª edição de “O Que Diz Molero”, essa bíblia da nossa geração.

Li a entrevista do Público. Fumei cigarrilhas para estar no ambiente. Registei que «há livros que têm a sorte de ser uma espécie de eco de geração. Esse parece que é. Acredito na sorte.»

Agora que parou, as frases continuam a surgir-lhe na mente?

«Aparecem. Estou sempre cheio de frases. Coisas que não têm aplicação. É uma espécie de exercício que eu tenho. E que faço com facilidade e prazer.»

Não adianta buscar no velho livro as palavras que demoraram dois anos a compor. «Escrita muito rasurada, emendando sobre o texto original para aproximar a palavra do sítio onde deve estar.»

Custou-me perceber na entrevista que é um homem quase arrumado num maple, ar doentio, tossindo imenso, quase derrotado, salvando-se já só a lucidez de quem diz que a saúde que lhe resta chega para combater na área que lhe é específica. Um Bowen ou um Burke dos 110 assaltos à espera de um soco de Willard, «daqueles que levam neles o fim de tudo, os socos combinados de tempo, força, certeza e sorte…».

Antes que o último cigarro se lhe apague nos dedos e passe a ser mais uma estrelinha ao pé do Piaçaba ou do Torrão de Alicante, esperemos que entregue à nossa geração o relatório de Octopus, que ele prometeu começar onde Molero acabou.

quarta-feira, março 21, 2007

dicionário khazar

de blog em blog, de post em post, neste ócio precioso que é olhar, ouvir e ler os outros, estabelecendo laços e pontes que refazem o significado das coisas, fui parar outra vez a este livro, de todos o mais improvável e fascinante que já li e que apetecia trazer aqui quase inteiro pois, página a página, é pelo sonho e pelo vento que ele nos leva.

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"as flores nascem do estrume"

dizia Molero, no livro de Dinis Machado que, em prosa, me ensinou a poesia
(dia mundial da poesia)

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é primavera na linha


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segunda-feira, março 19, 2007

19 de março

o livro em que todos os pais se deviam rever:



e etc. é este:


dedicado aos melhores pais do mundo: o meu e o dos meus filhos.

(com uma piscadela de olhos ;) à Isabel MM)

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domingo, março 18, 2007

Dítono Domingo


Com o sol partido nos teus ombros como um ovo, entre a areia e o mar fazes o decalque do caminho. A maré decide da linha de fronteira que atravessas, intermitente. Apanha conchas, mistura os dedos dos pés com os dedos das mãos debruçada nas algas mais verdes (procura como num jogo as da tonalidade dos teus olhos), crava os calcanhares na areia e lixa-lhes as fissuras nesse movimento de pedra-pomes como gostarias de fazer à tua vida. Tira os óculos que te cegam os olhos e o iPod que te surda os ouvidos. Concentra-te nos sons de um búzio e deixa os olhos no barco ao longe que leva, como tu, gente ou peixes esquecidos. Consegues chegar à esplanada do bar onde te esperam? Consegues, mas não queres, porque hoje és Domingo!

os filhos

hoje ouvi, pela enésima vez na vida, a parábola do filho pródigo. mas, de certo modo, esta foi como se fosse a primeira, por ter entendido nela respostas para questões que só agora conheço: os filhos, a sua liberdade de serem eles próprios, de partirem, de viverem as suas vidas, de tudo perderem, de voltarem; e nós, os pais, o nosso amor por eles poder ser esta coisa - incondicional, absolutamente gratuita e profundamente transformadora - de que nos fala a parábola.

e foi o padre que o disse: "como se fosse o primeiro dia do resto da minha vida". era o que me estava a acontecer.

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o meu tranquilizante

o que tem sobre mim um efeito tranquilizante poderoso? meter os filhos no banho e depois dar-lhes uma sopa, no final de um dia passado a brincar na terra e a comer batatas fritas.

é instintivo, não sei se maternal, se cultural.

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os quarenta III - versão musical

"what a drag it is getting old"
(fazer este coro com Mick Jagger aos 40 anos não tem nadinha a ver com o que que era aos 15)


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sexta-feira, março 16, 2007

leitura de testamento


Deixou-lhe os seus braços que lhe deixou em dois abraços.
Deixou-lhe os seus lenços que lhe deixou bordados dos vossos beijos.

E a camisa que lhe deixou e não lhe foi precisa.
E um gosto a sal que lhe deixou com que temperava a salada.
E esse deixei-te ir no tempo em que era apenas a sua enamorada.

