segunda-feira, julho 31, 2006

asneira de baixinho segredo


O Brunito chegou-se-me à mesa da esplanada da brasileira, não essa, mas a da mulher gostosa que há tempo não vemos, riso inocente, filho de RC e disse baixinho «aprendi uma asneira».
Com quatro anos - e porque o disse baixinho - já tem a consciência de um lado do pecado.
Então disse eu «diz-ma baixinho ao ouvido».
Disse outra vez baixinho que não podia, porque a podia ouvir o menino Jesus e também que o que não se deve dizer são mentiras, não é pai?
Com quatro anos - trazendo Jesus baixinho - já tem também a consciência do outro lado do pecado.
Ainda lhe disse, também baixinho, que mentiras nunca, mas uma asneirita, pequena, pode ser dita num cantito só para nós, para nos rirmos e, se o dissesse baixinho, o menino Jesus não conseguiria ouvir, porque penso até que é surdo.
«Mas ouve o meu pai e depois vai contar à minha mãe, que contará baixinho ao menino Jesus».
Não insisti, ele riu-se muito, deu uma volta, alegre, à pequena praça, esperou que acabássemos a cerveja e olhou-me com os olhos baixinhos no segredo que ainda não ficou entre os dois. «Ainda?», penso eu baixinho - se calhar por asneira!

caderno de duas linhas - IX


IX

Quando regressas para o costume dos dias e pensas que tens um antigo assunto arrumado, tarefa fechada, a pior coisa é que algo ou alguém te altere essa satisfação. É que me chegou uma carta com uma velha letra conhecida ás mãos, pesada, cheirando a perfume de maçãs maduras depois de a abrir – sim, era dela! E dentro, o molho de chaves do carro. Resisti a ler logo (resisti-me) e fui até à beira-mar sulcar passos na areia, olhar o Altântico sobre a sua direita de água, porque o desejo obrigava-me por esse sentido, a recordar a cada passo, o selo do envelope com tinta dos correios - “La Coruña”.
Contei sete ondas por superstição cabalística, sentei-me a meio da duna, cabeça no estormo e li-lhe as palavras de uma vez. Não conto todo o conteúdo, porque de forma educada me pediu segredo. O papel de carta do Hotel Zenit Coruña confirma que por lá passou, bem como a descrição que faz das vistas do quarto sobre o mar (conheço bem essa zona do paseo marítimo).
O pesado não era só das chaves, fazia peso também um “voucher” para o próximo fim-de-semana, diz que para dois, B&B e terminava com um «vens?» no alfabeto «amar-te uma única vez» que, se tivesse som, tocaria entre silêncios o som dos grilos do rio Amoia.
«Vais?» - pergunto-me.
«Vou!». Se é um jogo, parece-me póker e o melhor é “encavar” a mesa. Sou homem que arrisca sempre uma última tentativa. Não é cedência, quem cede nunca vai uma última vez. É desafio. É a sua ardilosa forma de estar que me atrai, a lembrança ainda presente do seu ombro descoberto, o olhar inquieto e o cheiro a maçã madura com sal. Se nada resultar, pelo menos espero recuperar o carro.

sábado, julho 29, 2006

caderno de duas linhas - VIII


VIII
Acabei agora mesmo de passar a língua na goma da cola, de fechar o envelope.

Deixei palavras riscadas a azul que cheiram ainda a perfume de maçã. Passava as noites a ouvir as maçãs a caírem das árvores no escuro. Ainda cheiram as maçãs assim como os limões. A terra tem muitos ruídos, o calor abafa. Trouxe o cheiro a maçãs que ficou na rasura das palavras da carta que te escrevi.

Pus as chaves dentro. A goma da cola do envelope... vens?

tisana para a gabbiano

(foto Luz Fava)

Quando Coimbra foi o espaço onde as noites eram maiores que os dias e a música não era apenas fado, a memória foi crescendo como os líquenes nas rochas do Mondego onde não íamos (não era essa balada a nossa saudade).
Vivíamos todos no nosso tempo certo da juventude, numa precária alegria como a efémera energia de quando se juntam os lábios.
Um dia o beijo quebrou-se.
Ventos do Norte, ventos do Sul, soprando-se loucamente.
Ficaram por cartas dispersas as palavras. Permaneceram alguns rostos como caçadores furtivos nestes pontos cardeais.
Os decisivos guardaram-se como estrelas na constelação «filantropia», apenas vista perto de Órion no último dia de cada Verão durante dezasseis minutos (o mesmo tempo da idade que fomos quando o sentes!) e que precisaram de um novo ritmo para fazer chegar a luz que lhes pertence, porque a nós ficaram como herança por inteiro.
Astros que precisaram de tempo para depositar em anos-luz, agora altivos, a sua imagem decantada.
Quem bom. Finalmente chegaste! E com palavras, como sabias já tão bem somar no tempo em que era decisivo juntar apenas os lábios.

sexta-feira, julho 28, 2006

Quixote


A derradeira Espanha.
O engenhoso fidalgo de La Mancha.
Ventos, moinhos, favos melosos de esperança.

Partir traz sonhos imensuráveis.

Depois guarda-os dos lugares,
por exemplo,
debaixo de um guarda-chuva
(o meu rosto preso ao teu ao vento),
ou a seda do vestido que laboriosamente vestiste
para entreter entre as mãos no teu regaço sumarento.

Partir sozinho é desespero.
Partir contigo é aconchego.

Mas deixar-me solto contigo,
partir, ou apenas sair,
- tu, mulher «Sancho Pança»,
que sabes a distância máxima até onde posso ir,
é um limite sentido entre desesperar ou sorrir.

quinta-feira, julho 27, 2006

livros de viagem


Em tempo de férias, para quem gosta de ler todo o ano, recomendo livros de viagem. Porque quem gosta já leu quase tudo o que queria ler, guardando para férias um ou outro essencial, por capricho ou desejo. Desses, guardo para mim literatura de viagens. E para quem gosta de Espanha, recomendo este:

Nooteboom, Cees, O (Des) Caminho para Santiago, edições Asa.

quarta-feira, julho 26, 2006

duas... mulheres


Quem por aqui passa sabe que duas mulheres me vão consumindo na linha do Norte quase todas as horas das noites e alguns minutos distraídos dos dias. De dia poucas vezes estamos, as almas andam vinculadas a outras tarefas mais mediáticas, trabalho e caramelos com beijos decisivos. Uma saiu exausta do emprego para uns dias de férias. Outra manteve um jogo a duas linhas até que sentiu tempo de partir, deixando que um homem vulgar apanhasse o comboio, saindo, ágil, de uma relação de pretensos afectos.
A primeira poderá pegar o jogo na volta do regresso, como no Molero «dê a Molero as férias indispensáveis a uma convalescença perfeita, pagas e com bónus, dê-lhe também um abraço meu, mande passar o relatório a limpo depois de Computer o submeter a análise, para eu o levar a quem de direito, e entregue o assunto a outro homem do departamento, talvez Octopus, que está livre. Ele que comece onde Molero acabou».
Não é outro homem, é M, uma mulher da linha que poderá seguir o «caderno de duas linhas» se se der ao jeito. E sobre Molero sabe tudo que baste.
A outra, H, saiu leve como as asas de um beija-flor. Beijou o que havia para beijar, mandou SMS, lê agora um livro por dia e diz que regressa.
Sem elas fico atento à linha. Nunca foi tão decisiva a minha lanterna guiando o trilho, o meu olhar focado no relógio das horas com decisivos segundos e o antigo ouvido ampliado para a voz roufenha do altifalante. A vantagem é que sei que voltam. Por uma linha da linha. Quando «voltar para férias», apenas à tarefa de as cumprir, elas deixarão um rasto de palavras decisivo para responder certeiro. A três linhas. Aguardo por isso. Deixar-me-ão lamber o papel do caramelo que as embrulhará como um desafio. E a uma outra voz doce, uma de duas, duas das duas, responderei - «Brothers in Arms».

sábado, julho 22, 2006

caderno de duas linhas - VII



VII
É, decisivamente, uma mulher que me aquece em fogo lento. Daquelas que quando não está provoca desejo. Não apareceu com palavras decisivas porque simplesmente falhou o pequeno-almoço no hotel Corderí. Porque egoísta não quis, isso basta-me. Quem não vem tem motivos. Quem não vem tem outros objectivos. Quem não vem move-se pelos sentidos. Cheira-me que se divertiu na noite e deitou o corpo tarde na velha Orense. Apenas isso.

A mulher maçã madura foi um jogo de troca de cartas que arrisquei, confesso agora a premeditação. Carteiro que troca carta para usufruir a estação do Verão. Setembro traz Outono e um velho desafio em antigas mulheres. O Verão trará sempre mulheres novas como as revistas cor-de-rosa – disse-me o experiente pescador à linha! Terá perguntado pelo gin embrulhada no xaile vermelho, meio ombro de fora a provocar, quando saí. Divertiu-se na noite? Que importa. Bem, importa, mas sinto que estamos no fim. Não terá hipótese de pôr gelo na conversa juntando limão com gin, acender o cigarro na arte dos dedos e provocar!

Nem sei do homem que perdeu a sua correspondência decisiva porque, convicto, a troquei também propositadamente. Naquele fundo de mar onde vivo, apenas desejado pela pele morena e sal na ponta da língua, não há assim mulheres disponíveis para uma aventura de Verão. Nas que por lá vivem apertam-se-lhe as coxas, tolhem-se-lhes os seios, reduz-se-lhes a uma linha de cal o limbo ocre dos lábios.

Troquei as cartas para um jogo. Joguei-lhe o jogo do corpo e a sua sedução. Não quis.

Mas do jogo ela sabia tudo. Tinha sussurrado as regras no meu ombro e marcadas as palavras certeiras no livro das viagens. Quando me tapou a boca para dançar, senti que o melhor era boca calada. Quando me levou pela mão para o hotel Zarampallo, sabia do destino e da sua independência criadora. Por isso dancei sem saber dançar junto ao balcão, mãos nos bolsos a largar o resto do perfume no suor e Deus, esse breve equilíbrio do desejo, que compusesse as arestas e me explicasse porque na primeira noite me chorou no ombro direito sem motivação da fragrância ali depositada.

Esperava no jogo da sorte uma mulher que tivesse parado para o gin no Alto de Allariz. Não parou. Foi a sua queda e a minha dúvida. E confundir cigarrilhas com cheiro de «cuabas» foi o seu altar na distância que por mim erigiu.

O resto está contado no curso do rio Amoia, escrito em alfabeto «amar-te uma única vez» pelo andar e andar dos grilos na areia da nascente. Ficou com as chaves do carro. Regresso de comboio com motivado prazer.

A mulher trará num novo Verão, por sobre os ombros, o xaile vermelho, o novo papel de carta, o carro com que ficou, mas faltar-lhe-á o leque, onde com código de anos me indicará entre outros homens o caminho mais breve para os lábios.

Foi um fogo lento. Vou voltar a baralhar as cartas no casino da pouca terra com gente na rua do mar. Preversão. Como no final do livro do Molero, alguém que pegue neste caderno de duas linhas. M, por exemplo, que estará disponível depois de férias no regresso a casa!
Mas nestes três dias, o que eu gostei dela, caramba!
«Ainda tens tempo para me escreveres uma carta e pôr as chaves do carro lá dentro? E um beijo surpreso doce?»

caderno de duas linhas - VI

VI

«Vê no bar se há gin, não era o que querias ?», disse ela depois de deixar a água sulcar a pele, a enrolar toalha no corpo.