E deixou-lhe a frase:
«come a salada e limpa os lábios com os nossos lenços
e diz-me onde tens agora expostos os meus braços.»
E deixou-lhe a camisa que não lhe foi precisa e que lhe deixo ali naquela caixa.


quarta-feira, março 14, 2007

lição de vida

pelo rui, no Banana Killers & Co. no

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céu...





Céu... como pinga azul esta chuva do copo, em tempo estio. Venho a fingir dançar vagar, copo na mão, derrame azul trémulo e fresco. Sussurro: “.... céu!”. O D deixou limão e eu caí na vida.

Chego do velório, acabei o livro, pouso na palavra estafada. Já cheira a verão, a luz limpa e rente o som dos grilos. Está bom para fingir na vida... foi nada, foi nada, andei por aí a estafar-me e hoje vim dançar. Copo na mão. Fingir azul.

Andei a ler compulsivamente, até na fila de trânsito das manhã, “ Alexandre 0’Neill – Uma biografia literária” de Maria Antónia Oliveira.Ler vida de outros sabe melhor quando da nossa pouco se sabe, quase nada se saúda... espreitadela curiosa esta ! Deliciosa. Escrita fácil e bonita. Tentadora. Irresistível. Como ele.

Não sei precisar o que me atrai na leitura de uma biografia. Se a percepção da pequenez na grandeza o que permite num instante, da nossa pequenez, fazer grandeza ... se a confirmada constastação que qualquer história de vida é por si mesmo bonita, sobretudo quando descontextualizada da própria vida... se, se... não sei. Para além da curiosidade pura e, neste caso particular, da inveja de tanta tertúlia, de tanto excesso, de tanto prazer.

M, lê este livro. Levo-te para sul em fim de Março. Enfia os teus quarenta anos dentro de uma página e O’Neill te dirá que a idade não tem alma. A alma tem tempo e idade por uma questão prática de catalogação.

Estafei-me ainda na montagem de uma feira do livro para crianças e pouco mais tem dignidade de registo.

Céu... fingir que danço.E para vocês, dois em particular, vai esta : “ senta-te copo, bebe comigo”.

um céu demasiado azul

já saiu no Brasil, sai agora em França, mas cá continua esgotado. falta-me ler este de FJV: alguém mo empresta?

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os quarenta II

outro sinal inegável de que comecei a envelhecer: antes reconheciam-me uma certa destreza na condução, da qual tinha a mesma espécie de orgulho maria-rapaz com que em garota subia às árvores, corria veloz nas caçadinhas ou jogava rugby no pinhal com os meus irmãos mais velhos e os seus amigos.

mas agora não, agora guio como uma octagenária: tenho pânico da velocidade, dou por mim a 60 na autoestrada, na cidade levo buzinadelas sem chegar a perceber porquê e, pior, perco-me repetidamente em lugares onde já fui 500 vezes.

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segunda-feira, março 12, 2007

Lixado

Creio que foi o Lobo Antunes que disse um dia que o Alves Redol se carregou tanto de informação e de livros, sobretudo, que depois nunca conseguiu levantar voo que se visse.
Isto a propósito da conversa hoje à noite do café, teimando eu livros, contrariando as conversas de futebol.
Disse-me PC:
«lixaste tanto dinheiro em livros e são agora eles que te lixam a cabeça.»

Não sabe ele que o único sítio que conheço onde o futebol é bem tratado é precisamente nos livros e é aí que ele, se o soubesse, lhe procuraria a substância. A da palavra bem escrita.

Aqui estou, lixado, entre livros.

domingo, março 11, 2007

O tempo do gin

Gândara, Março 2007

Quando olho a estante e o bordo, é sempre um encontro com o Verão. Refiro-me ao livro “LISBOA, LIVRO DE BORDO” do José Cardoso Pires. Vozes, olhares, memorações, como escreveu.

Abre com uma frase sublime de Cervantes sobre Lisboa, na voz do marinheiro que chega, que em vez de dizer «TERRA» como em tantos portos do mundo, diz «CÉU», por esse azul limpo que se encontra na Lisboa capital, como o vi hoje na Gândara quando me ergui vindo do mar.

«Tierra, tierra! Aunque mejor diria Cielo, Cielo!
Porque sin duda estamos en el paraje de la famosa Lisboa.»