O quarto estava escuro, janelas abertas, estores corridos. A noite quente e um ligeiro ruído da cidade. O vestido sobre a cama, o xaile vermelho na cadeira.

Tinha-o levado a dançar e o homem dançou a noite com o balcão. Encostou-se a ele e deixou-se. Mãos no bolso, olhar estranho. Impaciente, pegou-lhe pela mão e levou-o pelas ruelas até ao Hotel Zarampallo. Cigarro na mão que lhe resta. «Vamos arder... arder o verão, o engano e esta faena...».

Subiram em silêncio no elevador antigo com porta de correr. Segundo andar. Ela abriu a porta do quarto e entrou. Ele seguiu-a, sentou-se na cama e acendeu a cigarrilha. Ela desfez a cama atirando para trás os lençóis, amarrotou a voz e disse-lhe: «Sr. Carteiro, faça o favor...» e foi entregar-se à água tépida, limpar do corpo o pó da viagem e a sensação áspera que aquele engano lhe deixava. Trauteou no banho enquanto o silêncio se ouvia do quarto. A porta fechou-se quase em surdina. O cheiro a cigarrilha ficara.

Enrolou-se nua no xaile, agarrou a carta e não a abriu, sentou-se no cadeirão junto à janela. Sei que é ele, ele o carteiro da terra do mar. O homem que engana as missivas, aquele que não mareia a morte como os homens da terra e resolveu inventar histórias ao trocar as cartas. O homem que vive da alma trocada, da alegria do acaso. O homem que se sente deus sem mar.

Fora ela que mandara uma carta, com destinatário errado, para a terra da pouca gente e mar. Mandara para chegar ao homem certo, a ele. Lhe ficar nas mãos. Apareceu no comboio disposta a levá-lo para longe do mar, a atirá-lo para uma cama e lhe escrever na pele uma carta. Letra redonda e bonita, nas costas do amor, riscada na pele. Seria assim que ela se vingaria.

Dele ficara apenas o cheiro a cigarrilha. Abriu a carta dele e leu-a. Vestiu o vestido, ligou para a recepção a pedir um gin Bombay, e agarrou as chaves...

quinta-feira, julho 20, 2006

caderno de duas linhas - V


V

Das melhores coisas que uma mulher sabe lidar na vida é com homem desconfiado. Quando desconfiadas, as mulheres vivem da duplicidade, recriam uma outra vida à parte, mantêm equilíbrio até ao golpe derradeiro. E tendencialmente vencem o sufoco e fulminam. Os homens não. Cheira-lhes a desconfiança, aperta-se-lhes o coração, descarregam a adrenalina, logo querem saber o fim e o limite, esse tempo a que normalmente catalogo como cornologia dos afectos. Um dos sinais nelas é mudar o brinco de orelha ou retirá-lo simplesmente. Há também as que mudam o cigarro de mão, como o antigo código dos leques. Nos homens são os olhos baços e um silêncio ensurdecedor – fechamo-nos por dentro até ao golpe final, atitude tupperware.

Isto a propósito de ela me pedir de novo o volante para continuar. Pus o cinto, deitei-me sobre o vidro direito, fechei os olhos para pensar. Quando a fui buscar à estação não a via viva há mais de 15 anos. Mais mulher, mais maçã madura, parecendo-me a mesma. E não tinha os olhos baços.

Fecho os olhos desconfiado. Ela fuma, liga o rádio, pensa ou faz que pensa. Passou a alta velocidade pelo Alto de Allariz, não parou para o gin – a minha mulher que viria para o Verão pararia sempre para o gin! Aperta-se-me o coração. Pergunto-me: «Quem será esta mulher?» «Como descobriu a minha coordenada para mandar carta tão decisiva?» Vou jogar o jogo. «É a hora das cartas!», disse sonolento.

Parou numa área-de-serviço sobre o rio Amoia. Fiz de conta que não vi, ouvindo apenas os diálogos dos grilos junto à água. Regressou com papel de carta, cigarros, um jornal de papel barato e um reluzente xaile vermelho sobre os ombros. Com um leque na mão estaria perfeita.

Em Orense deu-lhe para dançar. Mambo. E eu que girasse ao seu egoísmo. Não era a minha mulher que esperava na estação, (definitivamente não era!) porque essa saberia desse meu pouco jeito para a dança e levar-me-ia, estou certo, para o primeiro restaurante da praça. Tapou-me a boca. Empurrou-me para um bar “La Santa Sed II” e deu-me corda para que a guiasse. Aqui o volante era fragilmente meu por minutos. Sussurrou umas palavras comidas pelo som alto da música, qualquer coisa como os homens saberem-se pela forma como dançam e, entre duas músicas, que queria uma carta escrita na cama. Que jogo é este? Tem regras?

O hotel Zarampallo é bonito e decente. Subimos ao doble 203. Disse que ia tomar um bom banho e iríamos jantar.

Pequei no papel de carta que comprou e escrevi:

Orense, 19 de Julho de 2006

Querida companheira:
Algo me confunde. Conhecemo-nos em que vida? Marquei dormida no hotel Corderí, Calle Ervedelo, 7, tel: 988 22 12 93.

Deixo-te o doble. Parece-me que a única coisa que nos liga é um mesmo sabor a sal na pele morena. Se quiseres continuar aparece amanhã para o pequeno-almoço e trás palavras decisivas. Confio em ti. Deixo-te o carro. As chaves estão na mesa do telefone. Apanho um táxi.

1 surpreso beijo doce


Envelope fechado, pouso-o sobre a cama e chamo o táxi da recepção. Ainda ouvi do banho ao sair: «vê no bar se há gin e gelo, não era o que querias?»
(Saí um pouco baralhado.)

quarta-feira, julho 19, 2006

caderno de duas linhas - IV



Julião Sarmento

IV

Cá vamos. Na paisagem trilhada em cima do mapa. Rádio sintonizada e silêncio em viagem.

Ela conduz, o que se pode tornar num perigo quando a mulher tem um caminho e uma reserva doble num hotel de Orense.

Abre a janela, deixa o braço de fora, fuma um cigarro e pensa em brisa «Que vou fazer com este homem?», «o que cabe neste homem?», «que história de mim vou deixar neste homem?».

A estrada faz-se sozinha, começam a ouvir-se os grilos e a luz a perder-se. É a hora do silêncio do mundo, essa hora quente dos fins-de-tarde de verão. Não falam. Ele deixa-se cair num torpor lento. Adormece e estremecesse de inquietação. Ela assobia por cada pergunta que levanta no pó da estrada. Está calor. Muito calor, ainda. Abeira-se a noite e a estrada por cumprir. N 525 até Orense.

Não parou no Alto de Allariz. Ele dormia e ela tinha pressa. Mudou apenas a estação de rádio e começou a trautear, em surdina, a música dos “Presuntos Implicados” que passava. Parou na estação-de-serviço seguinte. Deixou-o a dormitar no carro. Comprou tabaco, o Crime, um maço de envelopes, papel de carta e um xaile encarnado. Sentou-se ao volante e arrancou.

«É a hora das cartas!» disse ele com voz enrolada de quem dorme. Ela apagou a rádio e deixou-se a ouvir a noite e os grilos. Que quereria ele dizer ?... tinha a pele seca e morena o que a fez suspeitar de que viveria perto do mar. Cheirava a sal. «Cartas ?... que cartas ? » pensou ela.

Chegaram a Orense já com a noite entranhada. Parou o carro em frente a uma porta de madeira antiga, numa das ruelas da zona velha. Ela saiu do carro e espreguiçou o corpo devagar. Ele acordou em sobressalto. Estremunhado saiu do carro e bocejou.

Não lhe deu tempo. Tapou-lhe a boca e empurrou-o para dentro da porta velha. Sussurrou-lhe ao ouvido: «Vamos dançar... os homens sabem-se pela forma como dançam...». Ele anuiu calado. Sentiu-lhe a voz quente na pele. Deixou-se empurrar. Ela voltou a deixar-lhe ao ouvido: «Vais ser tu a escolher o teu destino... pela forma como dançares».

Entraram no salão. «Só mais uma coisa... se chegarmos ao quarto do hotel Zarampallo, quero uma carta escrita na cama...» disse ela.

desvio no caderno de duas linhas



( fotografia de Jorge Molder )

Hoje vou falar de um irresistível blog. Banana Killer& CO (http://bananakillers.blogspot.com/) . Um blog feito de gente que viveu na mesma linha do mar, entre estações e linhas de comboio, a cheirar iodo e sal, a fazer pelo lado direito e avesso da vida . Feito de gente que cabia na mesma escola, que teimava em caber no mundo inteiro nem que não saísse do apeadeiro, do quartinho ou da praia.

Um blog que parte de uma banda ( BKC) para uma adolescência, para a uma errância, para um respirar mesmo em cima da memória que chega a embaciar as fotografias... um blog que cresce para trás.

É-me irresistível. Espreito amiúde. Deixo-me de vez enquanto, como me compete. Porque só de vez enquanto lá estive. Muito de vez enquanto. No apeadeiro, no quartinho ou na praia. Apanhei sempre um comboio para lá chegar, numa paixão ou pelos amigos.

Sei as histórias quase todas, identifico pelo tacto os lugares, reconheço a alegria e as pessoas que a compõem. Porque as ouvi sussurradas, as histórias, ou porque mas escreveram. Recebia muitas cartas dessa terra prenha de mar e nelas me chegavam histórias e fotografias para além de um pouco do nevoeiro das manhãs do norte que tanto saudava eu a sul.

Não sou feita daquela memória e tenho-a. É uma espécie de memória, minha, em braille.

Dessa gente tenho amigos que, para além de me terem ficado eternos, se abeiram tanto da minha própria memória que com alguma facilidade se promiscuem as memórias. Se contagiam. Se confundem.

Dessa gente tenho gente para o afecto. Por muitos deles tenho uma estima cativa no tempo. Um carinho de e para sempre. Feito menos de nós e muito mais de tudo o mais. ( o homem que quis atropelar o comboio, é aquele que recordo como sendo o que sempre me recebeu de forma mais calorosa. Assim o sentia eu. Tal como o aquele outro, no qual em casa muitas vezes ficava, que me mostrava os carochas com orgulho estampado e que gosto particularmente de o reencontrar a comentar).

Dessa gente, há alguns com quem talvez nunca me tenha cruzado e no entanto reconheço-os.

É-me irresistível esse blog. Memória de pele que não tive mas senti. Arrepia, lembra, aperta às vezes. Coisa para usar e abusar. Bem haja, BKC!

caderno de duas linhas - III


III


Quando saímos pela manhã senti que ia ser guiado. Ou conduzido, para firmar um termo mais certeiro. Sentou-se ao volante dizendo que me entregaria o carro depois da fronteira. Trazia com ela um mapa amarrotado de viagens – daqueles “Portugal Espanha Michelin” numa só proposta em duas pátrias – abriu-o no regaço e apontou Norte com o cigarro na mão, agulha acesa magnética. Ainda me sabia a surpreso beijo doce quando pensei que o Verão moraria logo após a linha da pátria portuguesa. Há, pois, que fazer caminho por ele.