Cervantes, Los trabajos de Persiles y Sigismunda

A Gândara antecipa-se na sua nova exposição das flores. Já procuram almoço as abelhas vindas da serra; já poisam as primeiras codornizes, a nado, desde o norte de África, guiadas pelas andorinhas; já se torram as faces dos nórdicos dos carros-caravana; já se assam os primeiros frangos à beira da estrada; já se abre o vinho novo para delícia dos lábios e das conversas de marear.

Mas Lisboa lembra-me sempre H, que andará ainda por alto mar e obriga-nos por ela a dizer gin, gin, volta breve e dança, moça do gin!

Fui aos limões com um balde que deveria ser de gelo. É neste tempo um sacrifício deixar a Gândara e ocupar o posto de Coimbra B. Trouxe os limões para o tempo do gin. Breve, muito breve, chegará H ao blogue e dirá: CÉU!
Então D e M beberão com prazer um farto copo de GIN, abrindo a época dos costumes, lendo-lhe o que nos resta do livro do José Cardoso Pires.





poema para um domingo quente

hoje não fui à missa
confio que Ele compreendeu
as ondas enrolavam-se azuis e brancas
e as crianças enrolavam-se na areia
mas Ele sabe, Ele sabe que é breve a minha passagem
que é breve este murmúrio de verão
Ele sabe que quando eu me despachar daqui
vamos ter muito tempo para estar juntos

(Ogden Nash)

tradução muiiiiiito livre deste poema para um domingo de verão que JPP nos deixou no seu abrupto

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quinta-feira, março 08, 2007

dia internacional da mulher

Ok, uma greve na América há uns anos largos, a internacional socialista a carimbar o dia na Dinamarca, o tempo da queima dos soutiens, hoje os homens em casa, as mulheres na rua. Confesso que não jogo este jogo, porque não tem regras que me assistam. A igualdade nas minhas lentes pressupõe apenas igualdade para as mesmas dioptrias.

Hoje as mulheres na rua são um acto falhado.
Hoje os homens em casa de encontro à TV são outro acto falhado.
Há mais mulheres que homens, sei!
Há mais homens benfiquistas que portugueses, dizem!
Enrolemos as bandeiras e fixemo-nos nas mesmas dioptrias.

Ambos perderam.

lugares onde me foi possível respirar

Santorini, Grécia
(after abrupto)

- hoje uma espécie de falta de ar -

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os quarenta

sei que comecei a envelhecer quando fiz quarenta anos porque, de súbito, desatei a pensar, a propósito de tudo e de nada: "para quê?". foi nesse dia que comecei a sentir o resto do meu futuro a escoar-se e a antever em mim a fragilidade que agora vejo nos que, ainda há pouco, eram os meus pilares. comecei a envelhecer quando me instalei no lado de cá dos 40 (plausivelmente a metade de uma vida) e me começaram a nascer, todos os dias, pensamentos que choram o presente: conseguirei daqui a uns anos aguentar o dia de cão que tive hoje no trabalho? até quando terei esta saúde robusta que secunda fielmente as minhas opções? quando eu for velhota e fizer asneiras zangar-se-á comigo a minha filha como eu me zango agora com ela (com que voz me falará)?

foi há uns meses e, ao princípio, achava que era uma fase, que ia passar. agora já não sei.


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RTP 50 anos

Acompanhei à socapa a gala de hoje dos 50 anos da RTP. Entre a escrita incisiva do «Glória» do Vasco Pulido Valente, que ando a consumir misturado com wiskey e umas cigarrilhas Davidoff, o plasma ia-me atraindo consoante desfilavam figuras, músicas e referência a programas que me acompanharam a vida. As nossas vidas numa analepse quase perfeita.

Nasci no tempo do preto e branco, vi a cor numa “ITT Idealcolor” no café Copacabana e, confesso, sou ainda hoje um consumidor selectivo por oferta disponível do cabo da “caixa que mudou o mundo”.
Mas queria relevar aqui duas situações que me marcaram a noite:

- a Catarina Furtado mandando um beijo ao pai num “abuso” de directo exemplar;
- as palavras do Director de Programas, Nuno Santos, para Carlos Cruz, o “senhor televisão” de Portugal.

Passe as vicissitudes da vida (a privada, sobretudo), quem fez bem o serviço público com dinheiros públicos e por nós todos foi pago, merece uma palavra pública de agradecimento.

quarta-feira, março 07, 2007

fade out?

vocês acham que Pedro Mexia pode desaparecer assim?