Passar a linha já não é o que era. As cabines vazias de carabineros, a placa Espanha em constelação europeia e, depois, caminho denso para andar.

Chegados a Verín tinha o primeiro desafio. Que faria? Surpreendeu-me! «Encosta ali perto da Plaza Mayor», disse, saindo do carro para uma volta solitária como os toureiros fazem à praça depois da lide.

Andar nos espaços de um amor perdido não é o mesmo que andar nos seus passos. No Verão os passos deixam uma vertical sombra, réstia de esperança, mas os espaços permitem apenas encher o peito do seu antigo respirar.

Chegou-me à esplanada. Parecia satisfeita. Ou desfeita, não o disse. Abriu o mapa, traçou um risco com um lápis negro sobre todo o percurso da N 525 para Orense, marcou com uma pequena cruz o Alto de Allariz onde pararíamos para um gin e, deixado o corpo ao descanso da cadeira, pediu um chá.

Entrei no bar, coisa que adoro fazer, sair do calor para a sombra e, confesso, procurar um vaso de vinho branco Rueda com espárragos trigueros a la prancha. Perguntei por um estanco, para comprar uns “cuabas” para a noite. Trouxe o chá. Pareceu-me distante. «Que tens?»
«Tenho um caminho e uma reserva doble no hotel Zarampallo em Orense para cumprir. Queres ir?».
«Quero, se tu quiseres!»

Se me sentia conduzido quando partimos, agora sinto-me mesmo guiado. Vale ainda o sabor do surpreso beijo doce e, intuição, a falta de uma vertical sombra de passos na praça de Verín. Quando chegou à mesa trazia apenas o peito cheio de ar de um antigo respirar. A esperança foi-se.

Do bar saía agora um som bonito, meu conhecido, enchendo de fulgor o ar húmido do resto da tarde. Patxi Andión. Quem sabe se é com esta música que a minha companheira alegra o caminho para o Alto de Allariz. Trago o carro. Cá vamos!

terça-feira, julho 18, 2006

caderno de duas linhas- II

( fotografia Daniel Blaufuks )
II
Prontos para partir. Fazer estradas, cheirar a chuva, chorar na concavidade do ombro dele, sem dizer. Mas há que vos dizer o equívoco, antes mesmo de meter a primeira na caixa de velocidades. O homem desconhece, por ora, este engano.

Quando a carta chegou já sabia o desafio. Pensou, ele. Acontece que o carteiro da casa onde a carta chegou era homem dado a perversões. A casa da carta ficava no final da rua do mar. A terra era pequena e as horas dolentes como as marés. Os amores fechavam as janelas de madeira, as sombras deitavam as árvores, os homens iam ao mar. Quase nada acontecia naquela terra pequena.

O carteiro, cansado de não ir ao mar e não ousar marear a morte, começou devagar a fazer histórias, ou seja, a trocar a correspondência dos poucos da terra. A coisa ganhou tamanha dimensão que a partir de dada altura nunca carta nenhuma chegou a destinatário certo. As histórias trocadas, por pudor envergonhado, ficaram na cal das casas e no silêncio dos poucos da terra. Mas o carteiro escondeu bem a excitação na farda, e arranjou assim um jeito de passar as horas a prescutar os silêncios depois da hora da distribuição.

Foi assim que a carta lhe chegou, a ele. Tal como a mulher e o sal. Mal se quedou na gare da estação percebeu não ser aquele o homem. Trocou a marca do carro. Procurou o ombro pelo cheiro do perfume. Em frente à linha do comboio, estremeceu. Perdeu a noção em que sentido o seu comboio chegara. Mas porque é que a sua história não haveria de caber naquele homem? Falou de viagens e começou num livro. Amanhã estariam prontos a partir.

Acordou devagar, afagou as mãos frias na chávena de café forte e quente. Fumou dois cigarros e ajeitou-se ao dia.

Sentou-se ao lado dele, ao volante, deu-lhe um beijo e abriu o mapa. « Vamos... »

caderno de duas linhas


I

Quando a carta chegou já sabia o desafio. Melhor, sabia-o o coração. Depois foi abrir o envelope com o cuidado de arquivar e confirmar em letra bonita as palavras decisivas. Que sim, que chegava ao fim da tarde de sexta, de comboio, para uma vez mais sairmos pelo Verão.
Arrumei a casa. Lavei a louça dos dias. Passei o pano no chão. Mudei os lençóis para a cor do cortinado. Reabasteci o mini bar (sim, gin como gosta! E muito gelo). Fiz a barba. Preparei-me inteiro para uma única noite. Arrisquei até uma fragrância de Dolce & Gabbana no ombro direito, onde ela por comodidade se me costumava poisar a sussurrar a vida que trazia.
Sabia que partiríamos logo a seguir. Dizia na carta Espanha. Um amor em Verín, logo a sair para a Galiza. Um amor que já não era, apenas queria uma última vez ver-lhe não o corpo mas o espaço. E eu que o confirmasse.
Quando chegou, 18:49 na linha 1, perguntou-me pelo carro.
«Ainda tens o fiesta?»
«Não. Vamos para Espanha de Golfo, dois lugares, a gasóleo, à velocidade do tempo de voltar».
Bebemos ali à estação o primeiro copo. Vinha bonita com uma mala de mão, leve como a roupa que vestia, boa cor e a cheirar a sal. Já trazia um anúncio de Verão fresco na pele morena.
Quando poisou sonolenta no meu ombro direito, percebi que não era o perfume que a atraía. Era o seu antigo jeito de sussurrar. Falou-me de livros de viagem – O (Des) Caminho para Santiago – de Cees Nootboom. Mostrou-me. Trazia frases e palavras sublinhadas como destinos. Com elas escreverá a nossa viagem. Assim falámos. Assim pernoitámos noite ligeira. Amanhã cedo, estaremos prontos para partir.

segunda-feira, julho 17, 2006

Vamos então companheiro, fazer uma história. Deixo-te as palavras e tu começas. Dás o nome à história, dedicamo-la a M, e começas o enredo que depois me enredo eu.

Vamos fazer uma história, como que escrita entre duas janelas de um mesmo comboio.

Deixo-te as palavras:

Mulher
Cartas
Carro
Verão

Para dispor na mesa ou na história. São vulgares, cabe tudo nelas. Curiosa de ver como as salgas...

Te espero e te respondo.

Companheiro ? ...


Companheiro ? D ... ainda estás acordado ? … agora que M partiu para os mares do sul, ficamos os dois na linha. Podemos falar em sussurro, atear o fogo, conversar em cima do silêncio como sempre fizemos enquanto as fogueiras ardiam e as noites nos cabiam. Pára os comboios. Deixa-os parados na linha, abre as portas e deixa ventar por dentro... vamos ficar aqui um bocadinho a fumar o último cigarro, a teimar a última palavra, a enrolar o frio na camisola.

Já vai, já vai... os comboios comportam atrasos só porque nos apetece um cigarro por fim e uma gargalhada enquanto o fogo arde na sombra dos olhos.

O queres que o comboio leve agora ? o norte mareou a sul e nós temos que fazer fagulha. Vamos inventar uma história e fazer um romance que M lerá quando desfizer as malas ? ou queres coisa mais picante, coisa de contar coisas que nunca dissemos... companheiro, estás acordado ? os comboios esperam...

Li agora o teu post. Voltar para férias. Também tu ? ... a linha é minha por esta próxima semana ? percebi bem, não estás ? fico eu por aqui descalça ? uhm...deixa arder a fogueira, os comboios esperam um pouco que agora sou eu que mando, está bem... tomo conta. Deixo partir das mãos os comboios.

Vou fazer o verão, arder a linha, esperar por vós. Boas férias, companheiros. Tomo conta da estação.

( que vontade imensa me cresceu de brincar na linha... e se montar uma linha no chão da casa de verão e brincar eu com comboios miniatura... )

«voltar para férias»


Quem tem o privilégio de fazer o que gosta e ser pago por isso (avalia-se com o tempo!), as férias são um interregno sem valor essencial. São descanso de rotina, tipo fazer a revisão ao motor e mudar o óleo e a correia de transmissão.

Sinto esse privilégio em cada dia que passa. Gosto do que faço. Tenho consciência que sou dos poucos neste mundo que o podem afirmar e tenho isso como uma dádiva da vida. Por isso, «partir para férias» não me traz um legado de prémio ou desejo, obriga-me a conjugar «partir» como quem o faz com nostalgia.

O que procuramos nas férias tenho no trabalho em abundância. Novas gentes, novos lugares, ler e escrever muito, desafiar, propor, descansar quando o corpo o pede cúmplice. E um copo e prato certos em fins-de-tarde onde aclaramos o mundo e a vida com quem gostamos. Partilha.

Então digo «voltar para férias».
E conjugo «voltar» no duplo sentido de ir, sabendo que o regresso é premiado.
Até um dia perverso?

domingo, julho 16, 2006

até ao meu regresso

malas feitas, aí vou eu - para um país sem caminhos de ferro virtuais. fiquem bem.

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sexta-feira, julho 14, 2006

fazer as malas


  • Longe de Manaus - F J Viegas (saborosamente adiado para degustar em contexto privilegiado)
  • As mentiras que os homens contam - L F Veríssimo (ansiosa por mais do autor de Borges e os Orangotangos Eternos)
  • Memórias de Adriano - M Yourcenar (um dos muitos musts que me faltam)
  • A ilustre Casa de Ramires - E Queirós (idem)
  • Assim falou Zaratustra - Nietzsche (idem, decidida a ir à fonte da qual só conheço a frase admirável "desde que o homem é homem tem conhecido mal a alegria; é esse, meus irmãos, o único pecado original")
  • Histórias com cidades - J R Direitinho (saldo em que tropecei um dia destes, disposta a relê-lo 20 anos depois das páginas do DN Jovem)
  • Nome de toureiro - L Sepúlveda (mais um saldo, aposta sempre ganha)
  • Carris de papel - organizado por A V Brunn colectânea de que aqui falei há dias

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o meu filme da linha


Chegou o calor decisivo a Coimbra B. Os carris dilatam-se como corações apertados de saudade e não sei se esta, apanhada de surpresa, chega agora com todos os poros disponíveis a Sta. Apolónia ou Campanhã.

Coimbra B é esta noite a estação do «Aconteceu no Oeste» do Sérgio Leone. Os 19 minutos fabulosos do início do filme e, porque bebo agora um copo fresco, também a Malaposta onde a mesma água-de-banho lava muitos futuros cadáveres.

Disse ele e eu acredito, porque vi o filme uma boa dúzia de vezes, que “todas as personagens do filme, excepto a de Cláudia Cardinale, têm consciência do facto de que não vão chegar ao fim vivas”.

Não há telégrafo para vos fazer chegar outras palavras – registo-as apenas!
Os guarda-pós guardaram as balas no corpo. Três. O nosso número sempre mágico.
Ennio Morricone deixou um rasto de música genial que se prolonga na flauta de beiços de Charles Bronson.