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de pantufas


chego a casa cansada e descalço as maiúsculas: meus saltos altos do dia-a-dia. depois do jantar venho ao blog e ponho-me à vontade nas minúsculas, minhas pantufas da escrita.

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terça-feira, março 06, 2007

Padrasto e madrasta

Tudo poderá começar numa cadeira de sucessão. Quem se senta por pertença, como as linhas das fronteiras nos retiraram dos mapas Olivenza.

Nunca, mas nunca mesmo, gostei dos termos. Coisas que se consomem nas vidas de cada ser sem qualquer culpa formada. Herdam-se, pronto! E a vida os faz.

Mas podem ser um ponto pictórico, diferenciador positivo, como corta-fogo nas asas de uma borboleta. A cor certa na pele exacta de uma sucessão.

Os padrastos e as madrastas são pais e mães de astros que criaram a sua elipse sozinhos, como os pássaros que perderam no primeiro voo o seu trajecto inicial de volta aos ninhos.

domingo, março 04, 2007

O boticário

Contava o meu bisavô, hoje na boa mesa de almoço pela voz do meu pai, que havia na Gândara um boticário com curso por acabar, que tratava todas as maleitas com água do mar. Nada de chás, mezinhas de óleos vários, folhas de ervas medicinais por sobre a dor.

«Lava com água do mar», dizia a cada consulta.

Um dia, num daqueles verões tórridos que à Gândara chegavam com as marés vivas de finais de Agosto, o boticário descuidou-se numa onda e foi mar adentro.
Ainda bracejou por ajuda, mas os comuns mortais, habituados ao seu saber, comentaram entre si:

«deixem-no estar, caiu na botica, não o perturbem. Deve estar a estudar.

sábado, março 03, 2007

"O Têpluquê"


"Era uma vez um menino que tinha um defeito de pronúncia. Não era capaz de dizer tê: dizia quê. Trocava o tê pelo quê. Trocava o têpluquê. Em vez de dizer tasa, como toda a gente, dizia casa; em vez de dizer tão, dizia cão; em vez de dizer tapete, dizia carpete (às vezes deixava uns tês para trás, deixava uns quês para crás). E assim por diante: em vez de dizer tábua, dizia cábula; em vez de dizer tu, dizia (rabo); em vez de dizer Tomé, dizia Comé; em vez de dizer taxímetro, dizia caxímetro, etc. (em vez de dizer etc., dizia ecc.).

Esta história (em vez de dizer esta história, dizia esca escória) tem uma moral, é das que têm: é que todos os defeitos de pronúncia (como os outros defeitos todos, há uma história para cada defeito) têm também virtudes de pronúncia, senão eram defeitos perfeitos. Ao menino, como a toda a gente que tem defeitos de pronúncia, ENTARAMELAVA-SE-LHE a língua; este menino tinha sorte porque, como as letras do defeito dele eram o tê e o quê, a língua ENCARAMELAVA-SE-LHE e o menino gostava muito (goscava muico).
"

Manuel António Pina
In O Têpluquê e outras histórias, Porto: Edições Afrontamento, 1995

(hoje cruzei-me com este escritor bem humorado numa livraria do Porto e quando cheguei a casa apeteceu-me lê-lo. vim aqui à net - porque não tenho nenhum livro dele, só o vou lendo às vezes nos jornais ou no que dele postam em blogues - e surpreendi-me com esta veia cómica de MAP. não sabia que escrevia para crianças nem para adultos brincalhões. gostei e agora acho que quero mais)

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espaços onde me foi possível respirar

Cabo Finisterra - Galiza / Espanha
(after abrupto)

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quinta-feira, março 01, 2007

momento de fuga

Ali ao farol, perto do molho, via-a da esplanada vindo e indo num movimento pendular. Três Domingos seguidos como promessa, romaria, três tentativas de ficar.

Escrevia na areia da maré coisas que a maré levava:

Quando o anel me gastou o anelar
foi tempo de largar o sorriso
que me deixou de ser preciso.

Quando os meus filhos cresceram
os fins-de-tarde entardeceram.

Quando a ousadia me alegrou o andar,
vesti outra vez a roupa fresca,
tirei o relógio,
meti-me ao caminho
onde no fim se molham os pés no mar
e parei o olhar para olhar.

Quem casa consente.
Mente, porque já deixei semente.

Fiz-me depois ao carinho
e recuperei o sorriso,
volvendo ao tempo anelar.


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