O meu filme da linha é decididamente este percurso de comboio.
«Aconteceu no Oeste».
Poderia acontecer em Coimbra B, partindo de Sta. Apolónia com destino a Campanhã ou o seu também possível inverso na mobilidade que nos une. Tenho, se virem o filme, a placa escondida “Estação” (parecida com as placas, H, que roubámos numa manhã sem sono ao autocarro de focinho longo nas Preces...) e faço café como ela, Cardinale, na brasa, para vos receber como essa assumida mulher de família na dignidade irlandesa.
Antes deste deitar que se anuncia nos olhos, vou pelos menos ver esses 19 minutos do começo... já vejo sem ainda ver a mosca no cano do rifle... já ouço sem ainda ouvir a água a cair, dura, na aba do chapéu...

quarta-feira, julho 12, 2006

Som da Frente


Respondo ao Oceano Pacífico com o Som da Frente. Sintonizamos frequências e memórias.

Recordo esse programa da Rádio Comercial, na voz inigualável desse António Sérgio, a que cheguei mais por paixão do que por devoção musical. Eram as noites pesadas de estudo na sebenta, o amor a morar no fim da linha do comboio e era essa sintonização acertada no tempo... ouvia, porque o meu amor ouvia. Enchia a noite e a saudade na voz desse homem. Era um culto interesseiro, confesso hoje.

Depois, o meu amor falava-me longamente do programa, das bandas, oferecia-me cassetes. Eu ouvia, gostava muito do que ouvia – e muita coisa ainda gosto – mas aquele programa Som da Frente ficou colado a uma história. Impregnou-se nela. Separava a hora dos telefonemas nocturnos, às escondidas da casa adormecida, num toque como primeiro sinal de despertar. Morrer de amor na voz, clandestinamente, depois do Som da Frente.

Marcava também a hora de algumas palavras, a escrita de cartas em tinta sôfrega, o colar a pele ao papel por outra pele não haver. Eram, ás vezes, as músicas, a voz do António Sérgio e a noite que faziam esse apelo de respirar na folha e emergir essa vontade de endossar o corpo por dentro do envelope.


Um destes dias, numa loja de centro comercial, vi este cd do Som da Frente ( 1982-1986) vendível a menos de um euro. Baratearam a memória e expuseram-na descarada. Uma vulgaridade para uma invulgaridade. Mas não hesitei. Está agora no carro. Espera as horas em que me apetece ter passado ou só reinventar sensações.

Chega sempre e como sempre, na hora certa.

terça-feira, julho 11, 2006

breaking music: «a cold steel rail» - syd barrett


Faleceu o homem do rock psicadélico – Syd Barrett. Agora que havia rumores de uma nova tournée dos Pink Floyd, entretanto insistentemente desmentida pelos próprios, faria a partir de hoje todo o sentido.
Chamar-se-ia «Shine On You Crazy Diamond» se eu mandasse, faixa que me disseram que um dia lhe dedicaram por inteiro embora, por reflexo de memória, poderia teria sido todo o "Wish You Were Here".
Falar dos Pink Floyd é para mim, para além de já ter ido à estante rever todos os álbuns e esses 2 grandes DVD’s ( “In the Flesh”, “The Wall, live in Berlin”) um recuo no tempo, uma rasura na pele, uma ruga que permanece numa geração feliz que ficou.
Com a perda de Syd Barrett, também os espelhos da poesia deixaram de reproduzir palavras com luzes. Apagou-se a lâmpada negra que nos expunha como reflectores no branco escuro das noites a dançar e a cantar loucamente os nossos “the same old fears”.
Fica a música, o reflexo do espelho e ficamos nós por um pouco mais melancólicos.

domingo, julho 09, 2006

oceano pacífico












Farto para já do Portugal Scolari e entregue o título à Itália, vinha no regresso a Coimbra B a escolher música na rádio. E bateu forte. Já não me lembrava. Oceano Pacífico. Lembro a década de 80 onde no gabinete em casa do HR todas as noites era a Renascença a estação escolhida pelo programa. Era um ritual. Qualquer das nossas conversas tinha por fundo uma música decidida por João Chaves e muitas delas eram voluntariamente interrompidas para apenas ouvir os sons mágicos do programa, fumando o maço de RITZ sem critério.
Já não me lembrava.
Hoje, na estação RFM, em horário de comboio, revisitei o oceano pacífico. O som de sempre. A mesma tempestade doce feita de música. O mesmo rigor.
Quantas vezes vi da varanda Órion, a Auriga, o Boieiro com aquele som inconfundível?
Quantas vezes não ouvi toda a conversa de HR porque o som se impunha e eu cantarolava sem jeito?
Oceano pacífico. Música de água. Estação RFM, estejam de ouvido nessa linha e nesta linha. Muitas delas tocam aqui como a que agora soa ao fundo.

sábado, julho 08, 2006

"Carris de Papel"


"Carris de Papel - O Caminho-de-Ferro na Literatura Portuguesa" é o título de um livro que estou mortinha por folhear. trata-se de uma "colectânea de textos portugueses atravessados por comboios" (Público / Mil Folhas de hoje): contos, memórias, cartas e poemas, de 26 autores que incluem, entre outros, Nemésio, Ruben A., Virgílio Ferreira e Francisco José Viegas.

a uma semana das minhas férias vou, assim, afiando o dente para saborosas leituras à beira-mar. logo, logo, contarei como foi.

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tecer distâncias


Vi deste já longe um voo de asas
onde ganhaste vida antes do tempo
que tínhamos disponível para os casulos.

(Fica bem. Ainda que ansioso da seda do meu.
Eu sinto. São teias antigas que ficaram
desnudadas por tecer.)

Disseste que foi o vendaval
que te soprou
ou a tempestade matinal
onde insegura te seguras?

Não há contacto no desejo que desenhe o esboço de um beijo:
- um metro de seda que ficou por coser
o Verão que gostas, quase,
quase a acontecer!

Escondes o jogo dos lábios.
Deixas a carta no correio para abrir.
Levas contigo o metro de sombra onde nos iniciamos.
E agora, aparentemente segura
desenhas o risco do voo no Verão onde já não estamos
para nele irmos beber como pássaros apenas.

quarta-feira, julho 05, 2006

de tanto amar a selecção



Tanto mar, tanto amar. Sentemo-nos à mesa dos brasileiros. A mesma morte, o mesmo luto. Deu outra vez galo, diria, se estivesse de bom humor.
Já na mesa um brasileiro diz: - «que zidane» (que se dane), a forma açucarada de ver o problema.
«A esta o Ricardo não chegou, a bola não tinha rabo», digo eu.

Não há apitos, povo na rua, copos à farta. As TV’s, ávidas de share, têm apenas mosquitos atraídos pela câmeras e agora, em estúdio, vegetam teóricos comentadores compulsivos do Adamastor.

Há o recolher da portugalidade para essa amêijoa onde permanentemente vivemos, porque nela temos água de mar onde facilmente fazemos nascer puras lágrimas e, da carne temperada e sofrida, duras palavras.
Já não dói. Todos sabemos fácil o caminho mais breve da amêijoa:
- aqui estão as primeiras duras palavras!

a beleza dos orangotangos eternos


Chegaram pela linha os orangotangos eternos do Veríssimo.

A primeira beleza está no prazer de os tirar da caixa do correio e ver envelope de H, aquela letra antiga, a mesma de tantos anos. A mesma sensação H, a mesma.

A segunda beleza está no facto de M acreditar que os adormeceu em VN Mil Fontes, assinando o acto. Mas estes livros de ler muitas vezes não acabam nunca para ninguém. Quando o reenviar pela linha, M voltará ao crime como faz tantas vezes com Molero. E assinará um novo tempo. Buenos Aires?

A terceira beleza, assim que o comecei a ler, foi encontrar «um beijo imenso» num post-it amarelo. Não era de Borges, Veríssimo ou Allan Põe. Era escrito na dita letra antiga, recheio de envelope que sempre as trouxe ordenadas, certas, incisivas e escorreitas como gotas de água, antigo corpo de chuva caindo da caleira para o chão do tempo.
Salut de um Vogelstein!

domingo, julho 02, 2006

Páre, escute e olhe.


O novo Guia do “Expresso” lança agora o país no Portugal de Comboio. Não retiro nada ao que já aqui escrevi, nem H e M mudarão (estou certo!) a agulha por isso.
Esse “Semanário da República” vai ter um dia destes que lançar a máquina a este edifício da linha do norte. Então saberemos se nos respeitam, exactos como manda o seu velho editorial ou ignorar-nos-á, invejoso, apenas para nosso discernimento.
Esperem pela próxima paragem. Páre, escute e olhe.

Assim alegria...


Eu sou das que vejo o jogo, tranquila, de fio a pavio. Acendo cigarro amiúde. Mas vou vendo com uma tranquilidade quase estranha. Mais... acho quase como superstição que quando me bate essa calma sem nervo é bom auguro. Tem sido assim, sempre.

Hoje vi jogo e tive que me fazer à estrada logo de seguida, atrasada o tempo de prolongamento e penáltis. Levei a bandeira, buzinei no caminho, cantei “ portugal olé, portugal olé” e envergonhei as minhas filhas. Tanta alegria no ar, tanta festa, tanto carro e gente nova feliz de ser português.

Tinha jantar combinado no Bairro Alto e para lá, mais tarde, rumei. Ainda abeirei a casa do Brasil para ver alguns minutos de jogo. Noite dentro, nas ruas do bairro não coube tanta alegria lusa, tanta bandeira e símbolo nacional, tanta canção entoada de forma espontânea e feliz. Pela noite dentro. Ainda agora, até ao fim da noite.

Não sou dada a alegrias colectivas, tenho tendência natural a desalinhar. Mas gosto muito da alegria em si mesma, da felicidade mesmo que mentirosa, e quando me permito a uma alegria colectiva... é a sério.

O que mais me surpreende é a maior facilidade com que nos permitimos à alegria, nos deixamos à exuberância, vibramos sem pudor.Isto surpreende-me muito, muito. Sempre achei que o povo português tinha pudor de ser feliz, de manifestar a felicidade contrariamente à tristeza. Sempre tivemos uma facilidade maior e mais natural com a tristeza, sempre ficamos mais envergonhados com a alegria... e eis que o futebol, nos últimos anos, trás esta felicidade fácil e vadia. Pronta, disponível. Exuberante.

É mesmo isto que me surpreende e de que gosto. Tenho que dizer isto ao vizinho, um destes dias. Que ele ajudou a isto.

Em jeitinho final, nada é mais verdade que esta verdade sabida de que quando queremos muito, quando a cabeça incorpora e determina, tudo se torna possível. Esta equipe está imbuída desse espírito e a constatação só me reafirma esta verdade.

Portugal olé, Portugal olé...

sábado, julho 01, 2006

aforismo

Não te rias, Zé. Não cumpriste o que prometeste. Esperei fechado em casa que o telemóvel tocasse. Nem convite para ministro dos Negócios Estrangeiros, muito menos convite para ministro da Defesa.
Falo mal várias línguas. Jogo sempre ao ataque.
O Terreiro do Paço perdeu uma oportunidade. Fico-me pelo Terreiro da Erva, mesa posta no restaurante “Democrática”.
- Vai uma vaquinha?

ter-te


ter-te é, de súbito, a minha ocupação

ter-te comigo
sentir-te ao longe
ouvir-te
ou só saber que dormes
que já vens
saber de ti

ter o teu corpo
essa concavidade em que encaixo
- inteira, exacta -
onde encosto o meu medo
as minhas noites

ter-te
o teu ângulo mais duro
a tua mão a tua voz
ter-te, inteiro
ter-te, ainda
na precaridade da vida
numa eternidade que sei que não existe

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